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Opinião|Golpe é corrupção?


Golpe militar, diga-se, espécie de cláusula pétrea não escrita, embora amplamente compartilhada, para lidar com contextos de aguda crise política. É possível contar a história da república brasileira valendo-se, basicamente, dos golpes de estado praticados e/ou ensaiados desde então

Por Clayton Romano

Convenhamos, a pergunta-título é no mínimo oportuna. Será golpe de estado ato corrupto? Para tanto, tendo em vista a realidade brasileira, deve-se considerar ao menos dois aspectos fundamentais: 1) o golpismo enquanto componente ético-político essencial de concepções e práticas políticas de vários atores sociais no Brasil, constituindo-se em traço marcante do republicanismo brasileiro; e 2) a histórica e peculiar relação do país com atos de corrupção.

Comecemos por aí. Não há uma definição unívoca para corrupção, que, como toda e qualquer concepção social, todo e qualquer conceito político, refere-se a valores e comportamentos ditados por dados contexto e tempo históricos. Jamais tido como corrupção, o gesto inaugural de Pedro Álvares Cabral em seu contato com indígenas aqui existentes, com a oferta de linho a vinho, bem exemplifica como as concepções mudam.

Cabral poderia ser hoje acusado de peculato e, se condenado, estaria sujeito à pena de dois a doze anos de reclusão e multa. Não havia no tempo de Cabral, é certo, nítida distinção entre público e privado, sendo ele então mero agente privado a serviço do estado português, primeiro estado-nação europeu, constituído ainda entre os séculos 12 e 13. De Cabral aos engenhos, das capitanias hereditárias às sesmarias, público e privado eram unos.

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À medida que crescia sua participação no mercado internacional e aumentava a importância econômica de sua maior colônia, o império luso tratou de demarcar fronteiras entre interesses públicos (isto é, estatais) e interesses privados. Talvez o melhor exemplo venha da taxação de um quinto da produção nas minas, responsável pela expressão “quinto dos infernos” e o advento dos “santos do pau oco”, notórios símbolos de fraude tributária.

A fuga da corte portuguesa, em 1808, transferiu a sede do império para a colônia, em gesto sem paralelo na história, instituindo de fato, e só a partir de então, o poder público (isto é, estatal) no Brasil. Oficialmente criado em 1822, o estado brasileiro herdaria a particular interação entre público e privado dos tempos de colônia. Latifundiário, escravista, excludente, outorgou sua primeira carta magna (1824) após dissolver o parlamento.

Que incluiu o poder moderador entre os poderes constitucionais (executivo, legislativo e judiciário), reservando-o ao monarca entronado. Sobrepôs, na prática, o poder unipessoal, autocrático, privado, aos demais poderes públicos (isto é, estatais). Foi a mais longeva das sete constituições do Brasil. Vigorou até 1891, substituída pela primeira carta republicana, resultante do golpe de estado que, em 15 de novembro de 1889, fundou a república.

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A rigor, a independência de 1822 também poderia ser caracterizada como golpe de estado, capitaneado pelo príncipe herdeiro, coroado imperador do Brasil, posto que abdicaria em 1831. Já em 1889, não resta dúvida, deu-se mesmo golpe de estado. Fez-se assim a res publica brasileira, indelevelmente atrelada ao golpismo, entre doutos, para poucos, sem povo. A consagração da coisa pública, do poder público no Brasil traz a marca do golpe.

Golpe militar, diga-se, espécie de cláusula pétrea não escrita, embora amplamente compartilhada, para lidar com contextos de aguda crise política. É possível contar a história da república brasileira valendo-se, basicamente, dos golpes de estado praticados e/ou ensaiados desde então. A mal denominada “revolução de 1930″ foi golpe de estado, impetrado por oligarcas derrotados na farsa eleitoral encenada por oligarquias desde 1889.

Teve povo na rua, é verdade, devido sobretudo ao alcance político do tenentismo, movimento de subalternos militares com forte adesão social nos anos 1920, o que não tornou aquele golpe de estado menos golpe. Ao absorver parcela significativa de militares mobilizados em torno do tenentismo, os comunistas também deram vazão ao golpismo no fracassado levante de 1935. A ditadura do Estado Novo (1937/45) se instalou via golpe.

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Ditadura derrubada por novo golpe, que autorizou a organização de partidos nacionais, convocou eleições gerais e promulgou a carta de 1946. A bala no peito foi a resposta de Getúlio Vargas a outro golpe de estado, em 1954, frustrado ao ex-ditador eleito presidente (1950) deixar a vida para entrar na história. Frustrou-se ainda a tentativa de impedir a posse de Juscelino Kubitschek, eleito em 1955. Da renúncia de Jânio Quadros (1961) se fez 1964.

O golpe de estado de 1º de abril instalou a mais longa ditadura militar do Cone Sul. Por 21 anos, militares comandaram com poderes discricionários o maior país da América Latina. Consagraram leis de mercado em detrimento do bem-estar social, despertando o instinto egoístico do país em escala industrial, eternizado em princípio ético-político tido como tipicamente brasileiro: “levar vantagem em tudo”. Convicção jamais desmentida após 1985.

Sabe-se hoje do golpe tramado entre 2022 e 2023, por agentes públicos, militares de alta patente, mobilizados para fins privados. Não será então golpe de estado ato de corrupção?

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Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica

Convenhamos, a pergunta-título é no mínimo oportuna. Será golpe de estado ato corrupto? Para tanto, tendo em vista a realidade brasileira, deve-se considerar ao menos dois aspectos fundamentais: 1) o golpismo enquanto componente ético-político essencial de concepções e práticas políticas de vários atores sociais no Brasil, constituindo-se em traço marcante do republicanismo brasileiro; e 2) a histórica e peculiar relação do país com atos de corrupção.

Comecemos por aí. Não há uma definição unívoca para corrupção, que, como toda e qualquer concepção social, todo e qualquer conceito político, refere-se a valores e comportamentos ditados por dados contexto e tempo históricos. Jamais tido como corrupção, o gesto inaugural de Pedro Álvares Cabral em seu contato com indígenas aqui existentes, com a oferta de linho a vinho, bem exemplifica como as concepções mudam.

Cabral poderia ser hoje acusado de peculato e, se condenado, estaria sujeito à pena de dois a doze anos de reclusão e multa. Não havia no tempo de Cabral, é certo, nítida distinção entre público e privado, sendo ele então mero agente privado a serviço do estado português, primeiro estado-nação europeu, constituído ainda entre os séculos 12 e 13. De Cabral aos engenhos, das capitanias hereditárias às sesmarias, público e privado eram unos.

À medida que crescia sua participação no mercado internacional e aumentava a importância econômica de sua maior colônia, o império luso tratou de demarcar fronteiras entre interesses públicos (isto é, estatais) e interesses privados. Talvez o melhor exemplo venha da taxação de um quinto da produção nas minas, responsável pela expressão “quinto dos infernos” e o advento dos “santos do pau oco”, notórios símbolos de fraude tributária.

A fuga da corte portuguesa, em 1808, transferiu a sede do império para a colônia, em gesto sem paralelo na história, instituindo de fato, e só a partir de então, o poder público (isto é, estatal) no Brasil. Oficialmente criado em 1822, o estado brasileiro herdaria a particular interação entre público e privado dos tempos de colônia. Latifundiário, escravista, excludente, outorgou sua primeira carta magna (1824) após dissolver o parlamento.

Que incluiu o poder moderador entre os poderes constitucionais (executivo, legislativo e judiciário), reservando-o ao monarca entronado. Sobrepôs, na prática, o poder unipessoal, autocrático, privado, aos demais poderes públicos (isto é, estatais). Foi a mais longeva das sete constituições do Brasil. Vigorou até 1891, substituída pela primeira carta republicana, resultante do golpe de estado que, em 15 de novembro de 1889, fundou a república.

A rigor, a independência de 1822 também poderia ser caracterizada como golpe de estado, capitaneado pelo príncipe herdeiro, coroado imperador do Brasil, posto que abdicaria em 1831. Já em 1889, não resta dúvida, deu-se mesmo golpe de estado. Fez-se assim a res publica brasileira, indelevelmente atrelada ao golpismo, entre doutos, para poucos, sem povo. A consagração da coisa pública, do poder público no Brasil traz a marca do golpe.

Golpe militar, diga-se, espécie de cláusula pétrea não escrita, embora amplamente compartilhada, para lidar com contextos de aguda crise política. É possível contar a história da república brasileira valendo-se, basicamente, dos golpes de estado praticados e/ou ensaiados desde então. A mal denominada “revolução de 1930″ foi golpe de estado, impetrado por oligarcas derrotados na farsa eleitoral encenada por oligarquias desde 1889.

Teve povo na rua, é verdade, devido sobretudo ao alcance político do tenentismo, movimento de subalternos militares com forte adesão social nos anos 1920, o que não tornou aquele golpe de estado menos golpe. Ao absorver parcela significativa de militares mobilizados em torno do tenentismo, os comunistas também deram vazão ao golpismo no fracassado levante de 1935. A ditadura do Estado Novo (1937/45) se instalou via golpe.

Ditadura derrubada por novo golpe, que autorizou a organização de partidos nacionais, convocou eleições gerais e promulgou a carta de 1946. A bala no peito foi a resposta de Getúlio Vargas a outro golpe de estado, em 1954, frustrado ao ex-ditador eleito presidente (1950) deixar a vida para entrar na história. Frustrou-se ainda a tentativa de impedir a posse de Juscelino Kubitschek, eleito em 1955. Da renúncia de Jânio Quadros (1961) se fez 1964.

O golpe de estado de 1º de abril instalou a mais longa ditadura militar do Cone Sul. Por 21 anos, militares comandaram com poderes discricionários o maior país da América Latina. Consagraram leis de mercado em detrimento do bem-estar social, despertando o instinto egoístico do país em escala industrial, eternizado em princípio ético-político tido como tipicamente brasileiro: “levar vantagem em tudo”. Convicção jamais desmentida após 1985.

Sabe-se hoje do golpe tramado entre 2022 e 2023, por agentes públicos, militares de alta patente, mobilizados para fins privados. Não será então golpe de estado ato de corrupção?

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica

Convenhamos, a pergunta-título é no mínimo oportuna. Será golpe de estado ato corrupto? Para tanto, tendo em vista a realidade brasileira, deve-se considerar ao menos dois aspectos fundamentais: 1) o golpismo enquanto componente ético-político essencial de concepções e práticas políticas de vários atores sociais no Brasil, constituindo-se em traço marcante do republicanismo brasileiro; e 2) a histórica e peculiar relação do país com atos de corrupção.

Comecemos por aí. Não há uma definição unívoca para corrupção, que, como toda e qualquer concepção social, todo e qualquer conceito político, refere-se a valores e comportamentos ditados por dados contexto e tempo históricos. Jamais tido como corrupção, o gesto inaugural de Pedro Álvares Cabral em seu contato com indígenas aqui existentes, com a oferta de linho a vinho, bem exemplifica como as concepções mudam.

Cabral poderia ser hoje acusado de peculato e, se condenado, estaria sujeito à pena de dois a doze anos de reclusão e multa. Não havia no tempo de Cabral, é certo, nítida distinção entre público e privado, sendo ele então mero agente privado a serviço do estado português, primeiro estado-nação europeu, constituído ainda entre os séculos 12 e 13. De Cabral aos engenhos, das capitanias hereditárias às sesmarias, público e privado eram unos.

À medida que crescia sua participação no mercado internacional e aumentava a importância econômica de sua maior colônia, o império luso tratou de demarcar fronteiras entre interesses públicos (isto é, estatais) e interesses privados. Talvez o melhor exemplo venha da taxação de um quinto da produção nas minas, responsável pela expressão “quinto dos infernos” e o advento dos “santos do pau oco”, notórios símbolos de fraude tributária.

A fuga da corte portuguesa, em 1808, transferiu a sede do império para a colônia, em gesto sem paralelo na história, instituindo de fato, e só a partir de então, o poder público (isto é, estatal) no Brasil. Oficialmente criado em 1822, o estado brasileiro herdaria a particular interação entre público e privado dos tempos de colônia. Latifundiário, escravista, excludente, outorgou sua primeira carta magna (1824) após dissolver o parlamento.

Que incluiu o poder moderador entre os poderes constitucionais (executivo, legislativo e judiciário), reservando-o ao monarca entronado. Sobrepôs, na prática, o poder unipessoal, autocrático, privado, aos demais poderes públicos (isto é, estatais). Foi a mais longeva das sete constituições do Brasil. Vigorou até 1891, substituída pela primeira carta republicana, resultante do golpe de estado que, em 15 de novembro de 1889, fundou a república.

A rigor, a independência de 1822 também poderia ser caracterizada como golpe de estado, capitaneado pelo príncipe herdeiro, coroado imperador do Brasil, posto que abdicaria em 1831. Já em 1889, não resta dúvida, deu-se mesmo golpe de estado. Fez-se assim a res publica brasileira, indelevelmente atrelada ao golpismo, entre doutos, para poucos, sem povo. A consagração da coisa pública, do poder público no Brasil traz a marca do golpe.

Golpe militar, diga-se, espécie de cláusula pétrea não escrita, embora amplamente compartilhada, para lidar com contextos de aguda crise política. É possível contar a história da república brasileira valendo-se, basicamente, dos golpes de estado praticados e/ou ensaiados desde então. A mal denominada “revolução de 1930″ foi golpe de estado, impetrado por oligarcas derrotados na farsa eleitoral encenada por oligarquias desde 1889.

Teve povo na rua, é verdade, devido sobretudo ao alcance político do tenentismo, movimento de subalternos militares com forte adesão social nos anos 1920, o que não tornou aquele golpe de estado menos golpe. Ao absorver parcela significativa de militares mobilizados em torno do tenentismo, os comunistas também deram vazão ao golpismo no fracassado levante de 1935. A ditadura do Estado Novo (1937/45) se instalou via golpe.

Ditadura derrubada por novo golpe, que autorizou a organização de partidos nacionais, convocou eleições gerais e promulgou a carta de 1946. A bala no peito foi a resposta de Getúlio Vargas a outro golpe de estado, em 1954, frustrado ao ex-ditador eleito presidente (1950) deixar a vida para entrar na história. Frustrou-se ainda a tentativa de impedir a posse de Juscelino Kubitschek, eleito em 1955. Da renúncia de Jânio Quadros (1961) se fez 1964.

O golpe de estado de 1º de abril instalou a mais longa ditadura militar do Cone Sul. Por 21 anos, militares comandaram com poderes discricionários o maior país da América Latina. Consagraram leis de mercado em detrimento do bem-estar social, despertando o instinto egoístico do país em escala industrial, eternizado em princípio ético-político tido como tipicamente brasileiro: “levar vantagem em tudo”. Convicção jamais desmentida após 1985.

Sabe-se hoje do golpe tramado entre 2022 e 2023, por agentes públicos, militares de alta patente, mobilizados para fins privados. Não será então golpe de estado ato de corrupção?

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica

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