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‘Com certeza teve uma reação da classe política’, diz pesquisadora sobre derrubada da Lava Jato


Em entrevista ao ‘Estadão’ sobre os 10 anos da operação, cientista política Fabiana Rodrigues analisa que, em um primeiro momento, políticos ficaram quase ‘imobilizados’ ante manifestações populares de apoio à Lava Jato; para ela, mudança de governo e anulação de processos impulsionaram movimento para barrar ação de procuradores e do ex-juiz Sérgio Moro

Por Rayssa Motta e Julia Affonso
Entrevista comFabiana Rodriguescientista política

“Passamos a montar aqui um grande quebra-cabeça, com pelo menos 14 conjuntos de evidências que se juntam e apontam para Lula como peça central da Lava Jato.” Assim, em setembro de 2016, o ex-procurador da República Deltan Dallagnol, na época coordenador da Operação Lava Jato, iniciava a apresentação da denúncia que, em menos de dois anos, levaria o hoje presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à prisão por suspeita de receber propinas da OAS na forma de um apartamento triplex no Guarujá, no litoral paulista.

O episódio ficou marcado no imaginário sobre a Lava Jato porque, além de ter sido a primeira denúncia sobre Lula, Deltan recorreu a uma apresentação visual, um PowerPoint que tornou-se foco de polêmica, para detalhar as acusações contra o petista. Diante de uma plateia de jornalistas e cinegrafistas, o procurador cravou que o líder do PT era o chefe de uma organização criminosa que teria desviado recursos da Petrobras.

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Na época, a Lava Jato estava no auge. As suspeitas de direcionamento político da investigação e os questionamentos sobre os métodos usados pela força-tarefa ainda não tinham ganhado tração. Com amplo apoio da opinião pública e espaço no noticiário, a operação tirava o sono de lideranças políticas e dos maiores empresários do País.

Mas como um grupo de procuradores baseado em Curitiba foi capaz de causar uma reviravolta tão grande no xadrez político nacional? A pergunta guiou a pesquisa desenvolvida pela cientista política Fabiana Rodrigues, do grupo Judiciário e Democracia (Jude), da USP, que tomou a forma do livro Operação Lava Jato: aprendizado institucional e ação estratégica na Justiça Criminal.

Para Fabiana, a Lava Jato é resultado da combinação de um processo incremental de aprimoramento institucional do sistema de justiça criminal, que precede a operação, e da ação estratégica e voluntarista dos protagonistas da investigação.

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O livro também descreve como a mobilização popular foi uma ferramenta importante para os resultados da operação. “Eles sabiam que o apoio popular era necessário para desgastar os alvos”, explica Fabiana, em entrevista ao Estadão.

Fabiana Rodrigues: "A sociedade deveria priorizar o controle para não precisar do processo criminal." Foto: Werther Santana

O ritmo imprimido às investigações é outro trunfo identificado pela pesquisadora. Para pegar emprestado um exemplo do livro, foram centenas de conduções coercitivas até o Supremo Tribunal Federal (STF) barrar o mecanismo.

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“A Lava Jato, quando acelera, ganha uma vantagem comparativa. Não dá tempo dos tribunais analisarem e entenderem o que está acontecendo. Como a opinião pública está mobilizada contra qualquer ato que tente ‘obstruir’ a Lava Jato, os tribunais ficam em uma situação de: ‘Na dúvida, deixa como está, corrige depois’”, afirma.

A reação, como se sabe, tardou, mas chegou. O modelo de forças-tarefas foi extinto pela Procuradoria-Geral da República (PGR) em 2021, na gestão Augusto Aras, após 79 fases da operação, e a classe política aprovou mudanças legislativas que deram mais segurança ante investigações criminais, como a lei de abuso de autoridade.

“No início, durante um bom tempo, acho que a classe política ficou meio imobilizada. Manifestação de rua mexe muito com os políticos, eles realmente mudam o curso de ação a depender da mobilização popular. Quando muda o governo e os processos são anulados, fica muito mais fácil. A Vaza Jato também deslegitima a operação”, diagnostica.

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“Nem tudo é ruim, algumas mudanças são aprimoramentos. A classe política aproveitou o momento para duas coisas: diminuir as chances de acontecer de novo algo como a Lava Jato e corrigir problemas”, completa.

Veja a íntegra da entrevista com a cientista política:

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No livro, você apresenta duas condições que teriam sido necessárias para o sucesso da Operação Lava Jato: o aprendizado institucional no combate à corrupção e a ação voluntarista de atores do sistema de justiça. Alguma outra foi importante?

Essas duas condições continuam sendo os fatores explicativos mais importantes, na minha avaliação, mas tem outras coisas que entram tangencialmente no livro e podem ser agregadas para contribuir na explicação, porque essas duas condições não aconteceram no vácuo, elas acontecem em um contexto. Por exemplo, a crise econômica do governo. A Lava Jato, usando ferramentas de aprendizado institucional e uma ação voluntarista, conseguiu mobilizar o apoio da opinião pública por meio da mídia. Somando tudo isso, acabaram atingindo a legitimidade do governo. Mas isso também entra no elemento do voluntarismo, porque eles sabiam que o apoio popular era necessário para desgastar os alvos, o governo, as elites. Fez parte da estratégia e foram bem sucedidos em implementá-la.

Essa dimensão do aprendizado institucional é destrinchada no livro em alguns aspectos, como a ampliação de atos de cooperação internacional em matéria penal, uma evolução organizacional na Justiça Federal, o avanço da tecnologia e algumas reformas legislativas que antecederam a Lava Jato. Esse último aspecto gira em torno de mudanças promovidas por atores do próprio sistema político, que depois se viram na mira da investigação. Você argumenta que a classe política não pode antever os efeitos das mudanças que ela própria aprovou. Agora, no pós-Lava Jato, você acha que o sistema político “acordou”? Você vê uma reação da classe?

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Com certeza teve uma reação. No início, durante um bom tempo, acho que a classe política ficou meio imobilizada. Manifestação de rua mexe muito com os políticos, eles realmente mudam o curso de ação a depender da mobilização popular. As primeiras reações são discretas, como tentar indicar membros de tribunais mais garantistas, que não tivessem medo de enfrentar a opinião pública. Quando muda o governo e os processos são anulados, fica muito mais fácil. A Vaza Jato também deslegitima a operação, e o alvo vira a Lava Jato. A classe política conseguiu aprovar, por exemplo, a lei de abuso de autoridade, a lei de improbidade, o juiz de garantias. E nem tudo é ruim, algumas mudanças são aprimoramentos. A classe política aproveitou o momento para duas coisas: diminuir as chances de acontecer de novo algo como a Lava Jato e corrigir problemas.

O resultado da Lava Jato não foi o esperado. Não houve simplesmente alternância de poder, de sair o PT. Surgiu uma liderança autocrata de extrema-direita que desorganizou todo o sistema político-partidário.

Fabiana Rodrigues sobre ascensão de Jair Bolsonaro

O fator “tempo” parece atravessar bastante o diagnóstico que você apresenta sobre a Lava Jato. Ela está lá quando você fala da percepção que antecedia a operação, de morosidade e ineficiência do sistema de justiça no controle criminal da corrupção. Aparece também quando fala do fluxo de tramitação dos processos e aponta que houve uma “agilidade seletiva” no andamento das ações, o que você defende que teria contribuído inclusive para o constrangimento à delação. Surge ainda quando você descreve o descompasso entre a agilidade da Lava Jato e o ritmo geral do Judiciário, o que teria permitido, por exemplo, centenas de conduções coercitivas até o Supremo Tribunal Federal proibi-las. Para você, a gestão estratégica do tempo foi o maior ou um dos maiores trunfos da Lava Jato para obter resultados?

Sim, para manter a opinião pública mobilizada, para não dar tempo dos tribunais corrigirem... O tempo faz muita diferença na justiça, porque os processos são, por natureza, lentos. O ritmo normal da justiça é lento. E tem que ser assim, de alguma forma, porque você está mexendo com o que tem de mais sério, que é a privação de liberdade. E os tribunais demoram mesmo para receber tudo, para ler, para superar a fila de processos. A Lava Jato, quando acelera, ganha uma vantagem comparativa. Não dá tempo dos tribunais analisarem e entenderem o que está acontecendo. Como a opinião pública está mobilizada contra qualquer ato que tente “obstruir” a Lava Jato, os tribunais ficam em uma situação de: “Na dúvida, deixa como está, corrige depois”.

Outro ponto é que, ao agilizar os procedimentos, a Lava Jato oferece um incentivo para os próprios operadores da justiça acelerarem. Quando há um interesse coletivo em saber sobre um processo, os operadores ficam mais preocupados. É uma questão de racionalidade, você se preocupa mais em não atrasar, em não errar. Esses processos não ficam esquecidos, de jeito nenhum, muito pelo contrário. Tem uma endogenia. Uma coisa alimenta outra.

Capa do livro 'Lava Jato - Aprendizado Institucional e Ação Estratégica na Justiça', escrito pela juíza federal e cientista política Fabiana Rodrigues. Foto: Reprodução/ Editora WMF Martins Fontes

Por que o STF mudou de posição em relação à Lava Jato?

Os ministros têm perfis. Alguns são mais garantistas, como o ministro Gilmar Mendes. Outros têm uma veia mais moralista, do combate à corrupção. Para esses últimos, acho que a chave começa a mudar quando eles percebem que houve coisas erradas. A Vaza Jato tem um papel importante. Acho que tem relação também com uma tentativa de proteção do próprio sistema de justiça, da imagem do Judiciário e do Supremo.

Outro ponto é que o resultado da Lava Jato não foi o esperado. Não houve simplesmente alternância de poder, de sair o PT. Surgiu uma liderança autocrata de extrema-direita que desorganizou todo o sistema político-partidário.

A Vaza Jato também traz elementos que indicam que a Lava Jato era tão ambiciosa e tinha tão pouco freio, que queria atingir ministros do STF, do TCU, do STJ... Aflora também um elemento de autoproteção.

Outro ponto que chama atenção no livro é que, em vários momentos, você detecta brechas ou “zonas cinzentas” que permitiram a ação estratégica dos protagonistas da operação. Para citar um exemplo, você destaca a falta de detalhamento da lei que regulamenta a colaboração premiada, o que, segundo a pesquisa, teria ampliado a margem de atuação da força-tarefa e permitido que fossem incluídas, por exemplo, cláusulas que restringiram os recursos dos réus e, por consequência, a interferência de tribunais superiores sobre os acordos. Voltando ao aprendizado institucional, você percebe um esforço para regulamentar esses aspectos, a partir do que a Lava Jato ensinou?

É um processo incremental, como o fluxo da história no longo prazo. É uma linha ascendente, mas que tem altos e baixos no caminho. Acho que estamos em uma direção de aprimoramento. A Lava Jato fez um pouco isso. Eles viram quais eram os problemas que levavam ao fracasso das ações penais e tentaram corrigir. Algumas vezes, corretamente. Tem vários erros que eles não repetiram. A forma de fundamentar, por exemplo. Houve um cuidado no trabalho que é lícito, é legal, é aprendizado. Não é que a Lava Jato foi destruída, muita gente foi condenada, muito dinheiro foi apreendido, porque erros sistemáticos foram corrigidos. Só que eles ultrapassaram essas barreiras e cometeram outros erros, dolosamente.

Eu vejo um processo de correção, de detalhamento de algumas regras, tanto infralegais quanto legislativas. O Congresso, por exemplo, introduziu mais descrições de requisitos para a prisão, para as medidas cautelares. Também existem iniciativas dentro do sistema de justiça, no Ministério Público, no CNJ (Conselho Nacional de Justiça), no CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público). Foram elaborados manuais sobre cooperação internacional, sobre a delação mesmo. Estão regulamentando para criar padronizações e aprimorar os procedimentos, para que os instrumentos fiquem dentro da legalidade, tanto para prevenir abusos quanto para evitar nulidades.

A competência da Justiça Eleitoral para julgar casos de corrupção conexos aos crimes de campanha gera uma inflexão no combate à corrupção?

Embora a Justiça Eleitoral não seja preparada para processar casos criminais, não houve uma mudança na interpretação dos tribunais em relação ao tema. Sempre foi assim. Quando tem conexão com crime eleitoral, quem prevalece é a Justiça especializada, que é a eleitoral. Na prática, a Lava Jato burlou essas regras, porque sabia que seria um problema, que eles não poderiam manter os casos. A Lava Jato “escondeu” os crimes eleitorais no enquadramento jurídico conferido às ações. E isso veio à tona. Realmente, foi um revés imposto pelo STF, um banho de água fria, mas não foi uma mudança.

O exercício do direito de defesa ficou mais difícil depois da Lava Jato?

O processo penal, na prática, é muito diferente de acordo com o réu. Para quem não tem acesso a grandes bancas de advogados, o próprio juiz precisa ser meio garantista, para assegurar direitos que, por vezes, as pessoas nem sabem que têm. A diferença é muito clara em relação às elites políticas e econômicas. Nesses casos, o direito de defesa chega a ser abusivo. Há uma litigiosidade quase antiética, que foi um dos fatores que indignou os atores da Lava Jato. Como a operação fez vingar a colaboração premiada, surgiu um outro perfil de advogado, que entra mais na lógica consensual. A Lava Jato, de alguma forma, conseguiu dar uma atenuada nessa diferença, mas ainda segue um sistema desigual.

Em que direção o sistema de justiça deveria caminhar pós-Lava Jato?

A democracia brasileira é nova. São só 30 anos de construção desse aparato. Nós estamos em um processo de ajuste, em um movimento de equalização. A Lava Jato contribuiu, de alguma forma, para “democratizar” o sistema de justiça criminal, mas prender não é suficiente para resolver o problema da corrupção. A gente precisa refletir melhor sobre o processo penal. O resultado do processo penal é o menos eficiente, socialmente, porque significa que tudo deu errado, o crime aconteceu. Ele é o caminho que a gente deveria evitar. Existe um desânimo coletivo com a justiça, uma sensação de impunidade, muito por conta de uma percepção errada que a Lava Jato disseminou, de valorização da sanção de encarceramento. Acho que o problema é antecedente: a sociedade deveria priorizar o controle para não precisar do processo criminal.

“Passamos a montar aqui um grande quebra-cabeça, com pelo menos 14 conjuntos de evidências que se juntam e apontam para Lula como peça central da Lava Jato.” Assim, em setembro de 2016, o ex-procurador da República Deltan Dallagnol, na época coordenador da Operação Lava Jato, iniciava a apresentação da denúncia que, em menos de dois anos, levaria o hoje presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à prisão por suspeita de receber propinas da OAS na forma de um apartamento triplex no Guarujá, no litoral paulista.

O episódio ficou marcado no imaginário sobre a Lava Jato porque, além de ter sido a primeira denúncia sobre Lula, Deltan recorreu a uma apresentação visual, um PowerPoint que tornou-se foco de polêmica, para detalhar as acusações contra o petista. Diante de uma plateia de jornalistas e cinegrafistas, o procurador cravou que o líder do PT era o chefe de uma organização criminosa que teria desviado recursos da Petrobras.

Na época, a Lava Jato estava no auge. As suspeitas de direcionamento político da investigação e os questionamentos sobre os métodos usados pela força-tarefa ainda não tinham ganhado tração. Com amplo apoio da opinião pública e espaço no noticiário, a operação tirava o sono de lideranças políticas e dos maiores empresários do País.

Mas como um grupo de procuradores baseado em Curitiba foi capaz de causar uma reviravolta tão grande no xadrez político nacional? A pergunta guiou a pesquisa desenvolvida pela cientista política Fabiana Rodrigues, do grupo Judiciário e Democracia (Jude), da USP, que tomou a forma do livro Operação Lava Jato: aprendizado institucional e ação estratégica na Justiça Criminal.

Para Fabiana, a Lava Jato é resultado da combinação de um processo incremental de aprimoramento institucional do sistema de justiça criminal, que precede a operação, e da ação estratégica e voluntarista dos protagonistas da investigação.

O livro também descreve como a mobilização popular foi uma ferramenta importante para os resultados da operação. “Eles sabiam que o apoio popular era necessário para desgastar os alvos”, explica Fabiana, em entrevista ao Estadão.

Fabiana Rodrigues: "A sociedade deveria priorizar o controle para não precisar do processo criminal." Foto: Werther Santana

O ritmo imprimido às investigações é outro trunfo identificado pela pesquisadora. Para pegar emprestado um exemplo do livro, foram centenas de conduções coercitivas até o Supremo Tribunal Federal (STF) barrar o mecanismo.

“A Lava Jato, quando acelera, ganha uma vantagem comparativa. Não dá tempo dos tribunais analisarem e entenderem o que está acontecendo. Como a opinião pública está mobilizada contra qualquer ato que tente ‘obstruir’ a Lava Jato, os tribunais ficam em uma situação de: ‘Na dúvida, deixa como está, corrige depois’”, afirma.

A reação, como se sabe, tardou, mas chegou. O modelo de forças-tarefas foi extinto pela Procuradoria-Geral da República (PGR) em 2021, na gestão Augusto Aras, após 79 fases da operação, e a classe política aprovou mudanças legislativas que deram mais segurança ante investigações criminais, como a lei de abuso de autoridade.

“No início, durante um bom tempo, acho que a classe política ficou meio imobilizada. Manifestação de rua mexe muito com os políticos, eles realmente mudam o curso de ação a depender da mobilização popular. Quando muda o governo e os processos são anulados, fica muito mais fácil. A Vaza Jato também deslegitima a operação”, diagnostica.

“Nem tudo é ruim, algumas mudanças são aprimoramentos. A classe política aproveitou o momento para duas coisas: diminuir as chances de acontecer de novo algo como a Lava Jato e corrigir problemas”, completa.

Veja a íntegra da entrevista com a cientista política:

No livro, você apresenta duas condições que teriam sido necessárias para o sucesso da Operação Lava Jato: o aprendizado institucional no combate à corrupção e a ação voluntarista de atores do sistema de justiça. Alguma outra foi importante?

Essas duas condições continuam sendo os fatores explicativos mais importantes, na minha avaliação, mas tem outras coisas que entram tangencialmente no livro e podem ser agregadas para contribuir na explicação, porque essas duas condições não aconteceram no vácuo, elas acontecem em um contexto. Por exemplo, a crise econômica do governo. A Lava Jato, usando ferramentas de aprendizado institucional e uma ação voluntarista, conseguiu mobilizar o apoio da opinião pública por meio da mídia. Somando tudo isso, acabaram atingindo a legitimidade do governo. Mas isso também entra no elemento do voluntarismo, porque eles sabiam que o apoio popular era necessário para desgastar os alvos, o governo, as elites. Fez parte da estratégia e foram bem sucedidos em implementá-la.

Essa dimensão do aprendizado institucional é destrinchada no livro em alguns aspectos, como a ampliação de atos de cooperação internacional em matéria penal, uma evolução organizacional na Justiça Federal, o avanço da tecnologia e algumas reformas legislativas que antecederam a Lava Jato. Esse último aspecto gira em torno de mudanças promovidas por atores do próprio sistema político, que depois se viram na mira da investigação. Você argumenta que a classe política não pode antever os efeitos das mudanças que ela própria aprovou. Agora, no pós-Lava Jato, você acha que o sistema político “acordou”? Você vê uma reação da classe?

Com certeza teve uma reação. No início, durante um bom tempo, acho que a classe política ficou meio imobilizada. Manifestação de rua mexe muito com os políticos, eles realmente mudam o curso de ação a depender da mobilização popular. As primeiras reações são discretas, como tentar indicar membros de tribunais mais garantistas, que não tivessem medo de enfrentar a opinião pública. Quando muda o governo e os processos são anulados, fica muito mais fácil. A Vaza Jato também deslegitima a operação, e o alvo vira a Lava Jato. A classe política conseguiu aprovar, por exemplo, a lei de abuso de autoridade, a lei de improbidade, o juiz de garantias. E nem tudo é ruim, algumas mudanças são aprimoramentos. A classe política aproveitou o momento para duas coisas: diminuir as chances de acontecer de novo algo como a Lava Jato e corrigir problemas.

O resultado da Lava Jato não foi o esperado. Não houve simplesmente alternância de poder, de sair o PT. Surgiu uma liderança autocrata de extrema-direita que desorganizou todo o sistema político-partidário.

Fabiana Rodrigues sobre ascensão de Jair Bolsonaro

O fator “tempo” parece atravessar bastante o diagnóstico que você apresenta sobre a Lava Jato. Ela está lá quando você fala da percepção que antecedia a operação, de morosidade e ineficiência do sistema de justiça no controle criminal da corrupção. Aparece também quando fala do fluxo de tramitação dos processos e aponta que houve uma “agilidade seletiva” no andamento das ações, o que você defende que teria contribuído inclusive para o constrangimento à delação. Surge ainda quando você descreve o descompasso entre a agilidade da Lava Jato e o ritmo geral do Judiciário, o que teria permitido, por exemplo, centenas de conduções coercitivas até o Supremo Tribunal Federal proibi-las. Para você, a gestão estratégica do tempo foi o maior ou um dos maiores trunfos da Lava Jato para obter resultados?

Sim, para manter a opinião pública mobilizada, para não dar tempo dos tribunais corrigirem... O tempo faz muita diferença na justiça, porque os processos são, por natureza, lentos. O ritmo normal da justiça é lento. E tem que ser assim, de alguma forma, porque você está mexendo com o que tem de mais sério, que é a privação de liberdade. E os tribunais demoram mesmo para receber tudo, para ler, para superar a fila de processos. A Lava Jato, quando acelera, ganha uma vantagem comparativa. Não dá tempo dos tribunais analisarem e entenderem o que está acontecendo. Como a opinião pública está mobilizada contra qualquer ato que tente “obstruir” a Lava Jato, os tribunais ficam em uma situação de: “Na dúvida, deixa como está, corrige depois”.

Outro ponto é que, ao agilizar os procedimentos, a Lava Jato oferece um incentivo para os próprios operadores da justiça acelerarem. Quando há um interesse coletivo em saber sobre um processo, os operadores ficam mais preocupados. É uma questão de racionalidade, você se preocupa mais em não atrasar, em não errar. Esses processos não ficam esquecidos, de jeito nenhum, muito pelo contrário. Tem uma endogenia. Uma coisa alimenta outra.

Capa do livro 'Lava Jato - Aprendizado Institucional e Ação Estratégica na Justiça', escrito pela juíza federal e cientista política Fabiana Rodrigues. Foto: Reprodução/ Editora WMF Martins Fontes

Por que o STF mudou de posição em relação à Lava Jato?

Os ministros têm perfis. Alguns são mais garantistas, como o ministro Gilmar Mendes. Outros têm uma veia mais moralista, do combate à corrupção. Para esses últimos, acho que a chave começa a mudar quando eles percebem que houve coisas erradas. A Vaza Jato tem um papel importante. Acho que tem relação também com uma tentativa de proteção do próprio sistema de justiça, da imagem do Judiciário e do Supremo.

Outro ponto é que o resultado da Lava Jato não foi o esperado. Não houve simplesmente alternância de poder, de sair o PT. Surgiu uma liderança autocrata de extrema-direita que desorganizou todo o sistema político-partidário.

A Vaza Jato também traz elementos que indicam que a Lava Jato era tão ambiciosa e tinha tão pouco freio, que queria atingir ministros do STF, do TCU, do STJ... Aflora também um elemento de autoproteção.

Outro ponto que chama atenção no livro é que, em vários momentos, você detecta brechas ou “zonas cinzentas” que permitiram a ação estratégica dos protagonistas da operação. Para citar um exemplo, você destaca a falta de detalhamento da lei que regulamenta a colaboração premiada, o que, segundo a pesquisa, teria ampliado a margem de atuação da força-tarefa e permitido que fossem incluídas, por exemplo, cláusulas que restringiram os recursos dos réus e, por consequência, a interferência de tribunais superiores sobre os acordos. Voltando ao aprendizado institucional, você percebe um esforço para regulamentar esses aspectos, a partir do que a Lava Jato ensinou?

É um processo incremental, como o fluxo da história no longo prazo. É uma linha ascendente, mas que tem altos e baixos no caminho. Acho que estamos em uma direção de aprimoramento. A Lava Jato fez um pouco isso. Eles viram quais eram os problemas que levavam ao fracasso das ações penais e tentaram corrigir. Algumas vezes, corretamente. Tem vários erros que eles não repetiram. A forma de fundamentar, por exemplo. Houve um cuidado no trabalho que é lícito, é legal, é aprendizado. Não é que a Lava Jato foi destruída, muita gente foi condenada, muito dinheiro foi apreendido, porque erros sistemáticos foram corrigidos. Só que eles ultrapassaram essas barreiras e cometeram outros erros, dolosamente.

Eu vejo um processo de correção, de detalhamento de algumas regras, tanto infralegais quanto legislativas. O Congresso, por exemplo, introduziu mais descrições de requisitos para a prisão, para as medidas cautelares. Também existem iniciativas dentro do sistema de justiça, no Ministério Público, no CNJ (Conselho Nacional de Justiça), no CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público). Foram elaborados manuais sobre cooperação internacional, sobre a delação mesmo. Estão regulamentando para criar padronizações e aprimorar os procedimentos, para que os instrumentos fiquem dentro da legalidade, tanto para prevenir abusos quanto para evitar nulidades.

A competência da Justiça Eleitoral para julgar casos de corrupção conexos aos crimes de campanha gera uma inflexão no combate à corrupção?

Embora a Justiça Eleitoral não seja preparada para processar casos criminais, não houve uma mudança na interpretação dos tribunais em relação ao tema. Sempre foi assim. Quando tem conexão com crime eleitoral, quem prevalece é a Justiça especializada, que é a eleitoral. Na prática, a Lava Jato burlou essas regras, porque sabia que seria um problema, que eles não poderiam manter os casos. A Lava Jato “escondeu” os crimes eleitorais no enquadramento jurídico conferido às ações. E isso veio à tona. Realmente, foi um revés imposto pelo STF, um banho de água fria, mas não foi uma mudança.

O exercício do direito de defesa ficou mais difícil depois da Lava Jato?

O processo penal, na prática, é muito diferente de acordo com o réu. Para quem não tem acesso a grandes bancas de advogados, o próprio juiz precisa ser meio garantista, para assegurar direitos que, por vezes, as pessoas nem sabem que têm. A diferença é muito clara em relação às elites políticas e econômicas. Nesses casos, o direito de defesa chega a ser abusivo. Há uma litigiosidade quase antiética, que foi um dos fatores que indignou os atores da Lava Jato. Como a operação fez vingar a colaboração premiada, surgiu um outro perfil de advogado, que entra mais na lógica consensual. A Lava Jato, de alguma forma, conseguiu dar uma atenuada nessa diferença, mas ainda segue um sistema desigual.

Em que direção o sistema de justiça deveria caminhar pós-Lava Jato?

A democracia brasileira é nova. São só 30 anos de construção desse aparato. Nós estamos em um processo de ajuste, em um movimento de equalização. A Lava Jato contribuiu, de alguma forma, para “democratizar” o sistema de justiça criminal, mas prender não é suficiente para resolver o problema da corrupção. A gente precisa refletir melhor sobre o processo penal. O resultado do processo penal é o menos eficiente, socialmente, porque significa que tudo deu errado, o crime aconteceu. Ele é o caminho que a gente deveria evitar. Existe um desânimo coletivo com a justiça, uma sensação de impunidade, muito por conta de uma percepção errada que a Lava Jato disseminou, de valorização da sanção de encarceramento. Acho que o problema é antecedente: a sociedade deveria priorizar o controle para não precisar do processo criminal.

“Passamos a montar aqui um grande quebra-cabeça, com pelo menos 14 conjuntos de evidências que se juntam e apontam para Lula como peça central da Lava Jato.” Assim, em setembro de 2016, o ex-procurador da República Deltan Dallagnol, na época coordenador da Operação Lava Jato, iniciava a apresentação da denúncia que, em menos de dois anos, levaria o hoje presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à prisão por suspeita de receber propinas da OAS na forma de um apartamento triplex no Guarujá, no litoral paulista.

O episódio ficou marcado no imaginário sobre a Lava Jato porque, além de ter sido a primeira denúncia sobre Lula, Deltan recorreu a uma apresentação visual, um PowerPoint que tornou-se foco de polêmica, para detalhar as acusações contra o petista. Diante de uma plateia de jornalistas e cinegrafistas, o procurador cravou que o líder do PT era o chefe de uma organização criminosa que teria desviado recursos da Petrobras.

Na época, a Lava Jato estava no auge. As suspeitas de direcionamento político da investigação e os questionamentos sobre os métodos usados pela força-tarefa ainda não tinham ganhado tração. Com amplo apoio da opinião pública e espaço no noticiário, a operação tirava o sono de lideranças políticas e dos maiores empresários do País.

Mas como um grupo de procuradores baseado em Curitiba foi capaz de causar uma reviravolta tão grande no xadrez político nacional? A pergunta guiou a pesquisa desenvolvida pela cientista política Fabiana Rodrigues, do grupo Judiciário e Democracia (Jude), da USP, que tomou a forma do livro Operação Lava Jato: aprendizado institucional e ação estratégica na Justiça Criminal.

Para Fabiana, a Lava Jato é resultado da combinação de um processo incremental de aprimoramento institucional do sistema de justiça criminal, que precede a operação, e da ação estratégica e voluntarista dos protagonistas da investigação.

O livro também descreve como a mobilização popular foi uma ferramenta importante para os resultados da operação. “Eles sabiam que o apoio popular era necessário para desgastar os alvos”, explica Fabiana, em entrevista ao Estadão.

Fabiana Rodrigues: "A sociedade deveria priorizar o controle para não precisar do processo criminal." Foto: Werther Santana

O ritmo imprimido às investigações é outro trunfo identificado pela pesquisadora. Para pegar emprestado um exemplo do livro, foram centenas de conduções coercitivas até o Supremo Tribunal Federal (STF) barrar o mecanismo.

“A Lava Jato, quando acelera, ganha uma vantagem comparativa. Não dá tempo dos tribunais analisarem e entenderem o que está acontecendo. Como a opinião pública está mobilizada contra qualquer ato que tente ‘obstruir’ a Lava Jato, os tribunais ficam em uma situação de: ‘Na dúvida, deixa como está, corrige depois’”, afirma.

A reação, como se sabe, tardou, mas chegou. O modelo de forças-tarefas foi extinto pela Procuradoria-Geral da República (PGR) em 2021, na gestão Augusto Aras, após 79 fases da operação, e a classe política aprovou mudanças legislativas que deram mais segurança ante investigações criminais, como a lei de abuso de autoridade.

“No início, durante um bom tempo, acho que a classe política ficou meio imobilizada. Manifestação de rua mexe muito com os políticos, eles realmente mudam o curso de ação a depender da mobilização popular. Quando muda o governo e os processos são anulados, fica muito mais fácil. A Vaza Jato também deslegitima a operação”, diagnostica.

“Nem tudo é ruim, algumas mudanças são aprimoramentos. A classe política aproveitou o momento para duas coisas: diminuir as chances de acontecer de novo algo como a Lava Jato e corrigir problemas”, completa.

Veja a íntegra da entrevista com a cientista política:

No livro, você apresenta duas condições que teriam sido necessárias para o sucesso da Operação Lava Jato: o aprendizado institucional no combate à corrupção e a ação voluntarista de atores do sistema de justiça. Alguma outra foi importante?

Essas duas condições continuam sendo os fatores explicativos mais importantes, na minha avaliação, mas tem outras coisas que entram tangencialmente no livro e podem ser agregadas para contribuir na explicação, porque essas duas condições não aconteceram no vácuo, elas acontecem em um contexto. Por exemplo, a crise econômica do governo. A Lava Jato, usando ferramentas de aprendizado institucional e uma ação voluntarista, conseguiu mobilizar o apoio da opinião pública por meio da mídia. Somando tudo isso, acabaram atingindo a legitimidade do governo. Mas isso também entra no elemento do voluntarismo, porque eles sabiam que o apoio popular era necessário para desgastar os alvos, o governo, as elites. Fez parte da estratégia e foram bem sucedidos em implementá-la.

Essa dimensão do aprendizado institucional é destrinchada no livro em alguns aspectos, como a ampliação de atos de cooperação internacional em matéria penal, uma evolução organizacional na Justiça Federal, o avanço da tecnologia e algumas reformas legislativas que antecederam a Lava Jato. Esse último aspecto gira em torno de mudanças promovidas por atores do próprio sistema político, que depois se viram na mira da investigação. Você argumenta que a classe política não pode antever os efeitos das mudanças que ela própria aprovou. Agora, no pós-Lava Jato, você acha que o sistema político “acordou”? Você vê uma reação da classe?

Com certeza teve uma reação. No início, durante um bom tempo, acho que a classe política ficou meio imobilizada. Manifestação de rua mexe muito com os políticos, eles realmente mudam o curso de ação a depender da mobilização popular. As primeiras reações são discretas, como tentar indicar membros de tribunais mais garantistas, que não tivessem medo de enfrentar a opinião pública. Quando muda o governo e os processos são anulados, fica muito mais fácil. A Vaza Jato também deslegitima a operação, e o alvo vira a Lava Jato. A classe política conseguiu aprovar, por exemplo, a lei de abuso de autoridade, a lei de improbidade, o juiz de garantias. E nem tudo é ruim, algumas mudanças são aprimoramentos. A classe política aproveitou o momento para duas coisas: diminuir as chances de acontecer de novo algo como a Lava Jato e corrigir problemas.

O resultado da Lava Jato não foi o esperado. Não houve simplesmente alternância de poder, de sair o PT. Surgiu uma liderança autocrata de extrema-direita que desorganizou todo o sistema político-partidário.

Fabiana Rodrigues sobre ascensão de Jair Bolsonaro

O fator “tempo” parece atravessar bastante o diagnóstico que você apresenta sobre a Lava Jato. Ela está lá quando você fala da percepção que antecedia a operação, de morosidade e ineficiência do sistema de justiça no controle criminal da corrupção. Aparece também quando fala do fluxo de tramitação dos processos e aponta que houve uma “agilidade seletiva” no andamento das ações, o que você defende que teria contribuído inclusive para o constrangimento à delação. Surge ainda quando você descreve o descompasso entre a agilidade da Lava Jato e o ritmo geral do Judiciário, o que teria permitido, por exemplo, centenas de conduções coercitivas até o Supremo Tribunal Federal proibi-las. Para você, a gestão estratégica do tempo foi o maior ou um dos maiores trunfos da Lava Jato para obter resultados?

Sim, para manter a opinião pública mobilizada, para não dar tempo dos tribunais corrigirem... O tempo faz muita diferença na justiça, porque os processos são, por natureza, lentos. O ritmo normal da justiça é lento. E tem que ser assim, de alguma forma, porque você está mexendo com o que tem de mais sério, que é a privação de liberdade. E os tribunais demoram mesmo para receber tudo, para ler, para superar a fila de processos. A Lava Jato, quando acelera, ganha uma vantagem comparativa. Não dá tempo dos tribunais analisarem e entenderem o que está acontecendo. Como a opinião pública está mobilizada contra qualquer ato que tente “obstruir” a Lava Jato, os tribunais ficam em uma situação de: “Na dúvida, deixa como está, corrige depois”.

Outro ponto é que, ao agilizar os procedimentos, a Lava Jato oferece um incentivo para os próprios operadores da justiça acelerarem. Quando há um interesse coletivo em saber sobre um processo, os operadores ficam mais preocupados. É uma questão de racionalidade, você se preocupa mais em não atrasar, em não errar. Esses processos não ficam esquecidos, de jeito nenhum, muito pelo contrário. Tem uma endogenia. Uma coisa alimenta outra.

Capa do livro 'Lava Jato - Aprendizado Institucional e Ação Estratégica na Justiça', escrito pela juíza federal e cientista política Fabiana Rodrigues. Foto: Reprodução/ Editora WMF Martins Fontes

Por que o STF mudou de posição em relação à Lava Jato?

Os ministros têm perfis. Alguns são mais garantistas, como o ministro Gilmar Mendes. Outros têm uma veia mais moralista, do combate à corrupção. Para esses últimos, acho que a chave começa a mudar quando eles percebem que houve coisas erradas. A Vaza Jato tem um papel importante. Acho que tem relação também com uma tentativa de proteção do próprio sistema de justiça, da imagem do Judiciário e do Supremo.

Outro ponto é que o resultado da Lava Jato não foi o esperado. Não houve simplesmente alternância de poder, de sair o PT. Surgiu uma liderança autocrata de extrema-direita que desorganizou todo o sistema político-partidário.

A Vaza Jato também traz elementos que indicam que a Lava Jato era tão ambiciosa e tinha tão pouco freio, que queria atingir ministros do STF, do TCU, do STJ... Aflora também um elemento de autoproteção.

Outro ponto que chama atenção no livro é que, em vários momentos, você detecta brechas ou “zonas cinzentas” que permitiram a ação estratégica dos protagonistas da operação. Para citar um exemplo, você destaca a falta de detalhamento da lei que regulamenta a colaboração premiada, o que, segundo a pesquisa, teria ampliado a margem de atuação da força-tarefa e permitido que fossem incluídas, por exemplo, cláusulas que restringiram os recursos dos réus e, por consequência, a interferência de tribunais superiores sobre os acordos. Voltando ao aprendizado institucional, você percebe um esforço para regulamentar esses aspectos, a partir do que a Lava Jato ensinou?

É um processo incremental, como o fluxo da história no longo prazo. É uma linha ascendente, mas que tem altos e baixos no caminho. Acho que estamos em uma direção de aprimoramento. A Lava Jato fez um pouco isso. Eles viram quais eram os problemas que levavam ao fracasso das ações penais e tentaram corrigir. Algumas vezes, corretamente. Tem vários erros que eles não repetiram. A forma de fundamentar, por exemplo. Houve um cuidado no trabalho que é lícito, é legal, é aprendizado. Não é que a Lava Jato foi destruída, muita gente foi condenada, muito dinheiro foi apreendido, porque erros sistemáticos foram corrigidos. Só que eles ultrapassaram essas barreiras e cometeram outros erros, dolosamente.

Eu vejo um processo de correção, de detalhamento de algumas regras, tanto infralegais quanto legislativas. O Congresso, por exemplo, introduziu mais descrições de requisitos para a prisão, para as medidas cautelares. Também existem iniciativas dentro do sistema de justiça, no Ministério Público, no CNJ (Conselho Nacional de Justiça), no CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público). Foram elaborados manuais sobre cooperação internacional, sobre a delação mesmo. Estão regulamentando para criar padronizações e aprimorar os procedimentos, para que os instrumentos fiquem dentro da legalidade, tanto para prevenir abusos quanto para evitar nulidades.

A competência da Justiça Eleitoral para julgar casos de corrupção conexos aos crimes de campanha gera uma inflexão no combate à corrupção?

Embora a Justiça Eleitoral não seja preparada para processar casos criminais, não houve uma mudança na interpretação dos tribunais em relação ao tema. Sempre foi assim. Quando tem conexão com crime eleitoral, quem prevalece é a Justiça especializada, que é a eleitoral. Na prática, a Lava Jato burlou essas regras, porque sabia que seria um problema, que eles não poderiam manter os casos. A Lava Jato “escondeu” os crimes eleitorais no enquadramento jurídico conferido às ações. E isso veio à tona. Realmente, foi um revés imposto pelo STF, um banho de água fria, mas não foi uma mudança.

O exercício do direito de defesa ficou mais difícil depois da Lava Jato?

O processo penal, na prática, é muito diferente de acordo com o réu. Para quem não tem acesso a grandes bancas de advogados, o próprio juiz precisa ser meio garantista, para assegurar direitos que, por vezes, as pessoas nem sabem que têm. A diferença é muito clara em relação às elites políticas e econômicas. Nesses casos, o direito de defesa chega a ser abusivo. Há uma litigiosidade quase antiética, que foi um dos fatores que indignou os atores da Lava Jato. Como a operação fez vingar a colaboração premiada, surgiu um outro perfil de advogado, que entra mais na lógica consensual. A Lava Jato, de alguma forma, conseguiu dar uma atenuada nessa diferença, mas ainda segue um sistema desigual.

Em que direção o sistema de justiça deveria caminhar pós-Lava Jato?

A democracia brasileira é nova. São só 30 anos de construção desse aparato. Nós estamos em um processo de ajuste, em um movimento de equalização. A Lava Jato contribuiu, de alguma forma, para “democratizar” o sistema de justiça criminal, mas prender não é suficiente para resolver o problema da corrupção. A gente precisa refletir melhor sobre o processo penal. O resultado do processo penal é o menos eficiente, socialmente, porque significa que tudo deu errado, o crime aconteceu. Ele é o caminho que a gente deveria evitar. Existe um desânimo coletivo com a justiça, uma sensação de impunidade, muito por conta de uma percepção errada que a Lava Jato disseminou, de valorização da sanção de encarceramento. Acho que o problema é antecedente: a sociedade deveria priorizar o controle para não precisar do processo criminal.

Entrevista por Rayssa Motta

Repórter do 'Estadão' em São Paulo. Cobre Judiciário e Política. É jornalista formada pela Uerj e mestranda em Ciência Política na USP.

Julia Affonso

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