No texto anterior, da presente sequência temática sobre “impeachment”, que publiquei recentemente neste espaço, havia parado as reflexões no ponto de sugerir que, no sistema brasileiro, as decisões que marcam o processo de impeachment são eminentemente políticas. Retomo o ponto a partir daí.
Leia também
Por decisão política, quer-se dizer uma decisão baseada em um critério que prescinda de motivação, de modo a não ser possível o controle da validade jurídica dos motivos em sua correlação com a finalidade.
Dito de outro modo, a decisão, proferida por autoridade investida de um poder político para fazê-lo, valida-se pela própria investidura de quem a profere; e não pelo cotejamento de seus motivos e sua finalidade com algum parâmetro jurídico-normativo superior (ou seja, não pelo controle jurídico).
Leia também
Insiste-se aqui quanto ao aspecto dos motivos e da finalidade da decisão. Isso porque, diferentemente, quanto ao objeto e a forma da decisão, mesmo sendo ela política, são passíveis de controle jurídico, isto é, um controle que se dá por referência a um padrão normativo superior. Por exemplo: ao afirmar-se que a decisão do impeachment é política, não se admite que essa decisão possa ter desrespeitado formas processuais (ex.: julgamento por maioria simples, quando a Constituição exige maioria qualificada) ou tenha objeto estranho aos parâmetros constitucionais (ex.: condenar o presidente da República à prisão).
De um lado, é certo que a Constituição Brasileira estabelece um mínimo de regramento jurídico em matéria de impeachment: normas de processo, definição de tipos infracionais e das penas consequentes.
De outro lado, estabelece tipos com uma formulação bastante aberta e deixa ampla margem de apreciação política aos deputados e senadores quanto à verificação da efetiva prática de atos típicos.
Ao falar-se em “tipos”, quanto mais quando se está tratando de “crimes” de responsabilidade, é importante a breve ressalva – ainda que sobre dado notório – de que “crimes de responsabilidade” não têm natureza penal. A palavra “crime” é usada em um sentido menos preciso, remetendo a “ilícito”. E a própria Constituição o confirma ao dar tratamento distinto para a apuração de crimes propriamente ditos, praticados pelo presidente da República.
Os tipos previstos na Constituição (art. 85), com efeito, possuem fórmulas muito genéricas:
Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: I – a existência da União; II – o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; III – o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; IV – a segurança interna do País; V – a probidade na administração; VI – a lei orçamentária; VII – o cumprimento das leis e das decisões judiciais.
E a simples enunciação do tipo geral, no caput – atentar contra a Constituição – já é claramente indicativo da margem política deixada à apreciação dos julgadores.
Ademais, a mesma Constituição, no parágrafo único do artigo 85, determina que a lei ordinária definirá esses “crimes”, estabelecendo também normas de processo e julgamento.
Tal lei vem a ser a Lei n. 1.079/50, que desdobra os sete tipos genéricos da Constituição, em alguns casos, dando formulações mais delimitadas – p. ex.: os casos que envolvem matéria fiscal ou orçamentária, tratados nos artigos 9° e 10 (da Lei) –, mas, em outros, mantendo fórmulas mais abertas, o que inevitavelmente propicia mais margem ao julgador para verificar a ocorrência, ou não, de suficientes elementos de materialidade do fato típico no caso concreto – p. ex.: “não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição”; “expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às disposições expressas da Constituição”; “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”.
Tome-se esse último exemplo: julgar o presidente por “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo” é algo, de fato, razoavelmente próximo (em substância) do que se passa, nos regimes parlamentaristas, com a perda de confiança do governo.
Porém, não se confunde com esse outro instituto.
Com efeito, no caso do impeachment, tal como previsto na Constituição Brasileira e na Lei n. 1.079/50 – diferentemente do caso da moção de confiança/desconfiança dos parlamentarismos – existe a necessidade de um processo judiciariforme, que se inicia por uma denúncia que deve minimamente lastrear-se em aspectos de materialidade do delito.
Isso implica um ônus argumentativo por parte dos denunciantes, passível de censura político-democrática pela população.
Dito de outro modo: a denúncia não pode simplesmente significar o desejo da troca do presidente da República antes de vencido seu mandato. Deve a denúncia apontar fatos que correspondam à tipificação prevista pela Lei n. 1.079/50, a partir da base constitucional.
No entanto, ao lado da maior margem política – diga-se: discricionariedade – do julgador ao aceitar e processar a denúncia, o ponto mais relevante a caracterizar a natureza política do impeachment está na deliberação: o ato de vontade em que consiste norma jurídica individual e concreta que condena ou absolve o presidente da República tem a sua validade aferível por certos critérios de legalidade – forma procedimental e objeto, como se disse mais acima –, dentre os quais não figura a verificação dos motivos da decisão.
O assunto terá continuidade em mais um artigo.
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica