A palavra sentença vem do “sententia”, que deriva do latim “sentire”, que é, entre outras coisas, sentir emoções. Embora dois mil anos acompanhem a evolução desses significados, hoje me pergunto se é possível uma sentença desprovida de qualquer sentimento. Que será que se passa dentro de juízes e juízas ao proferirem uma decisão? Será que sentem raiva? Será que sentem paixão, compaixão, medo, angústia, dor, amor, ódio?
Nos meus primeiros dias como juiz me deparei com a mais difícil de todas as decisões que tive que proferir até hoje. Ironia do destino, algumas semanas antes, numa aula do curso de aprimoramento para juízes federais promovido pelo Tribunal Regional Federal do Rio de Janeiro, eu mesmo disse com todas as palavras: “Professor, espero jamais ter que me deparar com um caso como esse, porque não sei como meu coração iria reagir”. Tenho amigos como testemunhas, e a gravação da aula como prova irrefutável.
Era uma tarde normal quando recebi a ligação do pessoal da assessoria. Uma advogada queria falar comigo sobre um processo em que se pedia a condenação da União Federal à obrigação de fornecer o remédio mais caro do mundo. À época, o Zolgensma custava nove milhões de reais, e uma criança de um ano e pouco precisava da dose única, única e última esperança da chance para se curar da Atrofia Muscular Espinhal (AME) tipo 1, a mais agressiva de todas, que degenera os nervos, e reduz a expectativa de vida para menos que dois anos. Atendi prontamente, numa audiência online em que a advogada me detalhou todo o caso. Explicou sobre a doença, sobre o remédio, e sobre a atual situação do paciente e autor representado pela mãe. Terminou pedindo que eu sentisse o caso, e sentenciasse favoravelmente, embora houvesse razões para o “sim” e para o “não”.
Permita-me não contar aqui a posição que tomei, pois quero que você, em alguma medida, assuma meu lugar no esforço de reflexão: são nove milhões de reais, dinheiro que vai sair dos cofres públicos, dinheiro que seria – de outro modo – utilizado para outros remédios. Mas é uma criança, acometida com uma doença genética, ocasionada pela combinação de fatores aleatórios da combinação dos genes e DNA, e ela vai morrer.
Acho que a forma melhor de reproduzir essa experiência é através de uma ficção. E foi com esse ânimo que escrevi “A Espada da Justiça”, romance que publiquei neste ano pela Editora Labrador em que o protagonista Abraão, que também é juiz federal há muito tempo, se depara com um caso parecido, exatamente num dos momentos mais contraditórios de sua existência. O enredo trata de temas como relações de parentesco, relações de poder, estrutura do Judiciário, ao passo que também mergulha na complexidade da vida de um magistrado na sua missão de decidir. Abraão é um judeu não praticante, casado com uma católica, pai de uma filha presa num casamento abusivo e violento. É um juiz solitário que passou 25 anos julgando com indiferença, empurrado pelas circunstâncias, sem propósito, e a essa altura se questiona sobre o que fez, o que deixou de fazer, e o que terá que fazer, se é que ainda há salvação para seu ocaso.
Muito se fala sobre o adoecimento psicológico, e as crises de saúde mental que a pós-modernidade vem causando. Chega-se ao ponto de se achar que todo mundo, em alguma medida, ou precisa, ou vai precisar de terapia para suportar o peso do futuro incerto. E se isso é verdade, o que dizer daqueles que a lei supõe serem os senhores da razão? Ora, ao juiz não cabe perder as estribeiras, muito embora vejamos casos em que isso ocorreu. Não falo apenas de abusos, mas de situações em que decisões são produtos de inúmeros fatores, nenhum deles sendo o direito ou fatos. É o juiz ressentido que se vinga das partes com uma decisão, é a juíza comovida que ajuda a parte para além do que prevê a lei, é a sentença que procura os fundamentos jurídicos como quem cata peças de um quebra-cabeça cuja imagem é uma distorção da realidade. Somos humanos, e não nos esqueçamos: juízes e juízas também são.
Como ficção que é, o livro não propõe soluções, mas apenas anima o espírito do leitor. Tento fazê-lo amar Abraão, ou repugnar suas ações; absolvê-lo, ou condená-lo nos termos da lei. É como uma espada com um gume duplo e afiado, que corta dos dois lados, pois seja qual for o veredito, é sempre da Justiça.