O Supremo Tribunal Federal proferiu algumas decisões que preocupam não apenas os profissionais jurídicos como, também, os cidadãos em geral. Essa preocupação não se dá simplesmente pelo conteúdo, mas pelos assuntos tratados e pelas consequências. Dois casos chamam a atenção e a estes muitos outros se somam: (a) o Tribunal manteve indenização à família de vítima de bala perdida, morta em 2002, no valor de R$ 120.000,00; (b) caso semelhante envolve manutenção de indenização aos familiares de criança morta, em 2014, também por bala perdida, no total de R$ 200.000,00.
Deixemos de lado os valores financeiros irrisórios - que são pífios perante as verbas indenizatórias recebidas por membros do Ministério Público e da Magistratura e que, não raro, extrapolam o teto constitucional. Fiquemos atentos ao lapso temporal entre os fatos trágicos e as decisões, o que não inclui o efetivo recebimento dos valores. Pessoas foram mortas por erro do Estado e o mínimo que poderia ser feito - o pagamento de indenização aos familiares - é empurrado até o limite dos recursos judiciais. Semelhante tática é utilizada para reparar os que foram vítimas de falhas do sistema penal, especialmente pessoas vulneráveis que foram presas e/ou condenadas indevidamente.
Já faz algum tempo que muitos defendem a possibilidade jurídica de antecipar a execução da pena após condenação em segunda instância e, no caso do Tribunal do Júri, bastaria o veredito condenatório, ainda que o recurso não tenha sido julgado. Acontece que os mesmos defensores da antecipação da pena, em violação ao princípio constitucional da presunção de inocência, pouco se importam com a execução do pagamento de indenizações para quem sofre perdas e danos decorrentes da atividade do Estado. O raciocínio é o seguinte: se uma pessoa é condenada em segunda instância, a pena deveria ser iniciada imediatamente, mesmo sem o trânsito em julgado da decisão; entretanto, se houver sua absolvição no STJ ou no STF, o Estado pode esticar a corda até o limite para não pagar os valores reparatórios.
Durante a discussão sobre o projeto das denominadas “Dez medidas contra a corrupção”, em evento realizado em São Paulo, tive a oportunidade de perguntar a um defensor da antecipação da pena se, caso houvesse absolvição posterior, teria qualquer previsão de indenização automática. A resposta foi bem evasiva: o projeto considera apenas medidas de natureza penal. Em poucas palavras, o convidado atribuiu ao direito penal a solução de todos os problemas e, ao mesmo tempo, desprezou a dignidade humana daqueles que podem ser vítimas de erros judiciais e ignorou a presunção de inocência.
Inúmeros casos são relatados pela imprensa e por organizações de direitos humanos. Apenas para ilustrar, vejamos o caso de Heberson Lima de Oliveira, que, em 2003, foi preso após ser falsamente acusado de estupro. Após quase três anos de prisão, Heberson foi absolvido pela evidente falha nas investigações e, principalmente, pela presunção de culpa aplicada pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário. Afinal, se um negro - e pobre - é investigado pela polícia, o mais provável é que ele seja um criminoso, portanto, basta pedir a prisão preventiva que esta será concedida; se a liberdade for requerida, provavelmente será negada. Heberson não só ficou preso injustamente, mas também foi sexualmente violentado no cárcere, contraiu HIV e perdeu parcialmente a visão, de tanto apanhar.
Diante de tudo que ocorreu em sua vida, esperava-se que o Estado prontamente lhe indenizasse pela “morte em vida” e que o valor fosse significativo. Atualmente, em 2023, Heberson ainda não foi indenizado, apesar de ter obtido vitória nas duas instâncias. O valor pífiio de R$ 135.000,00 foi impugnado pelo Estado do Amazonas e o STJ ainda não proferiu decisão. Certamente, haverá novo recurso ao STF, que dará razão a Heberson, que talvez esteja vivo para receber a esmola indenizatória.
A sanha punitiva de alguns agentes do Estado é cega, incapaz de enxergar que seres humanos falham - e muito - principalmente se o investigado for negro e pobre. Pensar em antecipar a execução da pena, apesar de ser inconstitucional, requer a elaboração de mecanismos reparatórios para os inúmeros casos de erros que acontecem e acontecerão. Não é justo buscar a aplicação da pena antes do trânsito em julgado sem o devido contrapeso, que é a pronta reparação dos danos causados indevidamente. Se os processos criminais são morosos, o problema da lentidão deve ser resolvido, inclusive porque a Constituição Federal garante sua duração razoável. Atacar os direitos fundamentais é a solução mais desonesta para trazer algum tipo de eficiência do sistema jurídico-penal.
*João Paulo Martinelli, advogado, mestre e doutor em Direito (USP), com pós-doutoramento pela Universidade de Coimbra, professor de graduação e pós-graduação