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É possível combater a 'machosfera' com base no ordenamento jurídico atual?


Por Thays Bertoncini
Thays Bertoncini. Foto: Divulgação

Mais um movimento assustador vem ganhando espaço na Internet. Quase superando a "cultura do cancelamento" - que é uma reação social negativa que tem como propósito principal punir alguém pelo seu ato, tido como reprovável, geralmente expondo, massivamente, a prática daquele comportamento em redes sociais - agora chegou a vez da "machosfera" piorar, e muito, o ambiente virtual.

Antes de tudo, é preciso lembrar que a misoginia é definida pelo dicionário como ódio ou aversão às mulheres e esta forma de opressão é centrada em uma visão sexista, que coloca a mulher numa relação de inferioridade em relação ao homem. O conceito da superioridade de gênero, estabelecido pelo patriarcado ao longo dos anos, enseja uma opressão que se manifesta em diversas esferas da vida social, como no mercado de trabalho, na política, na educação, na saúde, na segurança pública, na cultura e nas relações pessoais.

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Entre as formas de opressão mais comuns contra as mulheres estão: a violência física, sexual e psicológica; a discriminação no mercado de trabalho e na carreira profissional; a desvalorização do trabalho doméstico e de cuidados; a limitação do acesso à educação e à saúde; a sub-representação política; a objetificação e sexualização do corpo feminino; a imposição de padrões estéticos e comportamentais estereotipados; a restrição ao exercício da autonomia e da liberdade individual, etc.

Nessa linha, conhecida por siglas e nomes diferentes (como "red pill"[1]), a "machosfera" traz um discurso misógino que busca diminuir e menosprezar mulheres. Não fosse isso suficiente, o movimento tem crescido e atraído seguidores, criando assim um mercado milionário nas redes sociais, que viabiliza a disseminação do ódio diante da promoção de conteúdos gratuitos e pagos por meio de assinaturas de cursos, livros, palestras, vídeos, etc.

A "machosfera" caminha em sentido contrário à evolução e potencializa crimes. Isso porque, o ódio contra mulheres, aliás, é o principal responsável pelo feminicídio, definido como circunstância qualificadora do crime de homicídio pela Lei 13.104/2015, uma vez que considera formas de agressões físicas e psicológicas, mutilações, abusos sexuais, torturas, perseguições, entre outras violências relacionadas direta ou indiretamente com o gênero feminino.

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Apesar de ser objeto do Projeto de Lei Projeto de Lei 872/23[2] recentemente apresentado e pendente de aprovação no Congresso, a misoginia ainda não encontra amparo específico no ordenamento jurídico, tal como outras condutas previstas na Lei 7.716/1989, que define crimes resultantes de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, por exemplo.

Diante desse contexto absurdo, em pleno ano de 2023, como colaborar no combate deste retrocesso com as leis atualmente vigentes? O mais importante é ter em mente o óbvio: não se pode permitir a normalização de ideias misóginas trazidas pela "machosfera", ou por quem quer que seja.

A Constituição Federal garante a igualdade de direitos entre homens e mulheres, bem como a proteção contra qualquer tipo de discriminação ou violência. Por isso, qualquer manifestação capaz de diminuir mulheres deve ser combatida pelas autoridades competentes, pela sociedade civil, bem como pelas empresas privadas responsáveis por plataformas digitais.

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Sob a ótica do ordenamento jurídico vigente, a pessoa ou o grupo vítima de agressões deve coletar provas capazes de evidenciar as condutas machistas e sexistas sofridas. No mundo virtual, isso significa salvar imagens, vídeos, mensagens e tudo aquilo que é direcionado na Internet, especialmente a partir de perfis aparentemente falsos ou anônimos.

Para tanto, vale lembrar de obter a URL específica do material cibernético, ou seja, o endereço eletrônico capaz de permitir a localização inequívoca do conteúdo em si ou do perfil do usuário em redes sociais, conforme determina o artigo 19, §1º do Marco Civil da Internet e a jurisprudência consolidada pelo Superior Tribunal de Justiça[3].

Na sequência, recomenda-se o comparecimento em delegacia para lavrar um boletim de ocorrência e também em cartório para, se possível, lavrar uma ata notarial. Este último instrumento público - no qual o tabelião documenta, de forma imparcial, um fato, uma situação ou uma circunstância presenciada por ele, perpetuando-os no tempo -, possui eficácia probatória, pois presumem verdadeiros os fatos nele contidos.

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A partir disso, no âmbito civil, caso o usuário responsável pela propagação do conteúdo ofensivo não seja identificável de pronto, a vítima pode ingressar com um processo para a obtenção dos dados necessários. Com relação a provedores de aplicações (como é a hipótese de plataformas digitais, por exemplo), eles poderão, a partir de uma ordem judicial e dentro de um prazo de 6 meses estabelecido por lei, fornecer informações de IP, hora e data.

Após essa diligência de fornecimento de dados de IP é possível identificar o provedor de conexão responsável pela atribuição do referido número (como normalmente acontece com empresas de telefonia). Assim, a vítima poderá obter com o respectivo provedor de conexão as informações pessoais do usuário (nome, endereço, RG, CPF, etc.).

Uma vez identificado o usuário responsável pelo conteúdo ofensivo, no âmbito penal, as condutas praticadas dentro "machosfera" podem se enquadrar em crimes como difamação, injúria, calúnia, ameaça, incitação à violência, stalking, assédio sexual. De acordo com o Código Penal, cada infração conta com uma previsão legal e penas específicas estabelecidas.

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O Ministro Rogerio Schietti Cruz, do Superior Tribunal de Justiça, em decisão monocrática quando do julgamento do Habeas Corpus 717561 - SE (2022/0007084-0) que discutia, especialmente, a apuração de delito de transfobia - rejeitando a defesa que sustentava conduta é atípica, uma vez que não houve intenção do investigado de ofender a honra da vítima e somente criticar a reportagem de um periódico veiculada na internet -, destacou que "o discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações e manifestações que incitem a discriminação, que estimulem a hostilidade ou que provoquem a violência (física ou moral) contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero, não encontra amparo na liberdade constitucional de expressão e que a falta de informação a respeito do tema é o especial gatilho para a prática de atos de discriminação e até mesmo de ódio (...) porém não deve servir de justificativa para descaracterizar o cometimento do crime".

No âmbito cível, é possível a responsabilização do usuário para fins de retratação, indenização por danos morais e obrigações de fazer como a remoção do conteúdo reputado ofensivo. Os Tribunais do país já têm se manifestado nesse sentido, como se vê, por exemplo, do julgamento de recurso pelo TJDFT[4] ocorrido em 2021, no qual a Quinta Turma Cível condenou um usuário ao pagamento de indenização por danos morais, uma vez que evidenciada clara ofensa à honra subjetiva da mulher chamada, por meio de comentário em rede social, de mal-amada, agregada ao comentário de "é falta de sexo" e "rapariga".

O patriarcado é resultado de um processo histórico de anos, no entanto, é fundamental que sejam estimuladas e aplicadas as medidas à disposição da sociedade, do Estado e de pessoas jurídicas privadas. Além do incentivo a novos projetos e campanhas, o que não se deve fazer é calar diante de situações ou condutas praticadas pela "machosfera" ou qualquer outro grupo extremista. A participação contínua em políticas de diversidade e inclusão é necessária para avançarmos coletivamente na reconstrução de espaços físicos e virtuais mais saudáveis e justos.

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*Thays Bertoncini é advogada especialista em Direito Digital Aplicado e Direito das Plataformas Digitais pela FGV, pós-graduada em Direito Digital pelo ITS-Rio e sócia da Lee, Brock, Camargo Advogados (LBCA)

[1] "Red pill" ou pílula vermelha, na tradução livre, é uma associação ao filme Matrix (1999), em que o protagonista ganha duas pílulas e tem que escolher qual tomar: a azul, que lhe permite seguir vivendo em um mundo de ilusões; ou a vermelha, para adquirir consciência sobre a realidade que o cerca. No contexto da "machosfera", os homens "red pills" são os que se opõem ao "sistema que favorece as mulheres", enquanto os "blue pills" continuariam vivendo em ilusão e, portanto, seriam usados pelas mulheres.

[2] https://www.camara.leg.br/noticias/942988-projeto-de-lei-criminaliza-a-misoginia/

[3] "CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO PROVEDOR DE APLICAÇÃO. OBRIGAÇÃO DE FAZER. REMOÇÃO DE CONTEÚDO. FORNECIMENTO DE LOCALIZADOR URL DA PÁGINA. (...) 2. Necessidade de indicação clara e específica do localizador URL do conteúdo infringente para a validade de comando judicial que ordene sua remoção da internet. O fornecimento do URL é obrigação do requerente. 3. A necessidade de indicação do localizador URL não é apenas uma garantia aos provedores de aplicação, como forma de reduzir eventuais questões relacionadas à liberdade de expressão, mas também é um critério seguro para verificar o cumprimento das decisões judiciais que determinar a remoção de conteúdo na internet. 5. A ordem que determina a retirada de um conteúdo da internet deve ser proveniente do Poder Judiciário e, como requisito de validade, deve ser identificada claramente. 6. O Marco Civil da Internet elenca, entre os requisitos de validade da ordem judicial para a retirada de conteúdo infringente, a "identificação clara e específica do conteúdo", sob pena de nulidade, sendo necessário, portanto, a indicação do localizador URL. 7. Na hipótese, conclui-se pela impossibilidade de cumprir ordens que não contenham o conteúdo exato, indicado por localizador URL, a ser removido. (...)" STJ - REsp nº 1.698.647/SP. Rel. MINISTRA NANCY ANDRIGHI.  TERCEIRA TURMA. Julgamento: 06/02/2018

[4] TJ-DF 0704507-18.2019.8.07.0004, Relator: MARIA IVATÔNIA, Julgamento: 07/07/2021, 5ª Turma Cível, Publicado no DJE : 30/07/2021.

Thays Bertoncini. Foto: Divulgação

Mais um movimento assustador vem ganhando espaço na Internet. Quase superando a "cultura do cancelamento" - que é uma reação social negativa que tem como propósito principal punir alguém pelo seu ato, tido como reprovável, geralmente expondo, massivamente, a prática daquele comportamento em redes sociais - agora chegou a vez da "machosfera" piorar, e muito, o ambiente virtual.

Antes de tudo, é preciso lembrar que a misoginia é definida pelo dicionário como ódio ou aversão às mulheres e esta forma de opressão é centrada em uma visão sexista, que coloca a mulher numa relação de inferioridade em relação ao homem. O conceito da superioridade de gênero, estabelecido pelo patriarcado ao longo dos anos, enseja uma opressão que se manifesta em diversas esferas da vida social, como no mercado de trabalho, na política, na educação, na saúde, na segurança pública, na cultura e nas relações pessoais.

Entre as formas de opressão mais comuns contra as mulheres estão: a violência física, sexual e psicológica; a discriminação no mercado de trabalho e na carreira profissional; a desvalorização do trabalho doméstico e de cuidados; a limitação do acesso à educação e à saúde; a sub-representação política; a objetificação e sexualização do corpo feminino; a imposição de padrões estéticos e comportamentais estereotipados; a restrição ao exercício da autonomia e da liberdade individual, etc.

Nessa linha, conhecida por siglas e nomes diferentes (como "red pill"[1]), a "machosfera" traz um discurso misógino que busca diminuir e menosprezar mulheres. Não fosse isso suficiente, o movimento tem crescido e atraído seguidores, criando assim um mercado milionário nas redes sociais, que viabiliza a disseminação do ódio diante da promoção de conteúdos gratuitos e pagos por meio de assinaturas de cursos, livros, palestras, vídeos, etc.

A "machosfera" caminha em sentido contrário à evolução e potencializa crimes. Isso porque, o ódio contra mulheres, aliás, é o principal responsável pelo feminicídio, definido como circunstância qualificadora do crime de homicídio pela Lei 13.104/2015, uma vez que considera formas de agressões físicas e psicológicas, mutilações, abusos sexuais, torturas, perseguições, entre outras violências relacionadas direta ou indiretamente com o gênero feminino.

Apesar de ser objeto do Projeto de Lei Projeto de Lei 872/23[2] recentemente apresentado e pendente de aprovação no Congresso, a misoginia ainda não encontra amparo específico no ordenamento jurídico, tal como outras condutas previstas na Lei 7.716/1989, que define crimes resultantes de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, por exemplo.

Diante desse contexto absurdo, em pleno ano de 2023, como colaborar no combate deste retrocesso com as leis atualmente vigentes? O mais importante é ter em mente o óbvio: não se pode permitir a normalização de ideias misóginas trazidas pela "machosfera", ou por quem quer que seja.

A Constituição Federal garante a igualdade de direitos entre homens e mulheres, bem como a proteção contra qualquer tipo de discriminação ou violência. Por isso, qualquer manifestação capaz de diminuir mulheres deve ser combatida pelas autoridades competentes, pela sociedade civil, bem como pelas empresas privadas responsáveis por plataformas digitais.

Sob a ótica do ordenamento jurídico vigente, a pessoa ou o grupo vítima de agressões deve coletar provas capazes de evidenciar as condutas machistas e sexistas sofridas. No mundo virtual, isso significa salvar imagens, vídeos, mensagens e tudo aquilo que é direcionado na Internet, especialmente a partir de perfis aparentemente falsos ou anônimos.

Para tanto, vale lembrar de obter a URL específica do material cibernético, ou seja, o endereço eletrônico capaz de permitir a localização inequívoca do conteúdo em si ou do perfil do usuário em redes sociais, conforme determina o artigo 19, §1º do Marco Civil da Internet e a jurisprudência consolidada pelo Superior Tribunal de Justiça[3].

Na sequência, recomenda-se o comparecimento em delegacia para lavrar um boletim de ocorrência e também em cartório para, se possível, lavrar uma ata notarial. Este último instrumento público - no qual o tabelião documenta, de forma imparcial, um fato, uma situação ou uma circunstância presenciada por ele, perpetuando-os no tempo -, possui eficácia probatória, pois presumem verdadeiros os fatos nele contidos.

A partir disso, no âmbito civil, caso o usuário responsável pela propagação do conteúdo ofensivo não seja identificável de pronto, a vítima pode ingressar com um processo para a obtenção dos dados necessários. Com relação a provedores de aplicações (como é a hipótese de plataformas digitais, por exemplo), eles poderão, a partir de uma ordem judicial e dentro de um prazo de 6 meses estabelecido por lei, fornecer informações de IP, hora e data.

Após essa diligência de fornecimento de dados de IP é possível identificar o provedor de conexão responsável pela atribuição do referido número (como normalmente acontece com empresas de telefonia). Assim, a vítima poderá obter com o respectivo provedor de conexão as informações pessoais do usuário (nome, endereço, RG, CPF, etc.).

Uma vez identificado o usuário responsável pelo conteúdo ofensivo, no âmbito penal, as condutas praticadas dentro "machosfera" podem se enquadrar em crimes como difamação, injúria, calúnia, ameaça, incitação à violência, stalking, assédio sexual. De acordo com o Código Penal, cada infração conta com uma previsão legal e penas específicas estabelecidas.

O Ministro Rogerio Schietti Cruz, do Superior Tribunal de Justiça, em decisão monocrática quando do julgamento do Habeas Corpus 717561 - SE (2022/0007084-0) que discutia, especialmente, a apuração de delito de transfobia - rejeitando a defesa que sustentava conduta é atípica, uma vez que não houve intenção do investigado de ofender a honra da vítima e somente criticar a reportagem de um periódico veiculada na internet -, destacou que "o discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações e manifestações que incitem a discriminação, que estimulem a hostilidade ou que provoquem a violência (física ou moral) contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero, não encontra amparo na liberdade constitucional de expressão e que a falta de informação a respeito do tema é o especial gatilho para a prática de atos de discriminação e até mesmo de ódio (...) porém não deve servir de justificativa para descaracterizar o cometimento do crime".

No âmbito cível, é possível a responsabilização do usuário para fins de retratação, indenização por danos morais e obrigações de fazer como a remoção do conteúdo reputado ofensivo. Os Tribunais do país já têm se manifestado nesse sentido, como se vê, por exemplo, do julgamento de recurso pelo TJDFT[4] ocorrido em 2021, no qual a Quinta Turma Cível condenou um usuário ao pagamento de indenização por danos morais, uma vez que evidenciada clara ofensa à honra subjetiva da mulher chamada, por meio de comentário em rede social, de mal-amada, agregada ao comentário de "é falta de sexo" e "rapariga".

O patriarcado é resultado de um processo histórico de anos, no entanto, é fundamental que sejam estimuladas e aplicadas as medidas à disposição da sociedade, do Estado e de pessoas jurídicas privadas. Além do incentivo a novos projetos e campanhas, o que não se deve fazer é calar diante de situações ou condutas praticadas pela "machosfera" ou qualquer outro grupo extremista. A participação contínua em políticas de diversidade e inclusão é necessária para avançarmos coletivamente na reconstrução de espaços físicos e virtuais mais saudáveis e justos.

*Thays Bertoncini é advogada especialista em Direito Digital Aplicado e Direito das Plataformas Digitais pela FGV, pós-graduada em Direito Digital pelo ITS-Rio e sócia da Lee, Brock, Camargo Advogados (LBCA)

[1] "Red pill" ou pílula vermelha, na tradução livre, é uma associação ao filme Matrix (1999), em que o protagonista ganha duas pílulas e tem que escolher qual tomar: a azul, que lhe permite seguir vivendo em um mundo de ilusões; ou a vermelha, para adquirir consciência sobre a realidade que o cerca. No contexto da "machosfera", os homens "red pills" são os que se opõem ao "sistema que favorece as mulheres", enquanto os "blue pills" continuariam vivendo em ilusão e, portanto, seriam usados pelas mulheres.

[2] https://www.camara.leg.br/noticias/942988-projeto-de-lei-criminaliza-a-misoginia/

[3] "CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO PROVEDOR DE APLICAÇÃO. OBRIGAÇÃO DE FAZER. REMOÇÃO DE CONTEÚDO. FORNECIMENTO DE LOCALIZADOR URL DA PÁGINA. (...) 2. Necessidade de indicação clara e específica do localizador URL do conteúdo infringente para a validade de comando judicial que ordene sua remoção da internet. O fornecimento do URL é obrigação do requerente. 3. A necessidade de indicação do localizador URL não é apenas uma garantia aos provedores de aplicação, como forma de reduzir eventuais questões relacionadas à liberdade de expressão, mas também é um critério seguro para verificar o cumprimento das decisões judiciais que determinar a remoção de conteúdo na internet. 5. A ordem que determina a retirada de um conteúdo da internet deve ser proveniente do Poder Judiciário e, como requisito de validade, deve ser identificada claramente. 6. O Marco Civil da Internet elenca, entre os requisitos de validade da ordem judicial para a retirada de conteúdo infringente, a "identificação clara e específica do conteúdo", sob pena de nulidade, sendo necessário, portanto, a indicação do localizador URL. 7. Na hipótese, conclui-se pela impossibilidade de cumprir ordens que não contenham o conteúdo exato, indicado por localizador URL, a ser removido. (...)" STJ - REsp nº 1.698.647/SP. Rel. MINISTRA NANCY ANDRIGHI.  TERCEIRA TURMA. Julgamento: 06/02/2018

[4] TJ-DF 0704507-18.2019.8.07.0004, Relator: MARIA IVATÔNIA, Julgamento: 07/07/2021, 5ª Turma Cível, Publicado no DJE : 30/07/2021.

Thays Bertoncini. Foto: Divulgação

Mais um movimento assustador vem ganhando espaço na Internet. Quase superando a "cultura do cancelamento" - que é uma reação social negativa que tem como propósito principal punir alguém pelo seu ato, tido como reprovável, geralmente expondo, massivamente, a prática daquele comportamento em redes sociais - agora chegou a vez da "machosfera" piorar, e muito, o ambiente virtual.

Antes de tudo, é preciso lembrar que a misoginia é definida pelo dicionário como ódio ou aversão às mulheres e esta forma de opressão é centrada em uma visão sexista, que coloca a mulher numa relação de inferioridade em relação ao homem. O conceito da superioridade de gênero, estabelecido pelo patriarcado ao longo dos anos, enseja uma opressão que se manifesta em diversas esferas da vida social, como no mercado de trabalho, na política, na educação, na saúde, na segurança pública, na cultura e nas relações pessoais.

Entre as formas de opressão mais comuns contra as mulheres estão: a violência física, sexual e psicológica; a discriminação no mercado de trabalho e na carreira profissional; a desvalorização do trabalho doméstico e de cuidados; a limitação do acesso à educação e à saúde; a sub-representação política; a objetificação e sexualização do corpo feminino; a imposição de padrões estéticos e comportamentais estereotipados; a restrição ao exercício da autonomia e da liberdade individual, etc.

Nessa linha, conhecida por siglas e nomes diferentes (como "red pill"[1]), a "machosfera" traz um discurso misógino que busca diminuir e menosprezar mulheres. Não fosse isso suficiente, o movimento tem crescido e atraído seguidores, criando assim um mercado milionário nas redes sociais, que viabiliza a disseminação do ódio diante da promoção de conteúdos gratuitos e pagos por meio de assinaturas de cursos, livros, palestras, vídeos, etc.

A "machosfera" caminha em sentido contrário à evolução e potencializa crimes. Isso porque, o ódio contra mulheres, aliás, é o principal responsável pelo feminicídio, definido como circunstância qualificadora do crime de homicídio pela Lei 13.104/2015, uma vez que considera formas de agressões físicas e psicológicas, mutilações, abusos sexuais, torturas, perseguições, entre outras violências relacionadas direta ou indiretamente com o gênero feminino.

Apesar de ser objeto do Projeto de Lei Projeto de Lei 872/23[2] recentemente apresentado e pendente de aprovação no Congresso, a misoginia ainda não encontra amparo específico no ordenamento jurídico, tal como outras condutas previstas na Lei 7.716/1989, que define crimes resultantes de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, por exemplo.

Diante desse contexto absurdo, em pleno ano de 2023, como colaborar no combate deste retrocesso com as leis atualmente vigentes? O mais importante é ter em mente o óbvio: não se pode permitir a normalização de ideias misóginas trazidas pela "machosfera", ou por quem quer que seja.

A Constituição Federal garante a igualdade de direitos entre homens e mulheres, bem como a proteção contra qualquer tipo de discriminação ou violência. Por isso, qualquer manifestação capaz de diminuir mulheres deve ser combatida pelas autoridades competentes, pela sociedade civil, bem como pelas empresas privadas responsáveis por plataformas digitais.

Sob a ótica do ordenamento jurídico vigente, a pessoa ou o grupo vítima de agressões deve coletar provas capazes de evidenciar as condutas machistas e sexistas sofridas. No mundo virtual, isso significa salvar imagens, vídeos, mensagens e tudo aquilo que é direcionado na Internet, especialmente a partir de perfis aparentemente falsos ou anônimos.

Para tanto, vale lembrar de obter a URL específica do material cibernético, ou seja, o endereço eletrônico capaz de permitir a localização inequívoca do conteúdo em si ou do perfil do usuário em redes sociais, conforme determina o artigo 19, §1º do Marco Civil da Internet e a jurisprudência consolidada pelo Superior Tribunal de Justiça[3].

Na sequência, recomenda-se o comparecimento em delegacia para lavrar um boletim de ocorrência e também em cartório para, se possível, lavrar uma ata notarial. Este último instrumento público - no qual o tabelião documenta, de forma imparcial, um fato, uma situação ou uma circunstância presenciada por ele, perpetuando-os no tempo -, possui eficácia probatória, pois presumem verdadeiros os fatos nele contidos.

A partir disso, no âmbito civil, caso o usuário responsável pela propagação do conteúdo ofensivo não seja identificável de pronto, a vítima pode ingressar com um processo para a obtenção dos dados necessários. Com relação a provedores de aplicações (como é a hipótese de plataformas digitais, por exemplo), eles poderão, a partir de uma ordem judicial e dentro de um prazo de 6 meses estabelecido por lei, fornecer informações de IP, hora e data.

Após essa diligência de fornecimento de dados de IP é possível identificar o provedor de conexão responsável pela atribuição do referido número (como normalmente acontece com empresas de telefonia). Assim, a vítima poderá obter com o respectivo provedor de conexão as informações pessoais do usuário (nome, endereço, RG, CPF, etc.).

Uma vez identificado o usuário responsável pelo conteúdo ofensivo, no âmbito penal, as condutas praticadas dentro "machosfera" podem se enquadrar em crimes como difamação, injúria, calúnia, ameaça, incitação à violência, stalking, assédio sexual. De acordo com o Código Penal, cada infração conta com uma previsão legal e penas específicas estabelecidas.

O Ministro Rogerio Schietti Cruz, do Superior Tribunal de Justiça, em decisão monocrática quando do julgamento do Habeas Corpus 717561 - SE (2022/0007084-0) que discutia, especialmente, a apuração de delito de transfobia - rejeitando a defesa que sustentava conduta é atípica, uma vez que não houve intenção do investigado de ofender a honra da vítima e somente criticar a reportagem de um periódico veiculada na internet -, destacou que "o discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações e manifestações que incitem a discriminação, que estimulem a hostilidade ou que provoquem a violência (física ou moral) contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero, não encontra amparo na liberdade constitucional de expressão e que a falta de informação a respeito do tema é o especial gatilho para a prática de atos de discriminação e até mesmo de ódio (...) porém não deve servir de justificativa para descaracterizar o cometimento do crime".

No âmbito cível, é possível a responsabilização do usuário para fins de retratação, indenização por danos morais e obrigações de fazer como a remoção do conteúdo reputado ofensivo. Os Tribunais do país já têm se manifestado nesse sentido, como se vê, por exemplo, do julgamento de recurso pelo TJDFT[4] ocorrido em 2021, no qual a Quinta Turma Cível condenou um usuário ao pagamento de indenização por danos morais, uma vez que evidenciada clara ofensa à honra subjetiva da mulher chamada, por meio de comentário em rede social, de mal-amada, agregada ao comentário de "é falta de sexo" e "rapariga".

O patriarcado é resultado de um processo histórico de anos, no entanto, é fundamental que sejam estimuladas e aplicadas as medidas à disposição da sociedade, do Estado e de pessoas jurídicas privadas. Além do incentivo a novos projetos e campanhas, o que não se deve fazer é calar diante de situações ou condutas praticadas pela "machosfera" ou qualquer outro grupo extremista. A participação contínua em políticas de diversidade e inclusão é necessária para avançarmos coletivamente na reconstrução de espaços físicos e virtuais mais saudáveis e justos.

*Thays Bertoncini é advogada especialista em Direito Digital Aplicado e Direito das Plataformas Digitais pela FGV, pós-graduada em Direito Digital pelo ITS-Rio e sócia da Lee, Brock, Camargo Advogados (LBCA)

[1] "Red pill" ou pílula vermelha, na tradução livre, é uma associação ao filme Matrix (1999), em que o protagonista ganha duas pílulas e tem que escolher qual tomar: a azul, que lhe permite seguir vivendo em um mundo de ilusões; ou a vermelha, para adquirir consciência sobre a realidade que o cerca. No contexto da "machosfera", os homens "red pills" são os que se opõem ao "sistema que favorece as mulheres", enquanto os "blue pills" continuariam vivendo em ilusão e, portanto, seriam usados pelas mulheres.

[2] https://www.camara.leg.br/noticias/942988-projeto-de-lei-criminaliza-a-misoginia/

[3] "CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO PROVEDOR DE APLICAÇÃO. OBRIGAÇÃO DE FAZER. REMOÇÃO DE CONTEÚDO. FORNECIMENTO DE LOCALIZADOR URL DA PÁGINA. (...) 2. Necessidade de indicação clara e específica do localizador URL do conteúdo infringente para a validade de comando judicial que ordene sua remoção da internet. O fornecimento do URL é obrigação do requerente. 3. A necessidade de indicação do localizador URL não é apenas uma garantia aos provedores de aplicação, como forma de reduzir eventuais questões relacionadas à liberdade de expressão, mas também é um critério seguro para verificar o cumprimento das decisões judiciais que determinar a remoção de conteúdo na internet. 5. A ordem que determina a retirada de um conteúdo da internet deve ser proveniente do Poder Judiciário e, como requisito de validade, deve ser identificada claramente. 6. O Marco Civil da Internet elenca, entre os requisitos de validade da ordem judicial para a retirada de conteúdo infringente, a "identificação clara e específica do conteúdo", sob pena de nulidade, sendo necessário, portanto, a indicação do localizador URL. 7. Na hipótese, conclui-se pela impossibilidade de cumprir ordens que não contenham o conteúdo exato, indicado por localizador URL, a ser removido. (...)" STJ - REsp nº 1.698.647/SP. Rel. MINISTRA NANCY ANDRIGHI.  TERCEIRA TURMA. Julgamento: 06/02/2018

[4] TJ-DF 0704507-18.2019.8.07.0004, Relator: MARIA IVATÔNIA, Julgamento: 07/07/2021, 5ª Turma Cível, Publicado no DJE : 30/07/2021.

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