O ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), votou neste domingo, 31, data em que o golpe militar de 1964 completa 60 anos, contra qualquer interpretação que permita uma intervenção das Forças Armadas sobre os Poderes da República ou as classifique como “poder moderador”. No voto, o magistrado afirmou que não existe um “poder militar”.
É o terceiro voto no sentido de definir os limites constitucionais da atuação das Forças Armadas e de ressaltar que a Constituição não dá aos militares a atribuição de moderar conflitos dos Três Poderes.
“O poder é apenas civil, constituído por três ramos ungidos pela soberania popular, direta ou indiretamente. A tais poderes constitucionais, a função militar é subalterna”, destacou o ministro Flávio Dino.
Flávio Dino ainda usou o voto para criticar o golpe de 1964, que ele chamou de “período abominável”. “O Estado de Direito foi destroçado pelo uso ilegítimo da força”, escreveu. “São páginas, em larga medida, superadas na nossa história. Contudo, ainda subsistem ecos desse passado que teima em não passar, o que prova que não é tão passado como aparenta ser.”
No voto, Dino ainda sugeriu que todas as organizações militares, inclusive escolas de formação, sejam comunicadas do resultado do julgamento assim que ele for finalizado.
“Dúvida não paira de que devem ser eliminadas quaisquer teses que ultrapassem ou fraudem o real sentido do artigo 142 da Constituição Federal, fixado de modo imperativo e inequívoco por este Supremo Tribunal”, pontuou o ministro.
Amplamente citado por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, durante manifestações na porta de quartéis do Exército, entre novembro e dezembro de 2022, o artigo 142 versa sobre a função das Forças Armadas no País. O dispositivo legal aponta que “as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
Na visão dos apoiadores de Bolsonaro, contudo, este trecho da legislação seria uma autorização constitucional para que Exército, Marinha e Aeronáutica atuassem como um “poder moderador”, se convocados a uma “intervenção militar”. Este entendimento seria uma forma de embasar ações antidemocráticas e contestar o resultado das urnas, que haviam dado a vitória ao atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições de 2022.
Juristas consultado pelo Estadão, naquela ocasião, apontavam que não havia respaldo legal para a interpretação dos apoiadores de Bolsonaro. O ex-presidente havia mencionado o artigo 142 durante uma reunião ministerial em 2020, com a tese de que as Forças Armadas teriam poder de moderar conflitos entre os Três Poderes.
“Nós queremos fazer cumprir o artigo 142 da Constituição. Todo mundo quer fazer cumprir o artigo 142 da Constituição. E, havendo necessidade, qualquer dos Poderes pode, né? Pedir às Forças Armadas que intervenham para restabelecer a ordem no Brasil”, disse o então presidente.
O julgamento começou na última sexta-feira, 29, e os ministros têm até o próximo dia 8 para lançar seus posicionamentos no sistema. O caso é referente a uma ação movida pelo PDT em 2020. O partido questiona as regras de emprego das Forças Armadas e a atribuição do Poder Executivo sobre elas.
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O relator do caso, ministro Luiz Fux, votou na sexta-feira, 29, afirmando que a Constituição não encoraja ruptura democrática. Em seu voto, o ministro afirma que a interpretação do artigo 142 deve ser feita considerando todo o sistema legal brasileiro, especialmente no que diz respeito à separação dos Poderes, e relembra que as Forças Armadas não são um Poder, mas sim uma instituição à disposição deles.
Para Fux, a Constituição não autoriza que o presidente da República recorra às Forças Armadas contra os outros dois Poderes – Legislativo e Judiciário –, bem como não concede aos militares a atribuição de moderar eventuais conflitos entre Executivo, Legislativo e Judiciário.
“Qualquer instituição que pretenda tomar o poder, seja qual for a intenção declarada, fora da democracia representativa ou mediante seu gradual desfazimento interno, age contra o texto e o espírito da Constituição”, disse o ministro em seu voto, acrescentando ser urgente “constranger interpretações perigosas que permitam a deturpação do texto constitucional e de seus pilares e ameacem o Estado Democrático de Direito”.
Fux já havia dado um parecer individual em 2020 sobre a consulta do PDT, afirmando que, apesar de a lei mencionar que o presidente da República tem autoridade suprema sobre as Forças Armadas, ela “não se sobrepõe à separação e à harmonia entre os Poderes”.
O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, acompanhou o voto de Fux.