A trajetória do ex-procurador da República Deltan Dallagnol, que coordenou a Lava Jato no auge da operação, espelha os rumos da própria investigação. Quando o trabalho da força-tarefa bateu recorde de popularidade, com a prisão de caciques políticos e poderosos empresários, pilhados no maior escândalo de corrupção visto no País, Deltan alcançou status de herói nacional. Ao deixar o Ministério Público Federal, em novembro de 2021, em meio a polêmicas sobre os métodos usados na investigação e suspeitas de direcionamento político e conluio com o ex-juiz Sérgio Moro, enfrentou a ressaca da reação anti-lavajatista. Foi eleito o deputado federal mais votado do Paraná, mas em menos de quatro meses teve o mandato cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Em entrevista ao Estadão, o ex-procurador diz que não se arrepende de ter abandonado a carreira no Ministério Público. Embora tenha perdido o mandato, virou “embaixador” do Partido Novo. Também nega que a aventura política de artífices da operação tenha contribuído para o descrédito da Lava Jato. “Estamos fazendo política no campo certo, da política, e para proteger a Lava Jato onde ela mais precisa ser protegida”, afirma. Sérgio Moro foi outro que trocou de emprego, passou da magistratura para o Ministério da Justiça no governo Jair Bolsonaro e depois para o Senado Federal.
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Fora do Ministério Público, o ex-procurador, assim como Sérgio Moro, tem se mostrado alinhado ao bolsonarismo, sobretudo ao fazer coro às críticas dirigidas ao Supremo Tribunal Federal (STF). Ele atribui à Corte a derrocada da Lava Jato. “Hoje políticos corruptos não têm medo de ser presos porque têm a segurança de que o STF garantirá sua impunidade.”
Deltan nega que a operação tivesse um direcionamento ideológico ou desse preferência a alvos ligados ao PT. “A Lava Jato nunca pretendeu derrotar ou derrotou o petismo ou partidos.”
Foi ele quem liderou a denúncia que frustrou os planos políticos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições de 2018 e o levou à prisão por suspeita de receber propinas da OAS na forma de um apartamento triplex no Guarujá, no litoral paulista.
Ao detalhar as acusações à imprensa, o então procurador recorreu a um PowerPoint, que colocava o petista como líder de uma organização criminosa. Embora tenha sido condenado a pagar uma indenização por danos morais ao presidente, não considera que a apresentação tenha sido um erro.
“Foi uma forma didática de cumprir esse princípio que seguimos fielmente ao longo de toda a operação, garantindo a publicidade das investigações e processos.”
Veja a íntegra da entrevista com o ex-procurador:
Quem acabou com a Lava Jato?
O Supremo Tribunal Federal. Ao acabar com a prisão em segunda instância e mandar os casos de corrupção para Justiça Eleitoral, garantiu a anulação dos casos e que ninguém mais vai ser preso por corrupção no Brasil. É simples assim. Além disso, o STF passou a anular os casos com justificativas esdrúxulas que não se sustentam, dizendo por exemplo que as empreiteiras assessoradas por batalhões dos mais bem pagos advogados do Brasil teriam sido coagidas a assinar acordos de leniência. O pseudoargumento é uma piada pronta, especialmente quando vemos os empreiteiros dando depoimentos às risadas e notamos que foi o próprio STF que homologou os seus acordos de delação premiada, o que significa que ele mesmo reconheceu e validou a voluntariedade, a ausência de qualquer coação, nas colaborações. Hoje políticos corruptos não têm medo de ser presos porque têm a segurança de que o STF garantirá sua impunidade. Pesquisa da Quaest da última semana apontou que 3 a cada 4 brasileiros entende que o cancelamento dos casos pelo STF fomenta a corrupção no Brasil, o que é verdade.
Ministros do Supremo tiveram participação na derrocada da operação? Por quê?
Ministros do STF anularam casos com justificativas vazias, destruíram instrumentos de combate à corrupção como prisão em segunda instância e a competência da Justiça Federal, pressionaram e pressionam o sistema de Justiça para perseguir os agentes públicos que combateram a corrupção por meio de pedidos de inquéritos ilegais e se uniram à narrativa lulopetista de que a Lava Jato teria cometido abusos e excessos. O irônico, ou hipócrita, é que o STF faz coisas mil vezes piores do que acusa a Lava Jato de ter feito, nos inquéritos e processos conduzidos pelo ministro Alexandre de Moraes, com buscas e apreensões infundadas como as de [Carlos] Jordy e Carlos Bolsonaro, basta ler as decisões, com restrições de acesso aos autos por advogados, com a investigação e condenação de pessoas sem foro privilegiado, com a acusação e condenação de pessoas sem individualização de condutas e provas e com prisões preventivas mantidas por meses sem uma acusação criminal contra a pessoa, ilegalidades manifestas que nunca aconteceram na Lava Jato. O STF procura ciscos nos olhos da Lava Jato enquanto há troncos em seus próprios olhos.
A aventura política de artífices da operação não contribuiu para o descrédito da Lava Jato? O sr. saiu candidato a deputado, Moro a senador.
Estamos fazendo política no campo certo, da política, e para proteger a Lava Jato onde ela mais precisa ser protegida. O errado é ver ministros fazendo política dentro do STF, chegando até a usar seu poder para emplacar apadrinhados em variados cargos públicos. O errado é usar o poder do Judiciário para derrotar o bolsonarismo. Um tribunal não deve favorecer ou perseguir uma ideologia. Ele atua sobre atos ilícitos, ponto. Sair do Judiciário para a política para lutar pela Lava Jato e pelo combate à corrupção no palco em que isso é mais importante mostra desprendimento em relação a cargos estáveis e disputadíssimos com o objetivo de servir mais e melhor o País. E o resultado das urnas é a maior prova disso. A sociedade tanto entendeu a importância da luta na política que me tornou o deputado federal mais votado do Paraná e o sétimo mais votado do Brasil, com 344.917 votos. Além disso, o senador Sérgio Moro venceu uma eleição muito disputada para senador, com apenas uma vaga e concorrentes de qualidade, com quase 2 milhões de votos. Logo depois que a força-tarefa da Lava Jato foi extinta, em 2021, uma pesquisa Exame/Ideia mostrou que 80% dos brasileiros apoiavam a operação. O brasileiro tem saudade da Lava Jato e o único modo de revivê-la é por meio da política.
A Lava Jato avançou o sinal passando a investigar integrantes de vários partidos?
A Lava Jato nunca pretendeu derrotar ou derrotou o petismo ou partidos. A Lava Jato nunca focou em pessoas e fez fishing expedition, diferente do que acontece no STF. A Lava Jato simplesmente fez o que devia ser feito. Seguiu os fatos, as provas e aplicou a lei. A Lava Jato apenas seguiu o caminho das propinas. Quando uma única empreiteira mencionou em sua delação 415 políticos de 26 partidos, incluindo quase um terço dos senadores, quase um terço dos ministros e quase metade dos governadores, ela demonstrou que o sistema está podre. Errado seria fechar os olhos para isso. Errado seria selecionar alvos. Errado seria não cumprir nosso dever constitucional ou legal de ir às últimas consequências para investigar e punir corruptos. A Lava Jato só não foi mais longe porque o STF limitou artificialmente os casos que Curitiba poderia investigar e processar. E se o Brasil fosse um país sério, muito mais gente teria sido punida, especialmente pelo STF.
O que o sr. pretendia exatamente com a criação do fundo bilionário com o dinheiro recuperado da Petrobras? Para o ministro Gilmar Mendes o objetivo seria criar um “fundo eleitoral”.
O ministro Gilmar Mendes espalha narrativas levianas e fantasiosas. Ele deveria responder por que deixou de apoiar a operação e o combate à corrupção, coincidentemente, quando ela avançou sobre partidos que historicamente têm vários aliados políticos seus, como o PSDB. Ele mesmo reconheceu, numa entrevista recente, que atuou politicamente ao decidir sobre a prisão em segunda instância. Ele deveria ser chamado a responder pelos abusos que comete ao dar entrevistas sobre casos em andamento e ao injuriar agentes públicos, violando as leis brasileiras, inclusive a lei da magistratura. Gilmar Mendes é caso de impeachment. Desafiei ele a um debate mediado para conversarmos, em alto nível, sobre o que ele trata de modo irresponsável na imprensa. Se Gilmar “Mentes” fala que seria um fundo eleitoral, ele que prove, só que nunca provará porque é uma mentira. Sobre o acordo com a Petrobras que previa a criação do fundo que ele desvirtua, foi algo considerado legal e legítimo por oito órgãos públicos que examinaram profundamente o assunto.
A ida de Moro para o governo Bolsonaro não contaminou e desacreditou a operação reforçando suspeitas sobre uma estratégia da Lava Jato para tirar Lula das eleições de 2018?
Minha visão sobre isso não mudou desde aquela época: acredito que Moro foi para o Ministério da Justiça para proteger a Lava Jato contra a reação do sistema político que vimos acontecer num caso muito semelhante, a operação Mãos Limpas na Itália. Agora, a crítica perdeu qualquer legitimidade depois que o ministro Ricardo Lewandowski se tornou ministro da Justiça de Lula, depois de votar pela anulação de sua condenação e após anos dando decisões favoráveis a Lula, ao PT e a investigados na Lava Jato. Lewandowski foi essencial para que Lula saísse da cadeia e se tornasse presidente. E aí? Lewandowski premeditou tudo isso? Deu essas decisões para favorecer um candidato, para se tornar ministro dele depois? Se essa crítica ainda é feita ao Moro, deve ser feita com ainda mais razão e rigor contra Lewandowski, que havia sido indicado pelo próprio Lula ao STF.
O sr. continua convencido de que o triplex do Guarujá é mesmo de Lula?
Mais importante do que minha opinião, que é a mesma, são as provas do processo que convenceram 20 procuradores da Lava Jato, um juiz, um procurador regional, três desembargadores, um subprocurador-geral da república e quatro ministros, de forma unânime, incluindo ministros e desembargadores indicados pelo próprio Lula ou pela Dilma. Todos que mergulharam no estudo dos fatos e provas do processo chegaram à mesma conclusão de que Lula foi beneficiado por meio do triplex, de obras e de uma cozinha de luxo pagas pela empreiteira OAS, favorecida com contratos superfaturados na gestão do PT. Estão lá na denúncia do MPF, estão lá na sentença de Moro, no acórdão do TRF4 e no acórdão do STJ, instâncias superiores que confirmaram a condenação de Lula. Nada muda essa realidade, nem mesmo a anulação da condenação de Lula pelo STF, que jamais o absolveu, ou a presunção de inocência que ele compartilha com aqueles que tiveram seus processos anulados ou prescritos na Justiça. Aliás, ele alcançou a mesma impunidade que praticamente todos os acusados por corrupção alcançaram na história brasileira.
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As delações premiadas foram “impostas” pela força-tarefa? As prisões foram pedidas pelos procuradores para pressionar e levar empresários, executivos e doleiros a fazer delação?
Ah, é, aqueles empreiteiros acompanhados de batalhões dos melhores e mais bem pagos advogados do Brasil, que aparecem nos vídeos gravados de seus depoimentos à vontade, dando risadas enquanto contam os esquemas, foram submetidos a um “pau de arara do século XXI”... só pode ser brincadeira. O próprio STF, que agora espalha essa narrativa, foi quem homologou a maioria dos acordos de delação premiada, reconhecendo expressamente a voluntariedade do acordo após audiência individualizada com cada um dos réus colaboradores. Contudo, com um governo Lula que quer reescrever a história e com o qual, na linguagem de ministros, o STF vive em “lua de mel”, essa deturpação da realidade é conveniente. O problema são os dados, são os fatos. Mais de 80% dos delatores da Lava Jato estavam soltos quando fizeram colaboração, e o MPF nunca ofereceu acordo para ninguém, sempre quem nos procurava era o delator, por meio de seu advogado. O próprio Emílio Odebrecht, por exemplo, que escreveu um livro dizendo que havia “tortura” na Lava Jato, nunca foi preso e mesmo assim fez acordo. Os vídeos da delação dele estão aí na internet para quem quiser ver, dele sorridente, à vontade, confortável, comentando sobre como os petistas saíram de apetite de jacaré para apetite de crocodilo quando se tratava de recursos para campanhas eleitorais. Contudo, essa pergunta sobre pressão para colaborar deveria ser direcionada para o ministro Alexandre de Moraes, que manteve Mauro Cid preso por mais de quatro meses sem denúncia, o que é ilegal e a Lava Jato nunca fez, porque sempre denunciou os réus presos no prazo legal. No dia em que Mauro Cid assinou a delação, o ministro o soltou da cadeia, deixando no ar aquela sensação de que ele só foi solto porque delatou. Anderson Torres ficou preso meses sem acusação e Silvinei Vasques está preso há mais de meio ano sem denúncia, o que é ilegal. Gilmar Mendes vai criticar Alexandre de Moraes? Toffoli vai chamar os métodos de Moraes de “pau de arara do século XXI”?
A força-tarefa bisbilhotou a vida - e o patrimônio - de ministros do STF?
Jamais, e isso é fácil de se verificar, porque todos os acessos a sistemas de investigação e bases de dados ficam registrados. Se alguém tem alguma suspeita disso, que vá lá nos sistemas e olhe. Quando o então presidente do STJ, Humberto Martins, mandou abrir inquérito contra os procuradores da Lava Jato por suspeita de que nós teríamos investigado ministros da corte, com base naquelas supostas mensagens hackeadas, ficou provado que nunca fizemos isso e o inquérito foi arquivado no STJ. Era tudo mentira de quem queria atacar e deslegitimar a operação.
O PowerPoint foi um erro?
O PowerPoint foi uma forma didática de cumprir esse princípio que seguimos fielmente ao longo de toda a operação garantindo a publicidade das investigações e processos após a deflagração das operações. O PowerPoint pode ter sido inconveniente pra muita gente, e podemos arrolar aqui prós e contras, mas foi uma forma legal e legítima de apresentar uma denúncia por crimes graves de forma simples e didática. A denúncia, aliás, foi confirmada por condenações em três instâncias, antes de o STF cometer, aí sim, um verdadeiro erro, que foi a anulação das condenações de Lula.
Acredita que seria exonerado se tivesse continuado no Ministério Público Federal?
Os processos que o PT e seus apaniguados moveram contra mim não tinham base nenhuma. A imensa maioria já havia sido arquivada. Os que restavam basicamente eram lastreados em distorções da Vaza Jato, que não poderiam gerar uma condenação já que eram baseados em provas ilegais e nunca passaram de fofocas querendo bancar de escândalo. Isso não quer dizer que eles não fossem tentar inventar alguma coisa, porque fui punido duas vezes por ter criticado o Supremo e Renan Calheiros, exercendo minha liberdade de expressão e de crítica de forma educada, respeitosa, mas firme. Além disso, há uma vingança do sistema contra procuradores, policiais e juízes que trabalharam na operação. Você não verá ninguém da ativa dando entrevista nos 10 anos da Lava Jato, porque há um ambiente de intimidação e medo. Querem domesticar as instituições de combate à corrupção.
Podemos assistir uma operação nos moldes da Lava Jato novamente no Brasil?
Hoje não, mas no futuro, sim. O STF destruiu não só condenações mas também os instrumentos de combate à corrupção, como a prisão em segunda instância e a competência da Justiça Federal. O Congresso acabou com a lei de improbidade e aprovou uma lei contra abusos de autoridades que ameaça quem enfrenta poderosos. Além disso, eles estão se vingando de quem combate à corrupção, caçando e cassando, com cedilha e dois “ss”, indo atrás do patrimônio da família, para que ninguém mais ouse enfrentar corruptos poderosos no Brasil. Os políticos corruptos não têm mais medo de punição porque sabem que o STF garantirá sua impunidade. Sempre foi assim ao longo de 500 anos de história. Foi a Lava Jato que rompeu esse ciclo de impunidade, colocando abaixo da lei quem estava acima dela e, agora, volta a estar. Ao mesmo tempo, da mesma forma como a Lava Jato nasceu uma vez, pode nascer de novo, a partir da indignação e revolta da população com a corrupção e sua impunidade. Pelo voto em pessoas comprometidas com essa causa, o sistema anticorrupção precisa ser e pode ser reconstruído. É uma questão de tempo até termos um novo Petrolão. Aliás, um novo Petrolão pode estar acontecendo agora mesmo, no Brasil, esperando para ser descoberto. Mais cedo ou mais tarde, a Lava Jato voltará.