Notícias e artigos do mundo do Direito: a rotina da Polícia, Ministério Público e Tribunais

Enfrentamento da violência contra a mulher em 2022: constatações e lições para o futuro


Por Amanda Bessoni Boudoux Salgado
Amanda Bessoni Boudoux Salgado. FOTO: DIVULGAÇÃO  Foto: Estadão

O ano de 2022 se encerra com uma avaliação ambígua e bastante desafiadora do enfrentamento à violência contra a mulher no país. Ao mesmo tempo em que, nos últimos anos, expandiu-se a legislação a respeito do tema, inclusive no âmbito criminal (com a tipificação do feminicídio e, mais recentemente, da perseguição, da violência psicológica contra a mulher e da violência política de gênero), registrando-se a necessidade de atenção a fatores de risco à vida ou integridade física da mulher, bem como ao aperfeiçoamento da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), muitos retrocessos foram identificados na formulação e implementação das políticas públicas derivadas do ordenamento jurídico.

Igualmente preocupantes são as constatações relacionadas ao orçamento destinado à pauta e os empecilhos rotineiramente noticiados à concretização de direitos já garantidos pelas mulheres, tais como o aborto em caso de gravidez resultante de estupro e em hipóteses de risco à vida da gestante e feto anencéfalo, esta última afirmada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, em 2012.

continua após a publicidade

Levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) [1] revelou que o ano de 2022 teve o menor valor destinado pelo governo federal para o combate à violência contra a mulher, em comparação aos demais anos da gestão de Jair Bolsonaro. O valor proposto foi 94% menor do que o constante nos projetos de orçamentos de 2016 a 2019, recursos extremamente necessários para o funcionamento das redes de proteção das mulheres vítimas de violência baseada no gênero.

Para o ano de 2023, o cenário é ainda mais drástico, pois o valor destinado pelo plano orçamentário especificamente às políticas de combate à violência contra a mulher se restringe a R$ 13 milhões alocados na Casa da Mulher Brasileira, conforme análise do Inesc. [2]

Vale destacar que a Lei 14.316/2022 (com efeitos financeiros a partir do exercício subsequente) obrigou a destinação de, no mínimo, 5% dos recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública a ações de enfrentamento da violência contra a mulher. Exemplos dessas ações são aquelas descritas no art. 35 da Lei Maria da Penha, como a criação de centros de atendimento integral, casas-abrigos para mulheres e seus dependentes em situação de violência doméstica e familiar, delegacias, serviços de saúde, centros de perícia médico-legal, programas e campanhas e centros de educação e reabilitação para agressores.

continua após a publicidade

Os dados já compilados com relação ao ano de 2022 demonstram a urgência na operacionalização e efetivação dos mecanismos já instituídos por lei, a exemplo do Plano Nacional de Prevenção e Enfrentamento à Violência contra a Mulher, estabelecido pela Lei 14.330/2022 como instrumento de implementação da Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS), em ações a serem implementadas em conjunto com órgãos e instâncias estaduais, municipais e do Distrito Federal responsáveis pela rede de prevenção e atendimento de mulheres em situação de violência. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública [3], o primeiro semestre de 2022 teve a média de 4 feminicídios por dia (699 vítimas), número 3,2% mais elevado que o verificado no primeiro semestre de 2021. Os registros de estupro e estupro de vulnerável cresceram 12,5% (totalizando 29.285 vítimas do sexo feminino) em relação ao primeiro semestre do ano anterior, retornando a patamares pré-pandemia, em que os números apresentaram redução, muito provavelmente em razão das dificuldades impostas pela Covid-19 ao acesso das vítimas aos serviços de denúncia e assistência.

Merecem ampla atenção dos formuladores de políticas públicas os frequentes relatos de violações de direitos reprodutivos e sexuais das mulheres caracterizadoras de violência obstétrica, o que recomenda um tratamento específico da questão, de modo a estabelecer os direitos de gestantes antes, durante e após o parto.

Episódios noticiados em 2022 revelaram o impacto da violência sexual contra mulheres e meninas em diversas esferas de garantias, afetando até mesmo a realização do aborto em hipóteses legalmente permitidas, a exemplo do caso de menina de 11 anos que engravidou após ter sido vítima de estupro e foi impedida de realizar o procedimento em Santa Catarina [4], sob argumentos genéricos (e não dispostos na lei) de que o tempo de gestação não mais permitiria a interrupção da gravidez. Tais situações revelam distorções do texto legal que nem sequer deveriam ser expostas, pois desnecessária a autorização judicial para a intervenção legalmente admitida.

continua após a publicidade

Esta breve retrospectiva dos principais aspectos relacionados à violência contra a mulher em 2022 situa os desafios que se apresentam nos próximos anos, mostrando-se fundamental um profundo reposicionamento das políticas relacionadas à pauta, inclusive no que diz respeito às suas premissas, para observar as particularidades da violência de gênero contra a mulher, distanciá-la de uma perspectiva de assistência à família e reconhecer que os direitos das mulheres não estão necessariamente atrelados à maternidade e ao cuidado de pessoas vulneráveis.

De modo similar, é evidente que as seguidas e profundas reduções orçamentárias geraram um déficit na qualidade e na quantidade de políticas desempenhadas com esse propósito, de modo a exigir a compreensão das estratégias que ainda podem ser executadas para o direcionamento de recursos às ações de combate à violência contra a mulher, em especial as que permitem a execução dos mecanismos previstos na Lei Maria da Penha.

NOTAS:

continua após a publicidade

[1] Disponível em: https://www.inesc.org.br/wp-content/uploads/2022/03/8-de-Marco_Orcamento.docx.pdf

[2] Disponível em: https://www.inesc.org.br/ploa-2023-continuidade-do-desmonte-das-politicas-sociais/

[3] Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/12/violencia-contra-meninas-mulheres-2022-1sem.pdf

continua após a publicidade

[4] Disponível em: https://www.estadao.com.br/brasil/juiza-santa-catarina-nega-aborto-menina-de-11-anos-estupro/

*Amanda Bessoni Boudoux Salgado, doutora em Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Advogada do escritório Alamiro Velludo Salvador Netto Advogados

Amanda Bessoni Boudoux Salgado. FOTO: DIVULGAÇÃO  Foto: Estadão

O ano de 2022 se encerra com uma avaliação ambígua e bastante desafiadora do enfrentamento à violência contra a mulher no país. Ao mesmo tempo em que, nos últimos anos, expandiu-se a legislação a respeito do tema, inclusive no âmbito criminal (com a tipificação do feminicídio e, mais recentemente, da perseguição, da violência psicológica contra a mulher e da violência política de gênero), registrando-se a necessidade de atenção a fatores de risco à vida ou integridade física da mulher, bem como ao aperfeiçoamento da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), muitos retrocessos foram identificados na formulação e implementação das políticas públicas derivadas do ordenamento jurídico.

Igualmente preocupantes são as constatações relacionadas ao orçamento destinado à pauta e os empecilhos rotineiramente noticiados à concretização de direitos já garantidos pelas mulheres, tais como o aborto em caso de gravidez resultante de estupro e em hipóteses de risco à vida da gestante e feto anencéfalo, esta última afirmada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, em 2012.

Levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) [1] revelou que o ano de 2022 teve o menor valor destinado pelo governo federal para o combate à violência contra a mulher, em comparação aos demais anos da gestão de Jair Bolsonaro. O valor proposto foi 94% menor do que o constante nos projetos de orçamentos de 2016 a 2019, recursos extremamente necessários para o funcionamento das redes de proteção das mulheres vítimas de violência baseada no gênero.

Para o ano de 2023, o cenário é ainda mais drástico, pois o valor destinado pelo plano orçamentário especificamente às políticas de combate à violência contra a mulher se restringe a R$ 13 milhões alocados na Casa da Mulher Brasileira, conforme análise do Inesc. [2]

Vale destacar que a Lei 14.316/2022 (com efeitos financeiros a partir do exercício subsequente) obrigou a destinação de, no mínimo, 5% dos recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública a ações de enfrentamento da violência contra a mulher. Exemplos dessas ações são aquelas descritas no art. 35 da Lei Maria da Penha, como a criação de centros de atendimento integral, casas-abrigos para mulheres e seus dependentes em situação de violência doméstica e familiar, delegacias, serviços de saúde, centros de perícia médico-legal, programas e campanhas e centros de educação e reabilitação para agressores.

Os dados já compilados com relação ao ano de 2022 demonstram a urgência na operacionalização e efetivação dos mecanismos já instituídos por lei, a exemplo do Plano Nacional de Prevenção e Enfrentamento à Violência contra a Mulher, estabelecido pela Lei 14.330/2022 como instrumento de implementação da Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS), em ações a serem implementadas em conjunto com órgãos e instâncias estaduais, municipais e do Distrito Federal responsáveis pela rede de prevenção e atendimento de mulheres em situação de violência. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública [3], o primeiro semestre de 2022 teve a média de 4 feminicídios por dia (699 vítimas), número 3,2% mais elevado que o verificado no primeiro semestre de 2021. Os registros de estupro e estupro de vulnerável cresceram 12,5% (totalizando 29.285 vítimas do sexo feminino) em relação ao primeiro semestre do ano anterior, retornando a patamares pré-pandemia, em que os números apresentaram redução, muito provavelmente em razão das dificuldades impostas pela Covid-19 ao acesso das vítimas aos serviços de denúncia e assistência.

Merecem ampla atenção dos formuladores de políticas públicas os frequentes relatos de violações de direitos reprodutivos e sexuais das mulheres caracterizadoras de violência obstétrica, o que recomenda um tratamento específico da questão, de modo a estabelecer os direitos de gestantes antes, durante e após o parto.

Episódios noticiados em 2022 revelaram o impacto da violência sexual contra mulheres e meninas em diversas esferas de garantias, afetando até mesmo a realização do aborto em hipóteses legalmente permitidas, a exemplo do caso de menina de 11 anos que engravidou após ter sido vítima de estupro e foi impedida de realizar o procedimento em Santa Catarina [4], sob argumentos genéricos (e não dispostos na lei) de que o tempo de gestação não mais permitiria a interrupção da gravidez. Tais situações revelam distorções do texto legal que nem sequer deveriam ser expostas, pois desnecessária a autorização judicial para a intervenção legalmente admitida.

Esta breve retrospectiva dos principais aspectos relacionados à violência contra a mulher em 2022 situa os desafios que se apresentam nos próximos anos, mostrando-se fundamental um profundo reposicionamento das políticas relacionadas à pauta, inclusive no que diz respeito às suas premissas, para observar as particularidades da violência de gênero contra a mulher, distanciá-la de uma perspectiva de assistência à família e reconhecer que os direitos das mulheres não estão necessariamente atrelados à maternidade e ao cuidado de pessoas vulneráveis.

De modo similar, é evidente que as seguidas e profundas reduções orçamentárias geraram um déficit na qualidade e na quantidade de políticas desempenhadas com esse propósito, de modo a exigir a compreensão das estratégias que ainda podem ser executadas para o direcionamento de recursos às ações de combate à violência contra a mulher, em especial as que permitem a execução dos mecanismos previstos na Lei Maria da Penha.

NOTAS:

[1] Disponível em: https://www.inesc.org.br/wp-content/uploads/2022/03/8-de-Marco_Orcamento.docx.pdf

[2] Disponível em: https://www.inesc.org.br/ploa-2023-continuidade-do-desmonte-das-politicas-sociais/

[3] Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/12/violencia-contra-meninas-mulheres-2022-1sem.pdf

[4] Disponível em: https://www.estadao.com.br/brasil/juiza-santa-catarina-nega-aborto-menina-de-11-anos-estupro/

*Amanda Bessoni Boudoux Salgado, doutora em Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Advogada do escritório Alamiro Velludo Salvador Netto Advogados

Amanda Bessoni Boudoux Salgado. FOTO: DIVULGAÇÃO  Foto: Estadão

O ano de 2022 se encerra com uma avaliação ambígua e bastante desafiadora do enfrentamento à violência contra a mulher no país. Ao mesmo tempo em que, nos últimos anos, expandiu-se a legislação a respeito do tema, inclusive no âmbito criminal (com a tipificação do feminicídio e, mais recentemente, da perseguição, da violência psicológica contra a mulher e da violência política de gênero), registrando-se a necessidade de atenção a fatores de risco à vida ou integridade física da mulher, bem como ao aperfeiçoamento da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), muitos retrocessos foram identificados na formulação e implementação das políticas públicas derivadas do ordenamento jurídico.

Igualmente preocupantes são as constatações relacionadas ao orçamento destinado à pauta e os empecilhos rotineiramente noticiados à concretização de direitos já garantidos pelas mulheres, tais como o aborto em caso de gravidez resultante de estupro e em hipóteses de risco à vida da gestante e feto anencéfalo, esta última afirmada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, em 2012.

Levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) [1] revelou que o ano de 2022 teve o menor valor destinado pelo governo federal para o combate à violência contra a mulher, em comparação aos demais anos da gestão de Jair Bolsonaro. O valor proposto foi 94% menor do que o constante nos projetos de orçamentos de 2016 a 2019, recursos extremamente necessários para o funcionamento das redes de proteção das mulheres vítimas de violência baseada no gênero.

Para o ano de 2023, o cenário é ainda mais drástico, pois o valor destinado pelo plano orçamentário especificamente às políticas de combate à violência contra a mulher se restringe a R$ 13 milhões alocados na Casa da Mulher Brasileira, conforme análise do Inesc. [2]

Vale destacar que a Lei 14.316/2022 (com efeitos financeiros a partir do exercício subsequente) obrigou a destinação de, no mínimo, 5% dos recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública a ações de enfrentamento da violência contra a mulher. Exemplos dessas ações são aquelas descritas no art. 35 da Lei Maria da Penha, como a criação de centros de atendimento integral, casas-abrigos para mulheres e seus dependentes em situação de violência doméstica e familiar, delegacias, serviços de saúde, centros de perícia médico-legal, programas e campanhas e centros de educação e reabilitação para agressores.

Os dados já compilados com relação ao ano de 2022 demonstram a urgência na operacionalização e efetivação dos mecanismos já instituídos por lei, a exemplo do Plano Nacional de Prevenção e Enfrentamento à Violência contra a Mulher, estabelecido pela Lei 14.330/2022 como instrumento de implementação da Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS), em ações a serem implementadas em conjunto com órgãos e instâncias estaduais, municipais e do Distrito Federal responsáveis pela rede de prevenção e atendimento de mulheres em situação de violência. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública [3], o primeiro semestre de 2022 teve a média de 4 feminicídios por dia (699 vítimas), número 3,2% mais elevado que o verificado no primeiro semestre de 2021. Os registros de estupro e estupro de vulnerável cresceram 12,5% (totalizando 29.285 vítimas do sexo feminino) em relação ao primeiro semestre do ano anterior, retornando a patamares pré-pandemia, em que os números apresentaram redução, muito provavelmente em razão das dificuldades impostas pela Covid-19 ao acesso das vítimas aos serviços de denúncia e assistência.

Merecem ampla atenção dos formuladores de políticas públicas os frequentes relatos de violações de direitos reprodutivos e sexuais das mulheres caracterizadoras de violência obstétrica, o que recomenda um tratamento específico da questão, de modo a estabelecer os direitos de gestantes antes, durante e após o parto.

Episódios noticiados em 2022 revelaram o impacto da violência sexual contra mulheres e meninas em diversas esferas de garantias, afetando até mesmo a realização do aborto em hipóteses legalmente permitidas, a exemplo do caso de menina de 11 anos que engravidou após ter sido vítima de estupro e foi impedida de realizar o procedimento em Santa Catarina [4], sob argumentos genéricos (e não dispostos na lei) de que o tempo de gestação não mais permitiria a interrupção da gravidez. Tais situações revelam distorções do texto legal que nem sequer deveriam ser expostas, pois desnecessária a autorização judicial para a intervenção legalmente admitida.

Esta breve retrospectiva dos principais aspectos relacionados à violência contra a mulher em 2022 situa os desafios que se apresentam nos próximos anos, mostrando-se fundamental um profundo reposicionamento das políticas relacionadas à pauta, inclusive no que diz respeito às suas premissas, para observar as particularidades da violência de gênero contra a mulher, distanciá-la de uma perspectiva de assistência à família e reconhecer que os direitos das mulheres não estão necessariamente atrelados à maternidade e ao cuidado de pessoas vulneráveis.

De modo similar, é evidente que as seguidas e profundas reduções orçamentárias geraram um déficit na qualidade e na quantidade de políticas desempenhadas com esse propósito, de modo a exigir a compreensão das estratégias que ainda podem ser executadas para o direcionamento de recursos às ações de combate à violência contra a mulher, em especial as que permitem a execução dos mecanismos previstos na Lei Maria da Penha.

NOTAS:

[1] Disponível em: https://www.inesc.org.br/wp-content/uploads/2022/03/8-de-Marco_Orcamento.docx.pdf

[2] Disponível em: https://www.inesc.org.br/ploa-2023-continuidade-do-desmonte-das-politicas-sociais/

[3] Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/12/violencia-contra-meninas-mulheres-2022-1sem.pdf

[4] Disponível em: https://www.estadao.com.br/brasil/juiza-santa-catarina-nega-aborto-menina-de-11-anos-estupro/

*Amanda Bessoni Boudoux Salgado, doutora em Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Advogada do escritório Alamiro Velludo Salvador Netto Advogados

Amanda Bessoni Boudoux Salgado. FOTO: DIVULGAÇÃO  Foto: Estadão

O ano de 2022 se encerra com uma avaliação ambígua e bastante desafiadora do enfrentamento à violência contra a mulher no país. Ao mesmo tempo em que, nos últimos anos, expandiu-se a legislação a respeito do tema, inclusive no âmbito criminal (com a tipificação do feminicídio e, mais recentemente, da perseguição, da violência psicológica contra a mulher e da violência política de gênero), registrando-se a necessidade de atenção a fatores de risco à vida ou integridade física da mulher, bem como ao aperfeiçoamento da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), muitos retrocessos foram identificados na formulação e implementação das políticas públicas derivadas do ordenamento jurídico.

Igualmente preocupantes são as constatações relacionadas ao orçamento destinado à pauta e os empecilhos rotineiramente noticiados à concretização de direitos já garantidos pelas mulheres, tais como o aborto em caso de gravidez resultante de estupro e em hipóteses de risco à vida da gestante e feto anencéfalo, esta última afirmada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, em 2012.

Levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) [1] revelou que o ano de 2022 teve o menor valor destinado pelo governo federal para o combate à violência contra a mulher, em comparação aos demais anos da gestão de Jair Bolsonaro. O valor proposto foi 94% menor do que o constante nos projetos de orçamentos de 2016 a 2019, recursos extremamente necessários para o funcionamento das redes de proteção das mulheres vítimas de violência baseada no gênero.

Para o ano de 2023, o cenário é ainda mais drástico, pois o valor destinado pelo plano orçamentário especificamente às políticas de combate à violência contra a mulher se restringe a R$ 13 milhões alocados na Casa da Mulher Brasileira, conforme análise do Inesc. [2]

Vale destacar que a Lei 14.316/2022 (com efeitos financeiros a partir do exercício subsequente) obrigou a destinação de, no mínimo, 5% dos recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública a ações de enfrentamento da violência contra a mulher. Exemplos dessas ações são aquelas descritas no art. 35 da Lei Maria da Penha, como a criação de centros de atendimento integral, casas-abrigos para mulheres e seus dependentes em situação de violência doméstica e familiar, delegacias, serviços de saúde, centros de perícia médico-legal, programas e campanhas e centros de educação e reabilitação para agressores.

Os dados já compilados com relação ao ano de 2022 demonstram a urgência na operacionalização e efetivação dos mecanismos já instituídos por lei, a exemplo do Plano Nacional de Prevenção e Enfrentamento à Violência contra a Mulher, estabelecido pela Lei 14.330/2022 como instrumento de implementação da Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS), em ações a serem implementadas em conjunto com órgãos e instâncias estaduais, municipais e do Distrito Federal responsáveis pela rede de prevenção e atendimento de mulheres em situação de violência. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública [3], o primeiro semestre de 2022 teve a média de 4 feminicídios por dia (699 vítimas), número 3,2% mais elevado que o verificado no primeiro semestre de 2021. Os registros de estupro e estupro de vulnerável cresceram 12,5% (totalizando 29.285 vítimas do sexo feminino) em relação ao primeiro semestre do ano anterior, retornando a patamares pré-pandemia, em que os números apresentaram redução, muito provavelmente em razão das dificuldades impostas pela Covid-19 ao acesso das vítimas aos serviços de denúncia e assistência.

Merecem ampla atenção dos formuladores de políticas públicas os frequentes relatos de violações de direitos reprodutivos e sexuais das mulheres caracterizadoras de violência obstétrica, o que recomenda um tratamento específico da questão, de modo a estabelecer os direitos de gestantes antes, durante e após o parto.

Episódios noticiados em 2022 revelaram o impacto da violência sexual contra mulheres e meninas em diversas esferas de garantias, afetando até mesmo a realização do aborto em hipóteses legalmente permitidas, a exemplo do caso de menina de 11 anos que engravidou após ter sido vítima de estupro e foi impedida de realizar o procedimento em Santa Catarina [4], sob argumentos genéricos (e não dispostos na lei) de que o tempo de gestação não mais permitiria a interrupção da gravidez. Tais situações revelam distorções do texto legal que nem sequer deveriam ser expostas, pois desnecessária a autorização judicial para a intervenção legalmente admitida.

Esta breve retrospectiva dos principais aspectos relacionados à violência contra a mulher em 2022 situa os desafios que se apresentam nos próximos anos, mostrando-se fundamental um profundo reposicionamento das políticas relacionadas à pauta, inclusive no que diz respeito às suas premissas, para observar as particularidades da violência de gênero contra a mulher, distanciá-la de uma perspectiva de assistência à família e reconhecer que os direitos das mulheres não estão necessariamente atrelados à maternidade e ao cuidado de pessoas vulneráveis.

De modo similar, é evidente que as seguidas e profundas reduções orçamentárias geraram um déficit na qualidade e na quantidade de políticas desempenhadas com esse propósito, de modo a exigir a compreensão das estratégias que ainda podem ser executadas para o direcionamento de recursos às ações de combate à violência contra a mulher, em especial as que permitem a execução dos mecanismos previstos na Lei Maria da Penha.

NOTAS:

[1] Disponível em: https://www.inesc.org.br/wp-content/uploads/2022/03/8-de-Marco_Orcamento.docx.pdf

[2] Disponível em: https://www.inesc.org.br/ploa-2023-continuidade-do-desmonte-das-politicas-sociais/

[3] Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/12/violencia-contra-meninas-mulheres-2022-1sem.pdf

[4] Disponível em: https://www.estadao.com.br/brasil/juiza-santa-catarina-nega-aborto-menina-de-11-anos-estupro/

*Amanda Bessoni Boudoux Salgado, doutora em Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Advogada do escritório Alamiro Velludo Salvador Netto Advogados

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.