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Opinião|'Dias Perfeitos': a incrível beleza das coisas simples


Por Marco Antonio Spinelli
Atualização:

Um crítico de cinema do Youtube cita o cineasta Alfred Hitchcock, que dizia que “O cinema é como a vida, sem as partes chatas”, uma espécie de suco dos melhores momentos, ou, pelo menos, uma seleção de aventuras e tramas sem ter que mostrar as rotinas e chatices que compõe expressiva maioria em nosso dia a dia. Até o Big Brother, que supostamente deveria filmar horas infinitas de chatices de “jogadores” igualmente chatos, faz um corte e uma seleção e, muito provavelmente, um script dessas pessoas “comuns” numa casa onde fazem alianças, fofocas e barracos ante a torcida do país inteiro. Ainda assim, eles cortam as tais das partes chatas e fazem uma seleção de brigas, transas, e corpos atléticos à beira da piscina. Dificilmente gastam cinco minutos do programa mostrando alguém fazendo a cama ou limpando o banheiro.

O cinema dito “de Arte” mostra as partes chatas. Wim Wenders, cineasta alemão consagrado, no seu último e maravilhoso filme, “Dias Perfeitos”, é capaz de passar cinco minutos mostrando um senhor japonês arrumando sua cama, escovando os dentes, colocando a roupa de trabalho, pegando uma lata de café na máquina e guiando a sua van pelas ruas de Tóquio. Quando ele coloca suas fitas cassete no inacreditável toca-fitas de sua van, percebemos que essas músicas anos 70 vão compor a narrativa do filme. Esse senhor, nosso protagonista, limpa os banheiros públicos de Tókio, com capricho e ritmo. Esperamos que alguém diga algo, ou ele encontre a droga perdida de um traficante, ou presencie um assassinato lavando a privada, mas não. Ele cata restos de papel e limpa sujeira nas paredes. Quando um bêbado entra no banheiro, para sujar tudo o que ele limpou, ele espera pacientemente fora da cabine, para retomar a limpeza depois. Demoram onze longos minutos para alguém falar. Chega um jovem colega, Takashi, atrasado e falando sobre como o turno da manhã é horrível. Hirayama, o senhor que estamos acompanhando, não responde e não dá confiança para o rapaz falante e preguiçoso, que limpa o banheiro olhando seu celular. Esse é o choque que o filme vai propor: o velho Japão, analógico, e as novas gerações, com os (maus) hábitos ocidentais. Parece que vai descambar para uma fábula melancólica, não é? Não. O filme não vai colocar o cara em alguma cilada digital. Hirayama vai continuar analógico: seus dias, seus hábitos, são sempre os mesmos. Na hora do almoço, come um sanduíche e fotografa a mesma árvore, com a sua câmera antiga. Ele passa na loja que ainda revela e vende rolos de filme. No final do dia, vai aos mesmos restaurantes e fala com as mesmas pessoas. Compra livros num sebo, onde a senhora tenta puxar assunto com ele, sem sucesso. Na seu pequeno e arrumadíssimo apartamento, ele rega suas plantas, lê os seus livros e toca suas fitas no mesmo som antigo. E o que acontece no dia seguinte? Alguma reviravolta de tirar o fôlego? Lamento o spoiler: não. A mágica do filme é a repetição. O dia a dia repetitivo e a forma que Hirayama saboreia essa repetição. E aí é que está o ponto: o prazer de contemplar a vida correndo nas ruas de Tókio sem planos, sem expectativas, sem drama. Só um olhar japonês pode sustentar isso? Parece que Wim Wenders vai buscar no velho Japão uma espécie de antídoto para nossa doença coletiva. A doença do próprio cinema, que parece uma sobreposição de cenas e estímulos de filmes de herói que parecem, sempre, os mesmos. Wim Wenders mostra a vida com suas partes chatas. E as torna maiores do que a chatice.

Lembro de uma matéria antiga de jornal, jornal analógico, em que entrevistaram uma senhora, faxineira, que se convertera ao Budismo. Ela contou, de uma maneira emocionante, que tinha aprendido que poderia ser feliz sendo uma faxineira. Deixou os sermões que pregavam que Deus queria que ela prosperasse e deveria montar um business no final de semana para alavancar sua renda, e se rendeu à incrível beleza das coisas simples. Encontrou a sua paz entre os esfregões, como o personagem de “Dias Perfeitos”. Espero que ela não abra alguma Rede Social, onde os gurus da Teologia da Prosperidade vão tentar convencê-la que, felicidade é ter maior capacidade de consumo. Felicidade é ter mais e mais dinheiro. Tenho certeza que ela não vai limpar o banheiro olhando o celular.

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Temos uma sociedade digital que busca a excitação e a novidade. A ampla maioria não vai aguentar onze minutos de “Dias Perfeitos”. Será descrito como “um filme sobre nada, onde nada acontece”. Muito pouca gente vai perceber que é essa, exatamente a graça: tudo acontece dentro do personagem e dentro de quem assiste.

Talvez a maior perda de um mundo em que tudo acontece apenas dentro de uma tela é que as pessoas perdem o caminho de seu mundo interno. Haja terapia, ou meditação, para trazê-lo de volta. O nosso analógico Mundo Interno.

Um crítico de cinema do Youtube cita o cineasta Alfred Hitchcock, que dizia que “O cinema é como a vida, sem as partes chatas”, uma espécie de suco dos melhores momentos, ou, pelo menos, uma seleção de aventuras e tramas sem ter que mostrar as rotinas e chatices que compõe expressiva maioria em nosso dia a dia. Até o Big Brother, que supostamente deveria filmar horas infinitas de chatices de “jogadores” igualmente chatos, faz um corte e uma seleção e, muito provavelmente, um script dessas pessoas “comuns” numa casa onde fazem alianças, fofocas e barracos ante a torcida do país inteiro. Ainda assim, eles cortam as tais das partes chatas e fazem uma seleção de brigas, transas, e corpos atléticos à beira da piscina. Dificilmente gastam cinco minutos do programa mostrando alguém fazendo a cama ou limpando o banheiro.

O cinema dito “de Arte” mostra as partes chatas. Wim Wenders, cineasta alemão consagrado, no seu último e maravilhoso filme, “Dias Perfeitos”, é capaz de passar cinco minutos mostrando um senhor japonês arrumando sua cama, escovando os dentes, colocando a roupa de trabalho, pegando uma lata de café na máquina e guiando a sua van pelas ruas de Tóquio. Quando ele coloca suas fitas cassete no inacreditável toca-fitas de sua van, percebemos que essas músicas anos 70 vão compor a narrativa do filme. Esse senhor, nosso protagonista, limpa os banheiros públicos de Tókio, com capricho e ritmo. Esperamos que alguém diga algo, ou ele encontre a droga perdida de um traficante, ou presencie um assassinato lavando a privada, mas não. Ele cata restos de papel e limpa sujeira nas paredes. Quando um bêbado entra no banheiro, para sujar tudo o que ele limpou, ele espera pacientemente fora da cabine, para retomar a limpeza depois. Demoram onze longos minutos para alguém falar. Chega um jovem colega, Takashi, atrasado e falando sobre como o turno da manhã é horrível. Hirayama, o senhor que estamos acompanhando, não responde e não dá confiança para o rapaz falante e preguiçoso, que limpa o banheiro olhando seu celular. Esse é o choque que o filme vai propor: o velho Japão, analógico, e as novas gerações, com os (maus) hábitos ocidentais. Parece que vai descambar para uma fábula melancólica, não é? Não. O filme não vai colocar o cara em alguma cilada digital. Hirayama vai continuar analógico: seus dias, seus hábitos, são sempre os mesmos. Na hora do almoço, come um sanduíche e fotografa a mesma árvore, com a sua câmera antiga. Ele passa na loja que ainda revela e vende rolos de filme. No final do dia, vai aos mesmos restaurantes e fala com as mesmas pessoas. Compra livros num sebo, onde a senhora tenta puxar assunto com ele, sem sucesso. Na seu pequeno e arrumadíssimo apartamento, ele rega suas plantas, lê os seus livros e toca suas fitas no mesmo som antigo. E o que acontece no dia seguinte? Alguma reviravolta de tirar o fôlego? Lamento o spoiler: não. A mágica do filme é a repetição. O dia a dia repetitivo e a forma que Hirayama saboreia essa repetição. E aí é que está o ponto: o prazer de contemplar a vida correndo nas ruas de Tókio sem planos, sem expectativas, sem drama. Só um olhar japonês pode sustentar isso? Parece que Wim Wenders vai buscar no velho Japão uma espécie de antídoto para nossa doença coletiva. A doença do próprio cinema, que parece uma sobreposição de cenas e estímulos de filmes de herói que parecem, sempre, os mesmos. Wim Wenders mostra a vida com suas partes chatas. E as torna maiores do que a chatice.

Lembro de uma matéria antiga de jornal, jornal analógico, em que entrevistaram uma senhora, faxineira, que se convertera ao Budismo. Ela contou, de uma maneira emocionante, que tinha aprendido que poderia ser feliz sendo uma faxineira. Deixou os sermões que pregavam que Deus queria que ela prosperasse e deveria montar um business no final de semana para alavancar sua renda, e se rendeu à incrível beleza das coisas simples. Encontrou a sua paz entre os esfregões, como o personagem de “Dias Perfeitos”. Espero que ela não abra alguma Rede Social, onde os gurus da Teologia da Prosperidade vão tentar convencê-la que, felicidade é ter maior capacidade de consumo. Felicidade é ter mais e mais dinheiro. Tenho certeza que ela não vai limpar o banheiro olhando o celular.

Temos uma sociedade digital que busca a excitação e a novidade. A ampla maioria não vai aguentar onze minutos de “Dias Perfeitos”. Será descrito como “um filme sobre nada, onde nada acontece”. Muito pouca gente vai perceber que é essa, exatamente a graça: tudo acontece dentro do personagem e dentro de quem assiste.

Talvez a maior perda de um mundo em que tudo acontece apenas dentro de uma tela é que as pessoas perdem o caminho de seu mundo interno. Haja terapia, ou meditação, para trazê-lo de volta. O nosso analógico Mundo Interno.

Um crítico de cinema do Youtube cita o cineasta Alfred Hitchcock, que dizia que “O cinema é como a vida, sem as partes chatas”, uma espécie de suco dos melhores momentos, ou, pelo menos, uma seleção de aventuras e tramas sem ter que mostrar as rotinas e chatices que compõe expressiva maioria em nosso dia a dia. Até o Big Brother, que supostamente deveria filmar horas infinitas de chatices de “jogadores” igualmente chatos, faz um corte e uma seleção e, muito provavelmente, um script dessas pessoas “comuns” numa casa onde fazem alianças, fofocas e barracos ante a torcida do país inteiro. Ainda assim, eles cortam as tais das partes chatas e fazem uma seleção de brigas, transas, e corpos atléticos à beira da piscina. Dificilmente gastam cinco minutos do programa mostrando alguém fazendo a cama ou limpando o banheiro.

O cinema dito “de Arte” mostra as partes chatas. Wim Wenders, cineasta alemão consagrado, no seu último e maravilhoso filme, “Dias Perfeitos”, é capaz de passar cinco minutos mostrando um senhor japonês arrumando sua cama, escovando os dentes, colocando a roupa de trabalho, pegando uma lata de café na máquina e guiando a sua van pelas ruas de Tóquio. Quando ele coloca suas fitas cassete no inacreditável toca-fitas de sua van, percebemos que essas músicas anos 70 vão compor a narrativa do filme. Esse senhor, nosso protagonista, limpa os banheiros públicos de Tókio, com capricho e ritmo. Esperamos que alguém diga algo, ou ele encontre a droga perdida de um traficante, ou presencie um assassinato lavando a privada, mas não. Ele cata restos de papel e limpa sujeira nas paredes. Quando um bêbado entra no banheiro, para sujar tudo o que ele limpou, ele espera pacientemente fora da cabine, para retomar a limpeza depois. Demoram onze longos minutos para alguém falar. Chega um jovem colega, Takashi, atrasado e falando sobre como o turno da manhã é horrível. Hirayama, o senhor que estamos acompanhando, não responde e não dá confiança para o rapaz falante e preguiçoso, que limpa o banheiro olhando seu celular. Esse é o choque que o filme vai propor: o velho Japão, analógico, e as novas gerações, com os (maus) hábitos ocidentais. Parece que vai descambar para uma fábula melancólica, não é? Não. O filme não vai colocar o cara em alguma cilada digital. Hirayama vai continuar analógico: seus dias, seus hábitos, são sempre os mesmos. Na hora do almoço, come um sanduíche e fotografa a mesma árvore, com a sua câmera antiga. Ele passa na loja que ainda revela e vende rolos de filme. No final do dia, vai aos mesmos restaurantes e fala com as mesmas pessoas. Compra livros num sebo, onde a senhora tenta puxar assunto com ele, sem sucesso. Na seu pequeno e arrumadíssimo apartamento, ele rega suas plantas, lê os seus livros e toca suas fitas no mesmo som antigo. E o que acontece no dia seguinte? Alguma reviravolta de tirar o fôlego? Lamento o spoiler: não. A mágica do filme é a repetição. O dia a dia repetitivo e a forma que Hirayama saboreia essa repetição. E aí é que está o ponto: o prazer de contemplar a vida correndo nas ruas de Tókio sem planos, sem expectativas, sem drama. Só um olhar japonês pode sustentar isso? Parece que Wim Wenders vai buscar no velho Japão uma espécie de antídoto para nossa doença coletiva. A doença do próprio cinema, que parece uma sobreposição de cenas e estímulos de filmes de herói que parecem, sempre, os mesmos. Wim Wenders mostra a vida com suas partes chatas. E as torna maiores do que a chatice.

Lembro de uma matéria antiga de jornal, jornal analógico, em que entrevistaram uma senhora, faxineira, que se convertera ao Budismo. Ela contou, de uma maneira emocionante, que tinha aprendido que poderia ser feliz sendo uma faxineira. Deixou os sermões que pregavam que Deus queria que ela prosperasse e deveria montar um business no final de semana para alavancar sua renda, e se rendeu à incrível beleza das coisas simples. Encontrou a sua paz entre os esfregões, como o personagem de “Dias Perfeitos”. Espero que ela não abra alguma Rede Social, onde os gurus da Teologia da Prosperidade vão tentar convencê-la que, felicidade é ter maior capacidade de consumo. Felicidade é ter mais e mais dinheiro. Tenho certeza que ela não vai limpar o banheiro olhando o celular.

Temos uma sociedade digital que busca a excitação e a novidade. A ampla maioria não vai aguentar onze minutos de “Dias Perfeitos”. Será descrito como “um filme sobre nada, onde nada acontece”. Muito pouca gente vai perceber que é essa, exatamente a graça: tudo acontece dentro do personagem e dentro de quem assiste.

Talvez a maior perda de um mundo em que tudo acontece apenas dentro de uma tela é que as pessoas perdem o caminho de seu mundo interno. Haja terapia, ou meditação, para trazê-lo de volta. O nosso analógico Mundo Interno.

Um crítico de cinema do Youtube cita o cineasta Alfred Hitchcock, que dizia que “O cinema é como a vida, sem as partes chatas”, uma espécie de suco dos melhores momentos, ou, pelo menos, uma seleção de aventuras e tramas sem ter que mostrar as rotinas e chatices que compõe expressiva maioria em nosso dia a dia. Até o Big Brother, que supostamente deveria filmar horas infinitas de chatices de “jogadores” igualmente chatos, faz um corte e uma seleção e, muito provavelmente, um script dessas pessoas “comuns” numa casa onde fazem alianças, fofocas e barracos ante a torcida do país inteiro. Ainda assim, eles cortam as tais das partes chatas e fazem uma seleção de brigas, transas, e corpos atléticos à beira da piscina. Dificilmente gastam cinco minutos do programa mostrando alguém fazendo a cama ou limpando o banheiro.

O cinema dito “de Arte” mostra as partes chatas. Wim Wenders, cineasta alemão consagrado, no seu último e maravilhoso filme, “Dias Perfeitos”, é capaz de passar cinco minutos mostrando um senhor japonês arrumando sua cama, escovando os dentes, colocando a roupa de trabalho, pegando uma lata de café na máquina e guiando a sua van pelas ruas de Tóquio. Quando ele coloca suas fitas cassete no inacreditável toca-fitas de sua van, percebemos que essas músicas anos 70 vão compor a narrativa do filme. Esse senhor, nosso protagonista, limpa os banheiros públicos de Tókio, com capricho e ritmo. Esperamos que alguém diga algo, ou ele encontre a droga perdida de um traficante, ou presencie um assassinato lavando a privada, mas não. Ele cata restos de papel e limpa sujeira nas paredes. Quando um bêbado entra no banheiro, para sujar tudo o que ele limpou, ele espera pacientemente fora da cabine, para retomar a limpeza depois. Demoram onze longos minutos para alguém falar. Chega um jovem colega, Takashi, atrasado e falando sobre como o turno da manhã é horrível. Hirayama, o senhor que estamos acompanhando, não responde e não dá confiança para o rapaz falante e preguiçoso, que limpa o banheiro olhando seu celular. Esse é o choque que o filme vai propor: o velho Japão, analógico, e as novas gerações, com os (maus) hábitos ocidentais. Parece que vai descambar para uma fábula melancólica, não é? Não. O filme não vai colocar o cara em alguma cilada digital. Hirayama vai continuar analógico: seus dias, seus hábitos, são sempre os mesmos. Na hora do almoço, come um sanduíche e fotografa a mesma árvore, com a sua câmera antiga. Ele passa na loja que ainda revela e vende rolos de filme. No final do dia, vai aos mesmos restaurantes e fala com as mesmas pessoas. Compra livros num sebo, onde a senhora tenta puxar assunto com ele, sem sucesso. Na seu pequeno e arrumadíssimo apartamento, ele rega suas plantas, lê os seus livros e toca suas fitas no mesmo som antigo. E o que acontece no dia seguinte? Alguma reviravolta de tirar o fôlego? Lamento o spoiler: não. A mágica do filme é a repetição. O dia a dia repetitivo e a forma que Hirayama saboreia essa repetição. E aí é que está o ponto: o prazer de contemplar a vida correndo nas ruas de Tókio sem planos, sem expectativas, sem drama. Só um olhar japonês pode sustentar isso? Parece que Wim Wenders vai buscar no velho Japão uma espécie de antídoto para nossa doença coletiva. A doença do próprio cinema, que parece uma sobreposição de cenas e estímulos de filmes de herói que parecem, sempre, os mesmos. Wim Wenders mostra a vida com suas partes chatas. E as torna maiores do que a chatice.

Lembro de uma matéria antiga de jornal, jornal analógico, em que entrevistaram uma senhora, faxineira, que se convertera ao Budismo. Ela contou, de uma maneira emocionante, que tinha aprendido que poderia ser feliz sendo uma faxineira. Deixou os sermões que pregavam que Deus queria que ela prosperasse e deveria montar um business no final de semana para alavancar sua renda, e se rendeu à incrível beleza das coisas simples. Encontrou a sua paz entre os esfregões, como o personagem de “Dias Perfeitos”. Espero que ela não abra alguma Rede Social, onde os gurus da Teologia da Prosperidade vão tentar convencê-la que, felicidade é ter maior capacidade de consumo. Felicidade é ter mais e mais dinheiro. Tenho certeza que ela não vai limpar o banheiro olhando o celular.

Temos uma sociedade digital que busca a excitação e a novidade. A ampla maioria não vai aguentar onze minutos de “Dias Perfeitos”. Será descrito como “um filme sobre nada, onde nada acontece”. Muito pouca gente vai perceber que é essa, exatamente a graça: tudo acontece dentro do personagem e dentro de quem assiste.

Talvez a maior perda de um mundo em que tudo acontece apenas dentro de uma tela é que as pessoas perdem o caminho de seu mundo interno. Haja terapia, ou meditação, para trazê-lo de volta. O nosso analógico Mundo Interno.

Um crítico de cinema do Youtube cita o cineasta Alfred Hitchcock, que dizia que “O cinema é como a vida, sem as partes chatas”, uma espécie de suco dos melhores momentos, ou, pelo menos, uma seleção de aventuras e tramas sem ter que mostrar as rotinas e chatices que compõe expressiva maioria em nosso dia a dia. Até o Big Brother, que supostamente deveria filmar horas infinitas de chatices de “jogadores” igualmente chatos, faz um corte e uma seleção e, muito provavelmente, um script dessas pessoas “comuns” numa casa onde fazem alianças, fofocas e barracos ante a torcida do país inteiro. Ainda assim, eles cortam as tais das partes chatas e fazem uma seleção de brigas, transas, e corpos atléticos à beira da piscina. Dificilmente gastam cinco minutos do programa mostrando alguém fazendo a cama ou limpando o banheiro.

O cinema dito “de Arte” mostra as partes chatas. Wim Wenders, cineasta alemão consagrado, no seu último e maravilhoso filme, “Dias Perfeitos”, é capaz de passar cinco minutos mostrando um senhor japonês arrumando sua cama, escovando os dentes, colocando a roupa de trabalho, pegando uma lata de café na máquina e guiando a sua van pelas ruas de Tóquio. Quando ele coloca suas fitas cassete no inacreditável toca-fitas de sua van, percebemos que essas músicas anos 70 vão compor a narrativa do filme. Esse senhor, nosso protagonista, limpa os banheiros públicos de Tókio, com capricho e ritmo. Esperamos que alguém diga algo, ou ele encontre a droga perdida de um traficante, ou presencie um assassinato lavando a privada, mas não. Ele cata restos de papel e limpa sujeira nas paredes. Quando um bêbado entra no banheiro, para sujar tudo o que ele limpou, ele espera pacientemente fora da cabine, para retomar a limpeza depois. Demoram onze longos minutos para alguém falar. Chega um jovem colega, Takashi, atrasado e falando sobre como o turno da manhã é horrível. Hirayama, o senhor que estamos acompanhando, não responde e não dá confiança para o rapaz falante e preguiçoso, que limpa o banheiro olhando seu celular. Esse é o choque que o filme vai propor: o velho Japão, analógico, e as novas gerações, com os (maus) hábitos ocidentais. Parece que vai descambar para uma fábula melancólica, não é? Não. O filme não vai colocar o cara em alguma cilada digital. Hirayama vai continuar analógico: seus dias, seus hábitos, são sempre os mesmos. Na hora do almoço, come um sanduíche e fotografa a mesma árvore, com a sua câmera antiga. Ele passa na loja que ainda revela e vende rolos de filme. No final do dia, vai aos mesmos restaurantes e fala com as mesmas pessoas. Compra livros num sebo, onde a senhora tenta puxar assunto com ele, sem sucesso. Na seu pequeno e arrumadíssimo apartamento, ele rega suas plantas, lê os seus livros e toca suas fitas no mesmo som antigo. E o que acontece no dia seguinte? Alguma reviravolta de tirar o fôlego? Lamento o spoiler: não. A mágica do filme é a repetição. O dia a dia repetitivo e a forma que Hirayama saboreia essa repetição. E aí é que está o ponto: o prazer de contemplar a vida correndo nas ruas de Tókio sem planos, sem expectativas, sem drama. Só um olhar japonês pode sustentar isso? Parece que Wim Wenders vai buscar no velho Japão uma espécie de antídoto para nossa doença coletiva. A doença do próprio cinema, que parece uma sobreposição de cenas e estímulos de filmes de herói que parecem, sempre, os mesmos. Wim Wenders mostra a vida com suas partes chatas. E as torna maiores do que a chatice.

Lembro de uma matéria antiga de jornal, jornal analógico, em que entrevistaram uma senhora, faxineira, que se convertera ao Budismo. Ela contou, de uma maneira emocionante, que tinha aprendido que poderia ser feliz sendo uma faxineira. Deixou os sermões que pregavam que Deus queria que ela prosperasse e deveria montar um business no final de semana para alavancar sua renda, e se rendeu à incrível beleza das coisas simples. Encontrou a sua paz entre os esfregões, como o personagem de “Dias Perfeitos”. Espero que ela não abra alguma Rede Social, onde os gurus da Teologia da Prosperidade vão tentar convencê-la que, felicidade é ter maior capacidade de consumo. Felicidade é ter mais e mais dinheiro. Tenho certeza que ela não vai limpar o banheiro olhando o celular.

Temos uma sociedade digital que busca a excitação e a novidade. A ampla maioria não vai aguentar onze minutos de “Dias Perfeitos”. Será descrito como “um filme sobre nada, onde nada acontece”. Muito pouca gente vai perceber que é essa, exatamente a graça: tudo acontece dentro do personagem e dentro de quem assiste.

Talvez a maior perda de um mundo em que tudo acontece apenas dentro de uma tela é que as pessoas perdem o caminho de seu mundo interno. Haja terapia, ou meditação, para trazê-lo de volta. O nosso analógico Mundo Interno.

Opinião por Marco Antonio Spinelli

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