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‘O exercício da defesa está muito mais difícil hoje do que na época da Lava Jato’, protesta Mariz


Em entrevista ao ‘Estadão’, criminalista Antonio Cláudio Mariz de Oliveira afirma que operação, que completa dez anos desde sua primeira fase ostensiva, alimentou a mentalidade de que a advocacia ‘atrapalha’ e fomentou o ‘punitivismo’

Por Rayssa Motta e Julia Affonso
Entrevista comAntônio Cláudio Mariz de Oliveiraadvogado criminalista

Ao longo dos 53 anos de carreira, o advogado Antonio Cláudio Mariz de Oliveira assumiu casos de enorme repercussão política. Defendeu, por exemplo, o empresário Paulo César Farias, o “PC Farias”, pivô do escândalo de corrupção que levou à queda do ex-presidente Fernando Collor. Trabalhou também no Mensalão, caso que colocou lideranças históricas do Partido dos Trabalhadores e de partidos aliados no centro de um esquema de compra de apoio político no Congresso.

Quase uma década depois, quando a Operação Lava Jato voltou a abalar a classe política, o criminalista entrou em campo. Assumiu a defesa do vice-presidente da Camargo Corrêa, Eduardo Hermelino Leite, que depois fechou acordo de delação premiada com a força-tarefa de Curitiba e admitiu o pagamento de propina a diretores da Petrobras.

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Mariz foi um dos primeiros advogados a se insurgir contra os métodos da operação, posição que mantém até hoje, dez anos após a primeira fase ostensiva da investigação prender o doleiro Alberto Youssef. Em entrevista ao Estadão, Mariz afirma que a Lava Jato alimentou a ideia de que a advocacia “atrapalha”.

Avalia, no entanto, que o exercício do direito de defesa piorou desde o auge da operação. “Com todos os erros, mazelas e prejuízos, hoje você tem dificuldades que não tinha naquela época.”

Ele cita, por exemplo, as sessões virtuais, que não permitem sustentação oral em tempo real, e o tempo reduzido para argumentação no julgamento de recursos em habeas corpus. “Se hoje não estão prendendo a torto e a direito, se não estão fazendo condução coercitiva, se hoje existe audiência de custódia, que é uma boa coisa, para exercer a defesa há mais dificuldade.”

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A vasta experiência em casos de corrupção o faz acreditar que, apesar do desempenho sem precedentes, a Lava Jato não corrigiu a raiz do problema. “As causas da corrupção são éticas e eles não mexeram com isso.”

O saldo da operação, na visão do longevo advogado, foi fomentar o punitivismo. “A sociedade passou a clamar por cadeia.”

As críticas também se estendem ao hoje senador Sérgio Moro (União Brasil-PR). Assim como o Supremo Tribunal Federal (STF), que declarou o ex-juiz suspeito na condução dos processos envolvendo o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Mariz considera que Moro foi parcial. “Juiz não combate, juiz julga.”

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Antonio Cláudio Mariz de Oliveira sobre a Lava Jato: “A sociedade passou a clamar por cadeia.” Foto: Felipe Rau/Estadão

A Lava Jato errou?

A Lava Jato surge porque existe um problema crônico do Brasil, que se chama corrupção. Chegou um momento em que o grau de corrupção veio à tona com mais intensidade. Aí surge um juiz, em Curitiba, Sérgio Moro, que resolveu ser o juiz que iria combater a corrupção. Aí eu faço uma primeira observação: juiz não combate, juiz julga. Promotor não combate, promotor é o homem auxiliar da promoção da justiça. E o advogado defende. Esses são os nossos papéis. Não existe combatente nessa história. O primeiro grande engano dos operadores da Lava Jato foi achar que encontraram instrumentos para pôr fim ao crime. Bobagem. O crime já tinha ocorrido e a punição veio posteriormente. As causas da corrupção são éticas e eles não mexeram com isso. Em segundo lugar, nós tivemos um desvio do Direito Penal.

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Os advogados tiveram dificuldade de exercer a defesa de seus clientes? Princípios como a presunção de inocência foram flexibilizados?

Com esse desvio do Direito Penal, você passou a ter uma cultura punitiva muito forte, que afastava o garantismo. Prevaleceu a punição. A sociedade passou a admirar muito o punitivismo. Para alguns, a única resposta possível ao crime era a prisão. A sociedade passou a clamar por cadeia. Aí entra um outro fator que se chama mídia. O crime passou a ser um instrumento de espetáculo. A imagem posta ao público representa uma pena perpétua e cruel.

A sociedade passou a admirar muito o punitivismo. Para alguns, a única resposta possível ao crime era a prisão. A sociedade passou a clamar por cadeia.

Antônio Cláudio Mariz de OIiveira

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Neste momento, muitos advogados criminais, inclusive eu, passaram a ser contra a Lava Jato. O Judiciário passou a flexibilizar as garantias individuais. Nós começamos a perceber os excessos da Lava Jato. Vou dar um exemplo: a prisão preventiva é uma prisão em caráter excepcional, porque o que vigora é a presunção de inocência. A preventiva passou a ser usada a todo momento. Prendiam para o sujeito fazer delação e ele assentia para se ver livre da cadeia. Esse foi o primeiro instituto torto, desviante, que surgiu com a Lava Jato.

Moro foi parcial?

A grande questão da Lava Jato é que ela caiu nas mãos de quem não estava preparado para ser responsável pelo “combate” ao crime, alguém que se tornou parcial. E a única coisa que o juiz não pode ser é parcial. O juiz não pode julgar o caso antes do momento adequado. E aqui a impressão nítida é que, desde o início das investigações, o juiz já tinha constituído a sua convicção sobre o caso. Moro se tornou um paladino da honra, da decência, da honestidade, quando na verdade, não que fosse desonesto sob o aspecto moral, mas ele não tinha honestidade como juiz, no sentido de que não era imparcial. Ele recebia o inquérito e já formava o seu convencimento. Dali para frente, viesse a prova que viesse a favor do réu, ele não dava bola, ele era condenador.

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Houve um direcionamento político da operação?

O que ficou muito claro para mim foi a quebra das regras de Direito. As regras protecionistas, as regras de garantias foram todas afastadas em nome desse punitivismo. Agora, se o escopo era pegar político, não sei dizer. O escopo era punir. E aí houve um outro desvio, que foi atingir as empresas. Você prejudica o País, o potencial econômico-financeiro do País.

Para Mariz, 'abusos' desmoralizaram a Lava Jato. Foto: Dida Sampaio/Estadão

Por que a Lava Jato começa a ruir?

Porque foi posta a nu. Essa vestimenta de proteção à sociedade, de combate à corrupção, caiu. Se observou que não havia um grau grande de autenticidade, as coisas já estavam pré-ordenadas. Havia uma intenção dos operadores da Lava Jato muito mais voltada para sua autopromoção do que para, efetivamente, o combate à corrupção. E os instrumentos foram errados. Uma série de fatos abusivos acabou por desmoralizar a Lava Jato.

Onde está o Direito Penal hoje? O Judiciário ficou mais punitivista pós-Lava Jato ou o garantismo reacende como reação à operação?

Difícil dizer. Não sei se alguém hoje tem essa resposta. A visão que a gente tem do Judiciário é muito mitigada. O Judiciário é tudo, não é só o Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça. O que acontece em primeiro grau, nós sabemos muito pouco. Eu sei que nós estamos passando por uma fase difícil em termos de advocacia. A mentalidade de que a advocacia atrapalha foi alimentada pela Lava Jato. Com relação a abusos, condução coercitiva e prisão preventiva em excesso, por exemplo, houve uma melhora. Por outro lado, o exercício da defesa está mais difícil. Sustentações orais você tem dificuldade. Esse processo online é uma conversa fiada.

O habeas corpus, instrumento de maior envergadura para barrar os excessos do Estado, teve sua importância mitigada. Primeiro, o desembargador ou ministro decide monocraticamente, o que já é um verdadeiro abuso, porque o tribunal existe para as decisões colegiadas. Aí, no recurso, o advogado tem cinco minutos para fazer a sustentação oral, já com o voto contra. O grande problema da advocacia é que o exercício da defesa está muito mais difícil até do que na época da Lava Jato, por incrível que pareça.

A mentalidade de que a advocacia atrapalha foi alimentada pela Lava Jato. Com relação a abusos, condução coercitiva e prisão preventiva em excesso, por exemplo, houve uma melhora. Por outro lado, o exercício da defesa está mais difícil.

Antônio Cláudio Mariz de Oliveira

Com todos os erros, mazelas e prejuízos, hoje você tem dificuldades que não tinha naquela época. E essas dificuldades estão aumentando. Se hoje não estão prendendo a torto e a direito, se não estão fazendo condução coercitiva, se hoje existe audiência de custódia, que é uma boa coisa, para exercer a defesa há mais dificuldade.

Não foi bom para a advocacia criminal enquanto houve operações?

É preciso distinguir duas coisas: o que é bom profissionalmente, em termos de resultados financeiros, e o que é bom ou não para a ordem jurídica. Para a advocacia foi mesmo. Agora é preciso fazer uma ressalva: quantos ganharam dinheiro? Há 1,3 milhão de advogados no Brasil.

O que é preciso corrigir no controle criminal da corrupção dez anos depois da Lava Jato?

Repito que a questão é ética. O que leva a esse distúrbio ético, na minha opinião, é a cobiça. A sociedade de consumo tomou conta do País. É o “ter” em substituição ao “ser”. Isso leva à ganância, que leva ao crime. Resolver isso não é um passe de mágica. Em segundo lugar, é preciso desenvolver mecanismos estatais de proteção ao erário. A lei das Licitações, por exemplo, é um campo aberto à corrupção.

Vivemos um momento de incerteza em relação à leniência. Os acordos de delação e leniência foram mal utilizados na Lava Jato ou são um instrumento válido?

O instrumento, desde que adotado de forma correta, é bom. O que não pode é delação ser prova. Delação é meio para alcançar prova. Se você me perguntar o que está acontecendo, o que especificamente está levando um determinado ministro do Supremo (Toffoli) a suspender a cobrança das multas desses acordos, eu não sei te dizer. O que está motivando essas decisões que estão anulando delações, 70 só na Odebrecht. Aí acaba tudo? Isso não está bem. A gente não consegue nem defender ou ser contra, porque não dá para entender. Quem não leu o acórdão não sabe. Quem leu o acórdão, continua não sabendo, porque não dá pra entender.

Ao longo dos 53 anos de carreira, o advogado Antonio Cláudio Mariz de Oliveira assumiu casos de enorme repercussão política. Defendeu, por exemplo, o empresário Paulo César Farias, o “PC Farias”, pivô do escândalo de corrupção que levou à queda do ex-presidente Fernando Collor. Trabalhou também no Mensalão, caso que colocou lideranças históricas do Partido dos Trabalhadores e de partidos aliados no centro de um esquema de compra de apoio político no Congresso.

Quase uma década depois, quando a Operação Lava Jato voltou a abalar a classe política, o criminalista entrou em campo. Assumiu a defesa do vice-presidente da Camargo Corrêa, Eduardo Hermelino Leite, que depois fechou acordo de delação premiada com a força-tarefa de Curitiba e admitiu o pagamento de propina a diretores da Petrobras.

Mariz foi um dos primeiros advogados a se insurgir contra os métodos da operação, posição que mantém até hoje, dez anos após a primeira fase ostensiva da investigação prender o doleiro Alberto Youssef. Em entrevista ao Estadão, Mariz afirma que a Lava Jato alimentou a ideia de que a advocacia “atrapalha”.

Avalia, no entanto, que o exercício do direito de defesa piorou desde o auge da operação. “Com todos os erros, mazelas e prejuízos, hoje você tem dificuldades que não tinha naquela época.”

Ele cita, por exemplo, as sessões virtuais, que não permitem sustentação oral em tempo real, e o tempo reduzido para argumentação no julgamento de recursos em habeas corpus. “Se hoje não estão prendendo a torto e a direito, se não estão fazendo condução coercitiva, se hoje existe audiência de custódia, que é uma boa coisa, para exercer a defesa há mais dificuldade.”

A vasta experiência em casos de corrupção o faz acreditar que, apesar do desempenho sem precedentes, a Lava Jato não corrigiu a raiz do problema. “As causas da corrupção são éticas e eles não mexeram com isso.”

O saldo da operação, na visão do longevo advogado, foi fomentar o punitivismo. “A sociedade passou a clamar por cadeia.”

As críticas também se estendem ao hoje senador Sérgio Moro (União Brasil-PR). Assim como o Supremo Tribunal Federal (STF), que declarou o ex-juiz suspeito na condução dos processos envolvendo o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Mariz considera que Moro foi parcial. “Juiz não combate, juiz julga.”

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira sobre a Lava Jato: “A sociedade passou a clamar por cadeia.” Foto: Felipe Rau/Estadão

A Lava Jato errou?

A Lava Jato surge porque existe um problema crônico do Brasil, que se chama corrupção. Chegou um momento em que o grau de corrupção veio à tona com mais intensidade. Aí surge um juiz, em Curitiba, Sérgio Moro, que resolveu ser o juiz que iria combater a corrupção. Aí eu faço uma primeira observação: juiz não combate, juiz julga. Promotor não combate, promotor é o homem auxiliar da promoção da justiça. E o advogado defende. Esses são os nossos papéis. Não existe combatente nessa história. O primeiro grande engano dos operadores da Lava Jato foi achar que encontraram instrumentos para pôr fim ao crime. Bobagem. O crime já tinha ocorrido e a punição veio posteriormente. As causas da corrupção são éticas e eles não mexeram com isso. Em segundo lugar, nós tivemos um desvio do Direito Penal.

Os advogados tiveram dificuldade de exercer a defesa de seus clientes? Princípios como a presunção de inocência foram flexibilizados?

Com esse desvio do Direito Penal, você passou a ter uma cultura punitiva muito forte, que afastava o garantismo. Prevaleceu a punição. A sociedade passou a admirar muito o punitivismo. Para alguns, a única resposta possível ao crime era a prisão. A sociedade passou a clamar por cadeia. Aí entra um outro fator que se chama mídia. O crime passou a ser um instrumento de espetáculo. A imagem posta ao público representa uma pena perpétua e cruel.

A sociedade passou a admirar muito o punitivismo. Para alguns, a única resposta possível ao crime era a prisão. A sociedade passou a clamar por cadeia.

Antônio Cláudio Mariz de OIiveira

Neste momento, muitos advogados criminais, inclusive eu, passaram a ser contra a Lava Jato. O Judiciário passou a flexibilizar as garantias individuais. Nós começamos a perceber os excessos da Lava Jato. Vou dar um exemplo: a prisão preventiva é uma prisão em caráter excepcional, porque o que vigora é a presunção de inocência. A preventiva passou a ser usada a todo momento. Prendiam para o sujeito fazer delação e ele assentia para se ver livre da cadeia. Esse foi o primeiro instituto torto, desviante, que surgiu com a Lava Jato.

Moro foi parcial?

A grande questão da Lava Jato é que ela caiu nas mãos de quem não estava preparado para ser responsável pelo “combate” ao crime, alguém que se tornou parcial. E a única coisa que o juiz não pode ser é parcial. O juiz não pode julgar o caso antes do momento adequado. E aqui a impressão nítida é que, desde o início das investigações, o juiz já tinha constituído a sua convicção sobre o caso. Moro se tornou um paladino da honra, da decência, da honestidade, quando na verdade, não que fosse desonesto sob o aspecto moral, mas ele não tinha honestidade como juiz, no sentido de que não era imparcial. Ele recebia o inquérito e já formava o seu convencimento. Dali para frente, viesse a prova que viesse a favor do réu, ele não dava bola, ele era condenador.

Houve um direcionamento político da operação?

O que ficou muito claro para mim foi a quebra das regras de Direito. As regras protecionistas, as regras de garantias foram todas afastadas em nome desse punitivismo. Agora, se o escopo era pegar político, não sei dizer. O escopo era punir. E aí houve um outro desvio, que foi atingir as empresas. Você prejudica o País, o potencial econômico-financeiro do País.

Para Mariz, 'abusos' desmoralizaram a Lava Jato. Foto: Dida Sampaio/Estadão

Por que a Lava Jato começa a ruir?

Porque foi posta a nu. Essa vestimenta de proteção à sociedade, de combate à corrupção, caiu. Se observou que não havia um grau grande de autenticidade, as coisas já estavam pré-ordenadas. Havia uma intenção dos operadores da Lava Jato muito mais voltada para sua autopromoção do que para, efetivamente, o combate à corrupção. E os instrumentos foram errados. Uma série de fatos abusivos acabou por desmoralizar a Lava Jato.

Onde está o Direito Penal hoje? O Judiciário ficou mais punitivista pós-Lava Jato ou o garantismo reacende como reação à operação?

Difícil dizer. Não sei se alguém hoje tem essa resposta. A visão que a gente tem do Judiciário é muito mitigada. O Judiciário é tudo, não é só o Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça. O que acontece em primeiro grau, nós sabemos muito pouco. Eu sei que nós estamos passando por uma fase difícil em termos de advocacia. A mentalidade de que a advocacia atrapalha foi alimentada pela Lava Jato. Com relação a abusos, condução coercitiva e prisão preventiva em excesso, por exemplo, houve uma melhora. Por outro lado, o exercício da defesa está mais difícil. Sustentações orais você tem dificuldade. Esse processo online é uma conversa fiada.

O habeas corpus, instrumento de maior envergadura para barrar os excessos do Estado, teve sua importância mitigada. Primeiro, o desembargador ou ministro decide monocraticamente, o que já é um verdadeiro abuso, porque o tribunal existe para as decisões colegiadas. Aí, no recurso, o advogado tem cinco minutos para fazer a sustentação oral, já com o voto contra. O grande problema da advocacia é que o exercício da defesa está muito mais difícil até do que na época da Lava Jato, por incrível que pareça.

A mentalidade de que a advocacia atrapalha foi alimentada pela Lava Jato. Com relação a abusos, condução coercitiva e prisão preventiva em excesso, por exemplo, houve uma melhora. Por outro lado, o exercício da defesa está mais difícil.

Antônio Cláudio Mariz de Oliveira

Com todos os erros, mazelas e prejuízos, hoje você tem dificuldades que não tinha naquela época. E essas dificuldades estão aumentando. Se hoje não estão prendendo a torto e a direito, se não estão fazendo condução coercitiva, se hoje existe audiência de custódia, que é uma boa coisa, para exercer a defesa há mais dificuldade.

Não foi bom para a advocacia criminal enquanto houve operações?

É preciso distinguir duas coisas: o que é bom profissionalmente, em termos de resultados financeiros, e o que é bom ou não para a ordem jurídica. Para a advocacia foi mesmo. Agora é preciso fazer uma ressalva: quantos ganharam dinheiro? Há 1,3 milhão de advogados no Brasil.

O que é preciso corrigir no controle criminal da corrupção dez anos depois da Lava Jato?

Repito que a questão é ética. O que leva a esse distúrbio ético, na minha opinião, é a cobiça. A sociedade de consumo tomou conta do País. É o “ter” em substituição ao “ser”. Isso leva à ganância, que leva ao crime. Resolver isso não é um passe de mágica. Em segundo lugar, é preciso desenvolver mecanismos estatais de proteção ao erário. A lei das Licitações, por exemplo, é um campo aberto à corrupção.

Vivemos um momento de incerteza em relação à leniência. Os acordos de delação e leniência foram mal utilizados na Lava Jato ou são um instrumento válido?

O instrumento, desde que adotado de forma correta, é bom. O que não pode é delação ser prova. Delação é meio para alcançar prova. Se você me perguntar o que está acontecendo, o que especificamente está levando um determinado ministro do Supremo (Toffoli) a suspender a cobrança das multas desses acordos, eu não sei te dizer. O que está motivando essas decisões que estão anulando delações, 70 só na Odebrecht. Aí acaba tudo? Isso não está bem. A gente não consegue nem defender ou ser contra, porque não dá para entender. Quem não leu o acórdão não sabe. Quem leu o acórdão, continua não sabendo, porque não dá pra entender.

Ao longo dos 53 anos de carreira, o advogado Antonio Cláudio Mariz de Oliveira assumiu casos de enorme repercussão política. Defendeu, por exemplo, o empresário Paulo César Farias, o “PC Farias”, pivô do escândalo de corrupção que levou à queda do ex-presidente Fernando Collor. Trabalhou também no Mensalão, caso que colocou lideranças históricas do Partido dos Trabalhadores e de partidos aliados no centro de um esquema de compra de apoio político no Congresso.

Quase uma década depois, quando a Operação Lava Jato voltou a abalar a classe política, o criminalista entrou em campo. Assumiu a defesa do vice-presidente da Camargo Corrêa, Eduardo Hermelino Leite, que depois fechou acordo de delação premiada com a força-tarefa de Curitiba e admitiu o pagamento de propina a diretores da Petrobras.

Mariz foi um dos primeiros advogados a se insurgir contra os métodos da operação, posição que mantém até hoje, dez anos após a primeira fase ostensiva da investigação prender o doleiro Alberto Youssef. Em entrevista ao Estadão, Mariz afirma que a Lava Jato alimentou a ideia de que a advocacia “atrapalha”.

Avalia, no entanto, que o exercício do direito de defesa piorou desde o auge da operação. “Com todos os erros, mazelas e prejuízos, hoje você tem dificuldades que não tinha naquela época.”

Ele cita, por exemplo, as sessões virtuais, que não permitem sustentação oral em tempo real, e o tempo reduzido para argumentação no julgamento de recursos em habeas corpus. “Se hoje não estão prendendo a torto e a direito, se não estão fazendo condução coercitiva, se hoje existe audiência de custódia, que é uma boa coisa, para exercer a defesa há mais dificuldade.”

A vasta experiência em casos de corrupção o faz acreditar que, apesar do desempenho sem precedentes, a Lava Jato não corrigiu a raiz do problema. “As causas da corrupção são éticas e eles não mexeram com isso.”

O saldo da operação, na visão do longevo advogado, foi fomentar o punitivismo. “A sociedade passou a clamar por cadeia.”

As críticas também se estendem ao hoje senador Sérgio Moro (União Brasil-PR). Assim como o Supremo Tribunal Federal (STF), que declarou o ex-juiz suspeito na condução dos processos envolvendo o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Mariz considera que Moro foi parcial. “Juiz não combate, juiz julga.”

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira sobre a Lava Jato: “A sociedade passou a clamar por cadeia.” Foto: Felipe Rau/Estadão

A Lava Jato errou?

A Lava Jato surge porque existe um problema crônico do Brasil, que se chama corrupção. Chegou um momento em que o grau de corrupção veio à tona com mais intensidade. Aí surge um juiz, em Curitiba, Sérgio Moro, que resolveu ser o juiz que iria combater a corrupção. Aí eu faço uma primeira observação: juiz não combate, juiz julga. Promotor não combate, promotor é o homem auxiliar da promoção da justiça. E o advogado defende. Esses são os nossos papéis. Não existe combatente nessa história. O primeiro grande engano dos operadores da Lava Jato foi achar que encontraram instrumentos para pôr fim ao crime. Bobagem. O crime já tinha ocorrido e a punição veio posteriormente. As causas da corrupção são éticas e eles não mexeram com isso. Em segundo lugar, nós tivemos um desvio do Direito Penal.

Os advogados tiveram dificuldade de exercer a defesa de seus clientes? Princípios como a presunção de inocência foram flexibilizados?

Com esse desvio do Direito Penal, você passou a ter uma cultura punitiva muito forte, que afastava o garantismo. Prevaleceu a punição. A sociedade passou a admirar muito o punitivismo. Para alguns, a única resposta possível ao crime era a prisão. A sociedade passou a clamar por cadeia. Aí entra um outro fator que se chama mídia. O crime passou a ser um instrumento de espetáculo. A imagem posta ao público representa uma pena perpétua e cruel.

A sociedade passou a admirar muito o punitivismo. Para alguns, a única resposta possível ao crime era a prisão. A sociedade passou a clamar por cadeia.

Antônio Cláudio Mariz de OIiveira

Neste momento, muitos advogados criminais, inclusive eu, passaram a ser contra a Lava Jato. O Judiciário passou a flexibilizar as garantias individuais. Nós começamos a perceber os excessos da Lava Jato. Vou dar um exemplo: a prisão preventiva é uma prisão em caráter excepcional, porque o que vigora é a presunção de inocência. A preventiva passou a ser usada a todo momento. Prendiam para o sujeito fazer delação e ele assentia para se ver livre da cadeia. Esse foi o primeiro instituto torto, desviante, que surgiu com a Lava Jato.

Moro foi parcial?

A grande questão da Lava Jato é que ela caiu nas mãos de quem não estava preparado para ser responsável pelo “combate” ao crime, alguém que se tornou parcial. E a única coisa que o juiz não pode ser é parcial. O juiz não pode julgar o caso antes do momento adequado. E aqui a impressão nítida é que, desde o início das investigações, o juiz já tinha constituído a sua convicção sobre o caso. Moro se tornou um paladino da honra, da decência, da honestidade, quando na verdade, não que fosse desonesto sob o aspecto moral, mas ele não tinha honestidade como juiz, no sentido de que não era imparcial. Ele recebia o inquérito e já formava o seu convencimento. Dali para frente, viesse a prova que viesse a favor do réu, ele não dava bola, ele era condenador.

Houve um direcionamento político da operação?

O que ficou muito claro para mim foi a quebra das regras de Direito. As regras protecionistas, as regras de garantias foram todas afastadas em nome desse punitivismo. Agora, se o escopo era pegar político, não sei dizer. O escopo era punir. E aí houve um outro desvio, que foi atingir as empresas. Você prejudica o País, o potencial econômico-financeiro do País.

Para Mariz, 'abusos' desmoralizaram a Lava Jato. Foto: Dida Sampaio/Estadão

Por que a Lava Jato começa a ruir?

Porque foi posta a nu. Essa vestimenta de proteção à sociedade, de combate à corrupção, caiu. Se observou que não havia um grau grande de autenticidade, as coisas já estavam pré-ordenadas. Havia uma intenção dos operadores da Lava Jato muito mais voltada para sua autopromoção do que para, efetivamente, o combate à corrupção. E os instrumentos foram errados. Uma série de fatos abusivos acabou por desmoralizar a Lava Jato.

Onde está o Direito Penal hoje? O Judiciário ficou mais punitivista pós-Lava Jato ou o garantismo reacende como reação à operação?

Difícil dizer. Não sei se alguém hoje tem essa resposta. A visão que a gente tem do Judiciário é muito mitigada. O Judiciário é tudo, não é só o Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça. O que acontece em primeiro grau, nós sabemos muito pouco. Eu sei que nós estamos passando por uma fase difícil em termos de advocacia. A mentalidade de que a advocacia atrapalha foi alimentada pela Lava Jato. Com relação a abusos, condução coercitiva e prisão preventiva em excesso, por exemplo, houve uma melhora. Por outro lado, o exercício da defesa está mais difícil. Sustentações orais você tem dificuldade. Esse processo online é uma conversa fiada.

O habeas corpus, instrumento de maior envergadura para barrar os excessos do Estado, teve sua importância mitigada. Primeiro, o desembargador ou ministro decide monocraticamente, o que já é um verdadeiro abuso, porque o tribunal existe para as decisões colegiadas. Aí, no recurso, o advogado tem cinco minutos para fazer a sustentação oral, já com o voto contra. O grande problema da advocacia é que o exercício da defesa está muito mais difícil até do que na época da Lava Jato, por incrível que pareça.

A mentalidade de que a advocacia atrapalha foi alimentada pela Lava Jato. Com relação a abusos, condução coercitiva e prisão preventiva em excesso, por exemplo, houve uma melhora. Por outro lado, o exercício da defesa está mais difícil.

Antônio Cláudio Mariz de Oliveira

Com todos os erros, mazelas e prejuízos, hoje você tem dificuldades que não tinha naquela época. E essas dificuldades estão aumentando. Se hoje não estão prendendo a torto e a direito, se não estão fazendo condução coercitiva, se hoje existe audiência de custódia, que é uma boa coisa, para exercer a defesa há mais dificuldade.

Não foi bom para a advocacia criminal enquanto houve operações?

É preciso distinguir duas coisas: o que é bom profissionalmente, em termos de resultados financeiros, e o que é bom ou não para a ordem jurídica. Para a advocacia foi mesmo. Agora é preciso fazer uma ressalva: quantos ganharam dinheiro? Há 1,3 milhão de advogados no Brasil.

O que é preciso corrigir no controle criminal da corrupção dez anos depois da Lava Jato?

Repito que a questão é ética. O que leva a esse distúrbio ético, na minha opinião, é a cobiça. A sociedade de consumo tomou conta do País. É o “ter” em substituição ao “ser”. Isso leva à ganância, que leva ao crime. Resolver isso não é um passe de mágica. Em segundo lugar, é preciso desenvolver mecanismos estatais de proteção ao erário. A lei das Licitações, por exemplo, é um campo aberto à corrupção.

Vivemos um momento de incerteza em relação à leniência. Os acordos de delação e leniência foram mal utilizados na Lava Jato ou são um instrumento válido?

O instrumento, desde que adotado de forma correta, é bom. O que não pode é delação ser prova. Delação é meio para alcançar prova. Se você me perguntar o que está acontecendo, o que especificamente está levando um determinado ministro do Supremo (Toffoli) a suspender a cobrança das multas desses acordos, eu não sei te dizer. O que está motivando essas decisões que estão anulando delações, 70 só na Odebrecht. Aí acaba tudo? Isso não está bem. A gente não consegue nem defender ou ser contra, porque não dá para entender. Quem não leu o acórdão não sabe. Quem leu o acórdão, continua não sabendo, porque não dá pra entender.

Ao longo dos 53 anos de carreira, o advogado Antonio Cláudio Mariz de Oliveira assumiu casos de enorme repercussão política. Defendeu, por exemplo, o empresário Paulo César Farias, o “PC Farias”, pivô do escândalo de corrupção que levou à queda do ex-presidente Fernando Collor. Trabalhou também no Mensalão, caso que colocou lideranças históricas do Partido dos Trabalhadores e de partidos aliados no centro de um esquema de compra de apoio político no Congresso.

Quase uma década depois, quando a Operação Lava Jato voltou a abalar a classe política, o criminalista entrou em campo. Assumiu a defesa do vice-presidente da Camargo Corrêa, Eduardo Hermelino Leite, que depois fechou acordo de delação premiada com a força-tarefa de Curitiba e admitiu o pagamento de propina a diretores da Petrobras.

Mariz foi um dos primeiros advogados a se insurgir contra os métodos da operação, posição que mantém até hoje, dez anos após a primeira fase ostensiva da investigação prender o doleiro Alberto Youssef. Em entrevista ao Estadão, Mariz afirma que a Lava Jato alimentou a ideia de que a advocacia “atrapalha”.

Avalia, no entanto, que o exercício do direito de defesa piorou desde o auge da operação. “Com todos os erros, mazelas e prejuízos, hoje você tem dificuldades que não tinha naquela época.”

Ele cita, por exemplo, as sessões virtuais, que não permitem sustentação oral em tempo real, e o tempo reduzido para argumentação no julgamento de recursos em habeas corpus. “Se hoje não estão prendendo a torto e a direito, se não estão fazendo condução coercitiva, se hoje existe audiência de custódia, que é uma boa coisa, para exercer a defesa há mais dificuldade.”

A vasta experiência em casos de corrupção o faz acreditar que, apesar do desempenho sem precedentes, a Lava Jato não corrigiu a raiz do problema. “As causas da corrupção são éticas e eles não mexeram com isso.”

O saldo da operação, na visão do longevo advogado, foi fomentar o punitivismo. “A sociedade passou a clamar por cadeia.”

As críticas também se estendem ao hoje senador Sérgio Moro (União Brasil-PR). Assim como o Supremo Tribunal Federal (STF), que declarou o ex-juiz suspeito na condução dos processos envolvendo o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Mariz considera que Moro foi parcial. “Juiz não combate, juiz julga.”

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira sobre a Lava Jato: “A sociedade passou a clamar por cadeia.” Foto: Felipe Rau/Estadão

A Lava Jato errou?

A Lava Jato surge porque existe um problema crônico do Brasil, que se chama corrupção. Chegou um momento em que o grau de corrupção veio à tona com mais intensidade. Aí surge um juiz, em Curitiba, Sérgio Moro, que resolveu ser o juiz que iria combater a corrupção. Aí eu faço uma primeira observação: juiz não combate, juiz julga. Promotor não combate, promotor é o homem auxiliar da promoção da justiça. E o advogado defende. Esses são os nossos papéis. Não existe combatente nessa história. O primeiro grande engano dos operadores da Lava Jato foi achar que encontraram instrumentos para pôr fim ao crime. Bobagem. O crime já tinha ocorrido e a punição veio posteriormente. As causas da corrupção são éticas e eles não mexeram com isso. Em segundo lugar, nós tivemos um desvio do Direito Penal.

Os advogados tiveram dificuldade de exercer a defesa de seus clientes? Princípios como a presunção de inocência foram flexibilizados?

Com esse desvio do Direito Penal, você passou a ter uma cultura punitiva muito forte, que afastava o garantismo. Prevaleceu a punição. A sociedade passou a admirar muito o punitivismo. Para alguns, a única resposta possível ao crime era a prisão. A sociedade passou a clamar por cadeia. Aí entra um outro fator que se chama mídia. O crime passou a ser um instrumento de espetáculo. A imagem posta ao público representa uma pena perpétua e cruel.

A sociedade passou a admirar muito o punitivismo. Para alguns, a única resposta possível ao crime era a prisão. A sociedade passou a clamar por cadeia.

Antônio Cláudio Mariz de OIiveira

Neste momento, muitos advogados criminais, inclusive eu, passaram a ser contra a Lava Jato. O Judiciário passou a flexibilizar as garantias individuais. Nós começamos a perceber os excessos da Lava Jato. Vou dar um exemplo: a prisão preventiva é uma prisão em caráter excepcional, porque o que vigora é a presunção de inocência. A preventiva passou a ser usada a todo momento. Prendiam para o sujeito fazer delação e ele assentia para se ver livre da cadeia. Esse foi o primeiro instituto torto, desviante, que surgiu com a Lava Jato.

Moro foi parcial?

A grande questão da Lava Jato é que ela caiu nas mãos de quem não estava preparado para ser responsável pelo “combate” ao crime, alguém que se tornou parcial. E a única coisa que o juiz não pode ser é parcial. O juiz não pode julgar o caso antes do momento adequado. E aqui a impressão nítida é que, desde o início das investigações, o juiz já tinha constituído a sua convicção sobre o caso. Moro se tornou um paladino da honra, da decência, da honestidade, quando na verdade, não que fosse desonesto sob o aspecto moral, mas ele não tinha honestidade como juiz, no sentido de que não era imparcial. Ele recebia o inquérito e já formava o seu convencimento. Dali para frente, viesse a prova que viesse a favor do réu, ele não dava bola, ele era condenador.

Houve um direcionamento político da operação?

O que ficou muito claro para mim foi a quebra das regras de Direito. As regras protecionistas, as regras de garantias foram todas afastadas em nome desse punitivismo. Agora, se o escopo era pegar político, não sei dizer. O escopo era punir. E aí houve um outro desvio, que foi atingir as empresas. Você prejudica o País, o potencial econômico-financeiro do País.

Para Mariz, 'abusos' desmoralizaram a Lava Jato. Foto: Dida Sampaio/Estadão

Por que a Lava Jato começa a ruir?

Porque foi posta a nu. Essa vestimenta de proteção à sociedade, de combate à corrupção, caiu. Se observou que não havia um grau grande de autenticidade, as coisas já estavam pré-ordenadas. Havia uma intenção dos operadores da Lava Jato muito mais voltada para sua autopromoção do que para, efetivamente, o combate à corrupção. E os instrumentos foram errados. Uma série de fatos abusivos acabou por desmoralizar a Lava Jato.

Onde está o Direito Penal hoje? O Judiciário ficou mais punitivista pós-Lava Jato ou o garantismo reacende como reação à operação?

Difícil dizer. Não sei se alguém hoje tem essa resposta. A visão que a gente tem do Judiciário é muito mitigada. O Judiciário é tudo, não é só o Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça. O que acontece em primeiro grau, nós sabemos muito pouco. Eu sei que nós estamos passando por uma fase difícil em termos de advocacia. A mentalidade de que a advocacia atrapalha foi alimentada pela Lava Jato. Com relação a abusos, condução coercitiva e prisão preventiva em excesso, por exemplo, houve uma melhora. Por outro lado, o exercício da defesa está mais difícil. Sustentações orais você tem dificuldade. Esse processo online é uma conversa fiada.

O habeas corpus, instrumento de maior envergadura para barrar os excessos do Estado, teve sua importância mitigada. Primeiro, o desembargador ou ministro decide monocraticamente, o que já é um verdadeiro abuso, porque o tribunal existe para as decisões colegiadas. Aí, no recurso, o advogado tem cinco minutos para fazer a sustentação oral, já com o voto contra. O grande problema da advocacia é que o exercício da defesa está muito mais difícil até do que na época da Lava Jato, por incrível que pareça.

A mentalidade de que a advocacia atrapalha foi alimentada pela Lava Jato. Com relação a abusos, condução coercitiva e prisão preventiva em excesso, por exemplo, houve uma melhora. Por outro lado, o exercício da defesa está mais difícil.

Antônio Cláudio Mariz de Oliveira

Com todos os erros, mazelas e prejuízos, hoje você tem dificuldades que não tinha naquela época. E essas dificuldades estão aumentando. Se hoje não estão prendendo a torto e a direito, se não estão fazendo condução coercitiva, se hoje existe audiência de custódia, que é uma boa coisa, para exercer a defesa há mais dificuldade.

Não foi bom para a advocacia criminal enquanto houve operações?

É preciso distinguir duas coisas: o que é bom profissionalmente, em termos de resultados financeiros, e o que é bom ou não para a ordem jurídica. Para a advocacia foi mesmo. Agora é preciso fazer uma ressalva: quantos ganharam dinheiro? Há 1,3 milhão de advogados no Brasil.

O que é preciso corrigir no controle criminal da corrupção dez anos depois da Lava Jato?

Repito que a questão é ética. O que leva a esse distúrbio ético, na minha opinião, é a cobiça. A sociedade de consumo tomou conta do País. É o “ter” em substituição ao “ser”. Isso leva à ganância, que leva ao crime. Resolver isso não é um passe de mágica. Em segundo lugar, é preciso desenvolver mecanismos estatais de proteção ao erário. A lei das Licitações, por exemplo, é um campo aberto à corrupção.

Vivemos um momento de incerteza em relação à leniência. Os acordos de delação e leniência foram mal utilizados na Lava Jato ou são um instrumento válido?

O instrumento, desde que adotado de forma correta, é bom. O que não pode é delação ser prova. Delação é meio para alcançar prova. Se você me perguntar o que está acontecendo, o que especificamente está levando um determinado ministro do Supremo (Toffoli) a suspender a cobrança das multas desses acordos, eu não sei te dizer. O que está motivando essas decisões que estão anulando delações, 70 só na Odebrecht. Aí acaba tudo? Isso não está bem. A gente não consegue nem defender ou ser contra, porque não dá para entender. Quem não leu o acórdão não sabe. Quem leu o acórdão, continua não sabendo, porque não dá pra entender.

Ao longo dos 53 anos de carreira, o advogado Antonio Cláudio Mariz de Oliveira assumiu casos de enorme repercussão política. Defendeu, por exemplo, o empresário Paulo César Farias, o “PC Farias”, pivô do escândalo de corrupção que levou à queda do ex-presidente Fernando Collor. Trabalhou também no Mensalão, caso que colocou lideranças históricas do Partido dos Trabalhadores e de partidos aliados no centro de um esquema de compra de apoio político no Congresso.

Quase uma década depois, quando a Operação Lava Jato voltou a abalar a classe política, o criminalista entrou em campo. Assumiu a defesa do vice-presidente da Camargo Corrêa, Eduardo Hermelino Leite, que depois fechou acordo de delação premiada com a força-tarefa de Curitiba e admitiu o pagamento de propina a diretores da Petrobras.

Mariz foi um dos primeiros advogados a se insurgir contra os métodos da operação, posição que mantém até hoje, dez anos após a primeira fase ostensiva da investigação prender o doleiro Alberto Youssef. Em entrevista ao Estadão, Mariz afirma que a Lava Jato alimentou a ideia de que a advocacia “atrapalha”.

Avalia, no entanto, que o exercício do direito de defesa piorou desde o auge da operação. “Com todos os erros, mazelas e prejuízos, hoje você tem dificuldades que não tinha naquela época.”

Ele cita, por exemplo, as sessões virtuais, que não permitem sustentação oral em tempo real, e o tempo reduzido para argumentação no julgamento de recursos em habeas corpus. “Se hoje não estão prendendo a torto e a direito, se não estão fazendo condução coercitiva, se hoje existe audiência de custódia, que é uma boa coisa, para exercer a defesa há mais dificuldade.”

A vasta experiência em casos de corrupção o faz acreditar que, apesar do desempenho sem precedentes, a Lava Jato não corrigiu a raiz do problema. “As causas da corrupção são éticas e eles não mexeram com isso.”

O saldo da operação, na visão do longevo advogado, foi fomentar o punitivismo. “A sociedade passou a clamar por cadeia.”

As críticas também se estendem ao hoje senador Sérgio Moro (União Brasil-PR). Assim como o Supremo Tribunal Federal (STF), que declarou o ex-juiz suspeito na condução dos processos envolvendo o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Mariz considera que Moro foi parcial. “Juiz não combate, juiz julga.”

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira sobre a Lava Jato: “A sociedade passou a clamar por cadeia.” Foto: Felipe Rau/Estadão

A Lava Jato errou?

A Lava Jato surge porque existe um problema crônico do Brasil, que se chama corrupção. Chegou um momento em que o grau de corrupção veio à tona com mais intensidade. Aí surge um juiz, em Curitiba, Sérgio Moro, que resolveu ser o juiz que iria combater a corrupção. Aí eu faço uma primeira observação: juiz não combate, juiz julga. Promotor não combate, promotor é o homem auxiliar da promoção da justiça. E o advogado defende. Esses são os nossos papéis. Não existe combatente nessa história. O primeiro grande engano dos operadores da Lava Jato foi achar que encontraram instrumentos para pôr fim ao crime. Bobagem. O crime já tinha ocorrido e a punição veio posteriormente. As causas da corrupção são éticas e eles não mexeram com isso. Em segundo lugar, nós tivemos um desvio do Direito Penal.

Os advogados tiveram dificuldade de exercer a defesa de seus clientes? Princípios como a presunção de inocência foram flexibilizados?

Com esse desvio do Direito Penal, você passou a ter uma cultura punitiva muito forte, que afastava o garantismo. Prevaleceu a punição. A sociedade passou a admirar muito o punitivismo. Para alguns, a única resposta possível ao crime era a prisão. A sociedade passou a clamar por cadeia. Aí entra um outro fator que se chama mídia. O crime passou a ser um instrumento de espetáculo. A imagem posta ao público representa uma pena perpétua e cruel.

A sociedade passou a admirar muito o punitivismo. Para alguns, a única resposta possível ao crime era a prisão. A sociedade passou a clamar por cadeia.

Antônio Cláudio Mariz de OIiveira

Neste momento, muitos advogados criminais, inclusive eu, passaram a ser contra a Lava Jato. O Judiciário passou a flexibilizar as garantias individuais. Nós começamos a perceber os excessos da Lava Jato. Vou dar um exemplo: a prisão preventiva é uma prisão em caráter excepcional, porque o que vigora é a presunção de inocência. A preventiva passou a ser usada a todo momento. Prendiam para o sujeito fazer delação e ele assentia para se ver livre da cadeia. Esse foi o primeiro instituto torto, desviante, que surgiu com a Lava Jato.

Moro foi parcial?

A grande questão da Lava Jato é que ela caiu nas mãos de quem não estava preparado para ser responsável pelo “combate” ao crime, alguém que se tornou parcial. E a única coisa que o juiz não pode ser é parcial. O juiz não pode julgar o caso antes do momento adequado. E aqui a impressão nítida é que, desde o início das investigações, o juiz já tinha constituído a sua convicção sobre o caso. Moro se tornou um paladino da honra, da decência, da honestidade, quando na verdade, não que fosse desonesto sob o aspecto moral, mas ele não tinha honestidade como juiz, no sentido de que não era imparcial. Ele recebia o inquérito e já formava o seu convencimento. Dali para frente, viesse a prova que viesse a favor do réu, ele não dava bola, ele era condenador.

Houve um direcionamento político da operação?

O que ficou muito claro para mim foi a quebra das regras de Direito. As regras protecionistas, as regras de garantias foram todas afastadas em nome desse punitivismo. Agora, se o escopo era pegar político, não sei dizer. O escopo era punir. E aí houve um outro desvio, que foi atingir as empresas. Você prejudica o País, o potencial econômico-financeiro do País.

Para Mariz, 'abusos' desmoralizaram a Lava Jato. Foto: Dida Sampaio/Estadão

Por que a Lava Jato começa a ruir?

Porque foi posta a nu. Essa vestimenta de proteção à sociedade, de combate à corrupção, caiu. Se observou que não havia um grau grande de autenticidade, as coisas já estavam pré-ordenadas. Havia uma intenção dos operadores da Lava Jato muito mais voltada para sua autopromoção do que para, efetivamente, o combate à corrupção. E os instrumentos foram errados. Uma série de fatos abusivos acabou por desmoralizar a Lava Jato.

Onde está o Direito Penal hoje? O Judiciário ficou mais punitivista pós-Lava Jato ou o garantismo reacende como reação à operação?

Difícil dizer. Não sei se alguém hoje tem essa resposta. A visão que a gente tem do Judiciário é muito mitigada. O Judiciário é tudo, não é só o Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça. O que acontece em primeiro grau, nós sabemos muito pouco. Eu sei que nós estamos passando por uma fase difícil em termos de advocacia. A mentalidade de que a advocacia atrapalha foi alimentada pela Lava Jato. Com relação a abusos, condução coercitiva e prisão preventiva em excesso, por exemplo, houve uma melhora. Por outro lado, o exercício da defesa está mais difícil. Sustentações orais você tem dificuldade. Esse processo online é uma conversa fiada.

O habeas corpus, instrumento de maior envergadura para barrar os excessos do Estado, teve sua importância mitigada. Primeiro, o desembargador ou ministro decide monocraticamente, o que já é um verdadeiro abuso, porque o tribunal existe para as decisões colegiadas. Aí, no recurso, o advogado tem cinco minutos para fazer a sustentação oral, já com o voto contra. O grande problema da advocacia é que o exercício da defesa está muito mais difícil até do que na época da Lava Jato, por incrível que pareça.

A mentalidade de que a advocacia atrapalha foi alimentada pela Lava Jato. Com relação a abusos, condução coercitiva e prisão preventiva em excesso, por exemplo, houve uma melhora. Por outro lado, o exercício da defesa está mais difícil.

Antônio Cláudio Mariz de Oliveira

Com todos os erros, mazelas e prejuízos, hoje você tem dificuldades que não tinha naquela época. E essas dificuldades estão aumentando. Se hoje não estão prendendo a torto e a direito, se não estão fazendo condução coercitiva, se hoje existe audiência de custódia, que é uma boa coisa, para exercer a defesa há mais dificuldade.

Não foi bom para a advocacia criminal enquanto houve operações?

É preciso distinguir duas coisas: o que é bom profissionalmente, em termos de resultados financeiros, e o que é bom ou não para a ordem jurídica. Para a advocacia foi mesmo. Agora é preciso fazer uma ressalva: quantos ganharam dinheiro? Há 1,3 milhão de advogados no Brasil.

O que é preciso corrigir no controle criminal da corrupção dez anos depois da Lava Jato?

Repito que a questão é ética. O que leva a esse distúrbio ético, na minha opinião, é a cobiça. A sociedade de consumo tomou conta do País. É o “ter” em substituição ao “ser”. Isso leva à ganância, que leva ao crime. Resolver isso não é um passe de mágica. Em segundo lugar, é preciso desenvolver mecanismos estatais de proteção ao erário. A lei das Licitações, por exemplo, é um campo aberto à corrupção.

Vivemos um momento de incerteza em relação à leniência. Os acordos de delação e leniência foram mal utilizados na Lava Jato ou são um instrumento válido?

O instrumento, desde que adotado de forma correta, é bom. O que não pode é delação ser prova. Delação é meio para alcançar prova. Se você me perguntar o que está acontecendo, o que especificamente está levando um determinado ministro do Supremo (Toffoli) a suspender a cobrança das multas desses acordos, eu não sei te dizer. O que está motivando essas decisões que estão anulando delações, 70 só na Odebrecht. Aí acaba tudo? Isso não está bem. A gente não consegue nem defender ou ser contra, porque não dá para entender. Quem não leu o acórdão não sabe. Quem leu o acórdão, continua não sabendo, porque não dá pra entender.

Entrevista por Rayssa Motta

Repórter do 'Estadão' em São Paulo. Cobre Judiciário e Política. É jornalista formada pela Uerj e mestranda em Ciência Política na USP.

Julia Affonso

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