Não se mostra como surpresa, para quem quer que seja, o visível aumento do campo de atuação do crime organizado. O seu enfrentamento se insere numa das pautas de maior relevância para a sociedade, que, aliás, padece diante desse flagelo, que coloca muitas pessoas nas fileiras da desgraça, corrói a infância e destrói futuros de jovens, cooptados por milícias, arregimentados por facções narcotraficantes, aliciados por gangues de roubos de cargas, de armas, de celulares ou de receptadores, dentre muitos outros cenários nefastos da criminalidade, inclusive na esfera dos crimes tributários e práticas de corrupção.
O vertiginoso aumento da criminalidade deriva de causas em relação às quais não se tenciona aqui abordar. Fato é que se faz preciso enxergar o crime organizado como uma empresa e, exatamente por isso, não podemos deixar de atentar para o fato de que os criminosos chegaram a um nível de “evolução” e aperfeiçoamento na sua atividade, que investem, muitas vezes, em lavagem de dinheiro, por meio de pessoas jurídicas.
Não é incomum detectarmos, por exemplo, o indevido uso de postos de combustíveis, frotas de veículos para transportes de pessoas, ou empresas de ramos diversos, como alimentação, servindo ao crime organizado, valendo-se da aparência de estruturas geradoras de lícitas riquezas e empregos.
Não se desconhece, nessa quadra de atividade criminosa, que muitas pessoas jurídicas são criadas até mesmo com nomes de pessoas que sequer sabem que fazem parte de certos quadros sociais. Há a cooptação de pessoas menos esclarecidas, ou que tiveram os seus dados pessoais furtados, roubados ou “vazados” na internet. O que era, há algum tempo, fato acidental, tornou-se fato provável e corriqueiro para muitas pessoas desavisadas ou, pior, tornou-se “meio de vida” para necessitados que emprestam os seus nomes e dados de individualização para figurarem em sociedades que irão servir, precisamente, ao crime organizado.
É bem verdade que a dinâmica típica da atividade do comércio, acoplada à necessidade de facilitar a circulação de riquezas, a produção de bens, e a prestação de serviços, proporcionaram a desburocratização na constituição de pessoas jurídicas, simples (conhecidas da população como civis) e comerciais. O desprendimento das amarras que dificultavam a “abertura de um negócio” e a saída do terreno que obstava a colocação, em funcionamento, de uma atividade, devem mesmo ser comemorados, pelo importante incentivo ao empreendedorismo.
As medidas tendentes à desburocratização merecem ser festejadas, porque contribuem enormemente para o avanço da atividade comercial e, por conseguinte, para o desenvolvimento da sociedade, como um todo, gerando, e fazendo circular, riquezas.
Não podemos, no entanto, deixar de nos preocupar com o fato de que a facilitação na criação de pessoas jurídicas, sem controle mais estrito, pode estar, também, contribuindo para as organizações criminosas, que são fortalecidas nessa ficção jurídica ou técnica a serviço da ordem econômica e encontram, nas fissuras e brechas legais, a oportunidade para, em aparente legalidade, incursionar pela atividade criminosa.
Na medida em que se comete ao Ministério Público o protagonismo na persecução penal, e levando-se em consideração o atual panorama, acima desenhado, em pálidos traços, releva-se fora de dúvidas a conclusão de que essa Instituição deve vir a tomar parte, cumprindo papel de fundamental importância, na criação e fiscalização de pessoas jurídicas. A sua proatividade tem o potencial de coibir a constituição de empresas que venham a se alojar na senda delitiva. Bem pode o Ministério Público atuar na prevenção, com marcante presença, obstando a criação de empresas que estejam na iminência de ser utilizadas para o fomento do crime.
A Lei n. 8.934/94 dispõe sobre o Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins e, obviamente, foi criada para um contexto de desenvolvimento econômico, mas não contempla um dispositivo sequer que permita o acompanhamento por autoridades que possam detectar, já na origem, a malversação de pessoas jurídicas e a realização de suas atividades para fins escusos.
Na legislação se supõe que a atuação das Instituições voltadas ao enfrentamento do crime se dê diante de fato já consumado. Noutras palavras, apenas quando se percebe o uso indevido da pessoa jurídica é que será tomada a providências legal, como por exemplo, a suspensão ou extinção da sociedade etc., havendo quando muito eventual investigação de falsidade ideológica de quem se vale desse artifício, se o crime fim não for identificado.
Mas, revela-se imperioso se antecipar a esse momento. E agir profilaticamente, na prevenção do dano que poderá ser causado.
Nessa ordem de ideias é que se pergunta qual o papel efetivo que o Ministério Público pode ter no nascedouro dessas pessoas jurídicas. Sabe-se que o Ministério Público atua na constituição de Fundações e pode requerer a extinção das sociedades civis que atuem em desvio de finalidade. De lege ferenda, bem é chegada a hora de se autorizar que o Ministério Público atue concretamente na fiscalização das sociedades empresárias ou mesmo nas sociedades simples, com o olhar preventivo de combate ao crime organizado. Nos registros dos atos constitutivos e nas suas alterações pode ser identificada a destinação ilícita e nesse mesmo instante se obstar o seguimento criminoso e se responsabilizar os infratores, em atuação eficaz e efetiva que reduz ou até mesmo aniquila as consequências do ilícito.
É de se indagar: alguém se nega a constatar que é na criação de pessoas jurídicas “de fachada” que se acha o gérmen valioso do crime organizado? Alguém se recusa a duvidar que o objetivo primacial dos responsáveis pelas organizações criminosas é usufruir do dinheiro ilícito, oriundo de infrações penais e, para tanto, precisam incorporá-lo à economia formal e o primeiro passo para isso é constituição uma pessoa jurídica?
Não se está aqui a patrocinar, absolutamente, o “engessamento” na constituição de legítimas pessoas jurídicas ou empresas, mas é preciso encontrar uma forma para conferir mais segurança à sociedade, bem como a eventuais pessoas inocentes que estejam, muitas vezes, sendo usadas como “laranjas”, nesse terreno encoberto pelo discurso da desburocratização.
Despretensiosamente, esperamos dos poderes constituídos que esse tema venha a ser tratado como mais uma ferramenta a serviço do combate ao crime organizado, aproveitando a expertise do Ministério Público, que deve ser chamado à atribuição relevante, no campo de incidência da Lei n. 8.934/94, dentre outras, destinada à estrutura jurídica que vem sendo desvirtuada por criminosos que se aproveitam de vácuos fiscalizatórios, no nascedouro das empresas.
Mas, a acidez da realidade pode ter a virtude de apontar para alternativas que visem a melhora no enfrentamento do tema e, nesse passo, o que se mostra necessário, a nosso modesto entendimento, a par de eventual alteração legislativa, como acima se sugeriu, é a criação, em um primeiro momento, de grupo especializado, que conte com profissionais possuidores de conhecimentos em Direito Penal Econômico, Tributário, Comercial, em geral e, especialmente, Societário, e que recebam investimentos para o desenvolvimento do adequado trabalho.
Sabe-se que no MPSP há Promotorias de Justiça que atuam nas Falências, Recuperação Judicial e no combate à sonegação fiscal. Esta última, por obvio, trabalha para o aumento da arrecadação, para o Estado, e no combate aos crimes fiscais.
O que se faz imperioso, neste momento, é a criação de estrutura para o correto e adequado combate ao crime organizado. Promotoria de Justiça especializada em organização econômica criminosa, que possa labutar em parceria com outras Instituições, tendo a possibilidade de manejar Ação Civil Pública, com o escopo de pugnar pela suspenção das atividades empresariais suspeitas e, a partir daí, todos os seus desdobramentos.
As organizações criminosas se aperfeiçoam e evoluem. É preciso que o mesmo ocorra com as Instituições Públicas incumbidas de combatê-las. O desafio está posto. O futuro mostrará o acerto ou desacerto das decisões tomadas. O custo, no caso de escolha inadequada, será exageradamente elevado.
*José Carlos Mascari Bonilha e Cassio Roberto Conserino, membros do MPSP