A lei da ficha limpa, talvez muitos não saibam, é uma das poucas que estão em vigor no Brasil fruto de projeto de iniciativa popular, a partir de um milhão e seiscentas mil assinaturas colhidas durante quatorze anos. No bojo de um preocupante processo de erosão democrática, em que vem crescendo o uso do expediente da chamada urgência de votação (foram 22 em 2008 e mais de 400 em 2024), avançou tanto na Câmara como no Senado o PLP 192/2023 que propunha o enfraquecimento da Lei da Ficha Limpa, sendo aprovado em ambas as casas mediante urgência de votação, sem passar por comissões, sem realização de qualquer audiência pública. Está pronto para votar podendo ser pautado a qualquer momento e só não foi no final do ano por se temer desgaste e prejuízo nas eleições.
Ou seja, uma lei que foi aprovada a partir de um projeto de iniciativa popular corre o risco de ser desfigurada sem debate democrático em qualquer das Casas do Parlamento, pouco importando o bicameralismo, que não está protegendo o instituto, que visa afastar da vida política os violadores da lei. Seu principal instrumento jurídico, registre-se, é a inelegibilidade dos maus políticos por oito aos, pena a ser aplicada após o trânsito em julgado da decisão (após ela se tornar definitiva, não cabendo mais recurso).
Neste contexto, no Congresso, registre-se, acabam de ser empossadas as novas mesas diretoras com votações consagradoras, tomando posse também o Senador Chico Rodrigues, em cujas nádegas foram encontrados R$30.000,00 e que jamais foi por isto punido, assumindo com pompa e circunstância a primeira suplência da mesa, em evidente demonstração de desrespeito à sociedade, já que não se leva em conta a necessidade de preservar o decoro parlamentar e a ética na política.
Em frente paralela ao projeto da anistia ao 8 de janeiro, a oposição decidiu agora apostar na articulação da alteração na Lei da Ficha Limpa para reduzir a inelegibilidade de oito para dois anos. De autoria do deputado Bibo Nunes (PL-RS), a inacreditável proposta preconiza que o prazo passa a contar a partir da eleição que ensejou a punição e abre caminho para o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) disputar a eleição para presidente em 2026.
A mudança de rota visa a ganhar a simpatia de outros partidos, já que inelegibilidade atinge políticos de todas as alas políticas. O projeto já traz até o momento a assinatura de 73 deputados, a maioria do PL, mas também do MDB, Patriota, PP, PSD e Republicanos, partido do novo presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB). Neste sentido, deve-se registrar que desta forma foi a provada a PEC da anistia aos partidos assim como a reforma que enfraqueceu a lei de improbidade administrativa (Lei 14230/21), quando petistas e bolsonaristas se uniram a outros segmentos políticos.
No que diz respeito à mudança da lei de improbidade aliás, diversos parlamentares que votaram o projeto respondiam a ações de improbidade e, mesmo assim se posicionaram pela aprovação do projeto de caráter despenalizante, legislando em causa própria sem qualquer constrangimento.
Observe-se que o próprio autor do projeto, Roberto de Lucena, diante da total desfiguração do projeto pela versão substitutiva, não debatida em sequer uma audiência pública e que teve urgência de votação aprovada em oito minutos, votou contra a aprovação.
Esta proposta de Bibo Nunes é verdadeiro escárnio. Observe-se: as eleições ocorrem a cada ciclo de quatro anos e o âmago da Lei da Ficha Limpa, como já disse, é punir com a pena de Inelegibilidade de oito anos, afastando o violador da vida eleitoral por duas eleições, período dentro do qual há muita movimentação política e esta pena é um tempo efetivo para punir o violador da lei. O Supremo Tribunal Federal já foi chamado para examinar a constitucionalidade deste sistema e o confirmou em mais de uma ocasião.
O que se está pretendendo agora é garantir impunidade por lei, já que dois anos de inelegibilidade é absolutamente nada no que diz respeito ao tempo da política. Seria como condenar um homicida a uma pena de multa, um estuprador a uma pena de prestação de serviços à comunidade ou um latrocida à limitação de fim de semana. O que se pretende com a mudança é garantir a impunidade, pois oito anos de inelegibilidade para o político representam sanção efetiva, que se pretende desmontar, virando a mesa. No caso específico de Bolsonaro, há um elemento a mais, pretende-se afrontar diretamente o Judiciário – estamos diante de uma Guerra de Poderes. Portanto, observando-se a floresta toda, este projeto pretende afrontar em verdade o princípio constitucional da separação de poderes.
Este texto reflete a opinião do(a) autor(a). Esta série é uma parceria entre o blog do Fausto Macedo e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica