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Opinião|Há lutas que valem


Por José Renato Nalini
Soldados posam em frente ao quartel de alistamento em São Paulo, 1932. Foto: Acervo Estadão

9 de julho de 1932. Aos poucos, arrefece o sentimento de brio e orgulho da gente paulista que foi às armas para exigir respeito. Quem hoje se disporia a morrer motivado pela observância de um pacto democrático de convivência? Pois foi isso o que aconteceu então e cumpriria às novas gerações manterem acesa a flama patriótica. Desde que os antigos a incutissem na consciência das crianças, em lugar de fazê-las decorar e repetir informações, sem noção do que aprendem.

A São Paulo recolhida no trabalho e na conquista do território nunca teve pretensão de concorrer com a Corte, onde o ócio sustentado pelos trabalhadores sempre adulou o poder. Aqui a majestade fora recusada por Amador Bueno, "o homem que não quis ser rei".

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Em 1924, sua população teve de fugir porque as ambições fizeram-na palco de carnificina. Entre 5 e 27 de julho daquele ano, o governo local tornou-se acéfalo e episódios deploráveis martirizaram inocentes. Páginas praticamente sepultadas da memória coletiva. A Revolução de 1924 praticamente foi varrida do registro histórico.

Já em 1932, ocorreu um fenômeno instigante. Uma apaixonada adesão de todas as gentes, independentemente de fortuna ou escolaridade, a uma causa capaz de despertar um sentimento hoje desaparecido: o chamado "patriotismo".

Dir-se-á que 1932 interessava mais à elite apeada do poder em 1930, do que ao povo, objeto das deliberações dos verdadeiros gestores dos interesses coletivos. É em nome do povo que os condutores tecem suas tramas sempre egoísticas. Povo é pretexto para empolgar o poder. Só que os fatos adquirem dimensões inesperadas. A política é irracional. "Tudo se passa como se, além dos fenômenos aparentes ou mensuráveis, a vida política fosse também sustentada por uma história mais difusa e qualitativamente assinalável, a dos sentimentos coletivos e das paixões, acompanhando ou interferindo com as práticas políticas".

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A paixão do paulista sempre foi a liberdade. Nunca se afeiçoou aos maus costumes do governo central, sustentado pelos elevados tributos subtraídos aos espoliados contribuintes e pelo suor dos escravos.

Enquanto não se provocava São Paulo, tão distante da capital, já acostumada à hipocrisia dos áulicos, daqui não partia uma vocação hegemônica. Os paulistas queriam viver sua vida, aparentemente protegidos pela muralha verde da Serra do Mar. Todavia, a distância dos luxos e frivolidades que acompanham os governos, favoreceu o desenvolvimento de um intelecto mais apurado. Por que foi em nosso chão que medrou a Semana de Arte Moderna de 1922?

A pauliceia preferia sonhar, poetar, sem deixar de cultivar. Não era gente violenta. Apavorava-a pensar em revolução. Pois se criara um tabu em torno à Revolução Russa de 1917. Desde essa época, era abominável a ideia de comunismo. Em 30 de novembro de 1930, Mário de Andrade escrevia: "Está se dando aqui no Brasil um movimento em torno da palavra "Comunismo" que é dum ridículo perfeitamente idiota. É vergonhoso, mas incontestável que, para uma grande maioria de indivíduos até bem alfabetizados, "Comunismo" chega a ser isso da gente se aproximar dum indivíduo e ir falando: "Me dê sua gravata que pretendo ficar com ela". Um pensamento que ficou entranhado na obscura mente fundamentalista até nossos dias.

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Desde que não fosse incomodado, o paulista continuaria a gerir sua vida laboral, despojado da intenção de tomar conta do Brasil. Só que o ditador Vargas passou a tratar São Paulo com desrespeito. Uma sucessão de nomeações e exonerações de interventores completamente alheios à realidade bandeirante. Diante da continuidade do desrespeito, os paulistas se uniram em frente única. Adversários ferrenhos, o Partido Republicano Paulista e o Partido Democrático se aliaram. E conseguiram a façanha de empolgar toda a população.

Não há similar na História de São Paulo, dessa demonstração da capacidade de esquecer as diferenças, de abraçar uma causa e de se dispor a oferecer a própria vida em prol daquilo que representava a preservação da paz com dignidade: a Constituição.

Hoje, o que significa para a maioria, uma Constituição? Quem se disporia a morrer por ela? Quem se convence de que há lutas que valem a pena e que a viver sem dignidade é melhor morrer? Algo mudou. Para melhor ou para pior?

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*José Renato Nalini é diretor-geral da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e secretário-geral da Academia Paulista de Letras

Soldados posam em frente ao quartel de alistamento em São Paulo, 1932. Foto: Acervo Estadão

9 de julho de 1932. Aos poucos, arrefece o sentimento de brio e orgulho da gente paulista que foi às armas para exigir respeito. Quem hoje se disporia a morrer motivado pela observância de um pacto democrático de convivência? Pois foi isso o que aconteceu então e cumpriria às novas gerações manterem acesa a flama patriótica. Desde que os antigos a incutissem na consciência das crianças, em lugar de fazê-las decorar e repetir informações, sem noção do que aprendem.

A São Paulo recolhida no trabalho e na conquista do território nunca teve pretensão de concorrer com a Corte, onde o ócio sustentado pelos trabalhadores sempre adulou o poder. Aqui a majestade fora recusada por Amador Bueno, "o homem que não quis ser rei".

Em 1924, sua população teve de fugir porque as ambições fizeram-na palco de carnificina. Entre 5 e 27 de julho daquele ano, o governo local tornou-se acéfalo e episódios deploráveis martirizaram inocentes. Páginas praticamente sepultadas da memória coletiva. A Revolução de 1924 praticamente foi varrida do registro histórico.

Já em 1932, ocorreu um fenômeno instigante. Uma apaixonada adesão de todas as gentes, independentemente de fortuna ou escolaridade, a uma causa capaz de despertar um sentimento hoje desaparecido: o chamado "patriotismo".

Dir-se-á que 1932 interessava mais à elite apeada do poder em 1930, do que ao povo, objeto das deliberações dos verdadeiros gestores dos interesses coletivos. É em nome do povo que os condutores tecem suas tramas sempre egoísticas. Povo é pretexto para empolgar o poder. Só que os fatos adquirem dimensões inesperadas. A política é irracional. "Tudo se passa como se, além dos fenômenos aparentes ou mensuráveis, a vida política fosse também sustentada por uma história mais difusa e qualitativamente assinalável, a dos sentimentos coletivos e das paixões, acompanhando ou interferindo com as práticas políticas".

A paixão do paulista sempre foi a liberdade. Nunca se afeiçoou aos maus costumes do governo central, sustentado pelos elevados tributos subtraídos aos espoliados contribuintes e pelo suor dos escravos.

Enquanto não se provocava São Paulo, tão distante da capital, já acostumada à hipocrisia dos áulicos, daqui não partia uma vocação hegemônica. Os paulistas queriam viver sua vida, aparentemente protegidos pela muralha verde da Serra do Mar. Todavia, a distância dos luxos e frivolidades que acompanham os governos, favoreceu o desenvolvimento de um intelecto mais apurado. Por que foi em nosso chão que medrou a Semana de Arte Moderna de 1922?

A pauliceia preferia sonhar, poetar, sem deixar de cultivar. Não era gente violenta. Apavorava-a pensar em revolução. Pois se criara um tabu em torno à Revolução Russa de 1917. Desde essa época, era abominável a ideia de comunismo. Em 30 de novembro de 1930, Mário de Andrade escrevia: "Está se dando aqui no Brasil um movimento em torno da palavra "Comunismo" que é dum ridículo perfeitamente idiota. É vergonhoso, mas incontestável que, para uma grande maioria de indivíduos até bem alfabetizados, "Comunismo" chega a ser isso da gente se aproximar dum indivíduo e ir falando: "Me dê sua gravata que pretendo ficar com ela". Um pensamento que ficou entranhado na obscura mente fundamentalista até nossos dias.

Desde que não fosse incomodado, o paulista continuaria a gerir sua vida laboral, despojado da intenção de tomar conta do Brasil. Só que o ditador Vargas passou a tratar São Paulo com desrespeito. Uma sucessão de nomeações e exonerações de interventores completamente alheios à realidade bandeirante. Diante da continuidade do desrespeito, os paulistas se uniram em frente única. Adversários ferrenhos, o Partido Republicano Paulista e o Partido Democrático se aliaram. E conseguiram a façanha de empolgar toda a população.

Não há similar na História de São Paulo, dessa demonstração da capacidade de esquecer as diferenças, de abraçar uma causa e de se dispor a oferecer a própria vida em prol daquilo que representava a preservação da paz com dignidade: a Constituição.

Hoje, o que significa para a maioria, uma Constituição? Quem se disporia a morrer por ela? Quem se convence de que há lutas que valem a pena e que a viver sem dignidade é melhor morrer? Algo mudou. Para melhor ou para pior?

*José Renato Nalini é diretor-geral da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e secretário-geral da Academia Paulista de Letras

Soldados posam em frente ao quartel de alistamento em São Paulo, 1932. Foto: Acervo Estadão

9 de julho de 1932. Aos poucos, arrefece o sentimento de brio e orgulho da gente paulista que foi às armas para exigir respeito. Quem hoje se disporia a morrer motivado pela observância de um pacto democrático de convivência? Pois foi isso o que aconteceu então e cumpriria às novas gerações manterem acesa a flama patriótica. Desde que os antigos a incutissem na consciência das crianças, em lugar de fazê-las decorar e repetir informações, sem noção do que aprendem.

A São Paulo recolhida no trabalho e na conquista do território nunca teve pretensão de concorrer com a Corte, onde o ócio sustentado pelos trabalhadores sempre adulou o poder. Aqui a majestade fora recusada por Amador Bueno, "o homem que não quis ser rei".

Em 1924, sua população teve de fugir porque as ambições fizeram-na palco de carnificina. Entre 5 e 27 de julho daquele ano, o governo local tornou-se acéfalo e episódios deploráveis martirizaram inocentes. Páginas praticamente sepultadas da memória coletiva. A Revolução de 1924 praticamente foi varrida do registro histórico.

Já em 1932, ocorreu um fenômeno instigante. Uma apaixonada adesão de todas as gentes, independentemente de fortuna ou escolaridade, a uma causa capaz de despertar um sentimento hoje desaparecido: o chamado "patriotismo".

Dir-se-á que 1932 interessava mais à elite apeada do poder em 1930, do que ao povo, objeto das deliberações dos verdadeiros gestores dos interesses coletivos. É em nome do povo que os condutores tecem suas tramas sempre egoísticas. Povo é pretexto para empolgar o poder. Só que os fatos adquirem dimensões inesperadas. A política é irracional. "Tudo se passa como se, além dos fenômenos aparentes ou mensuráveis, a vida política fosse também sustentada por uma história mais difusa e qualitativamente assinalável, a dos sentimentos coletivos e das paixões, acompanhando ou interferindo com as práticas políticas".

A paixão do paulista sempre foi a liberdade. Nunca se afeiçoou aos maus costumes do governo central, sustentado pelos elevados tributos subtraídos aos espoliados contribuintes e pelo suor dos escravos.

Enquanto não se provocava São Paulo, tão distante da capital, já acostumada à hipocrisia dos áulicos, daqui não partia uma vocação hegemônica. Os paulistas queriam viver sua vida, aparentemente protegidos pela muralha verde da Serra do Mar. Todavia, a distância dos luxos e frivolidades que acompanham os governos, favoreceu o desenvolvimento de um intelecto mais apurado. Por que foi em nosso chão que medrou a Semana de Arte Moderna de 1922?

A pauliceia preferia sonhar, poetar, sem deixar de cultivar. Não era gente violenta. Apavorava-a pensar em revolução. Pois se criara um tabu em torno à Revolução Russa de 1917. Desde essa época, era abominável a ideia de comunismo. Em 30 de novembro de 1930, Mário de Andrade escrevia: "Está se dando aqui no Brasil um movimento em torno da palavra "Comunismo" que é dum ridículo perfeitamente idiota. É vergonhoso, mas incontestável que, para uma grande maioria de indivíduos até bem alfabetizados, "Comunismo" chega a ser isso da gente se aproximar dum indivíduo e ir falando: "Me dê sua gravata que pretendo ficar com ela". Um pensamento que ficou entranhado na obscura mente fundamentalista até nossos dias.

Desde que não fosse incomodado, o paulista continuaria a gerir sua vida laboral, despojado da intenção de tomar conta do Brasil. Só que o ditador Vargas passou a tratar São Paulo com desrespeito. Uma sucessão de nomeações e exonerações de interventores completamente alheios à realidade bandeirante. Diante da continuidade do desrespeito, os paulistas se uniram em frente única. Adversários ferrenhos, o Partido Republicano Paulista e o Partido Democrático se aliaram. E conseguiram a façanha de empolgar toda a população.

Não há similar na História de São Paulo, dessa demonstração da capacidade de esquecer as diferenças, de abraçar uma causa e de se dispor a oferecer a própria vida em prol daquilo que representava a preservação da paz com dignidade: a Constituição.

Hoje, o que significa para a maioria, uma Constituição? Quem se disporia a morrer por ela? Quem se convence de que há lutas que valem a pena e que a viver sem dignidade é melhor morrer? Algo mudou. Para melhor ou para pior?

*José Renato Nalini é diretor-geral da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e secretário-geral da Academia Paulista de Letras

Opinião por José Renato Nalini

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