Notícias e artigos do mundo do Direito: a rotina da Polícia, Ministério Público e Tribunais

Opinião|Impedimento e suspeição de magistrados no século 21


Algumas democracias ocidentais restringem interações entre magistrados e advogados em níveis bastante elevados – em algumas jurisdições, magistrados sequer podem ser ‘amigos’ de advogados nas redes sociais sob pena de gerar impedimento ou suspeição

Por Leopoldo Ubiratan Carreiro Pagotto

Decisões polêmicas recentes, proferidas por magistrados que não se declararam impedidos ou se consideraram suspeitos em casos envolvendo corrupção, jogaram luz sobre um tema essencialmente técnico da legislação processual.

Em comum, estas decisões geraram insatisfação em parcela significativa da população, contribuindo para o aumento do déficit de legitimidade em torno das instituições judiciárias. Quando se discute vivamente quais os limites para defesa da democracia pelo Judiciário, a forma como a sociedade enxerga estas decisões pode até mesmo contribuir para a sua deslegitimação.

Este problema era bem menor até o advento da Constituição de 1988. Em geral, os nomes indicados possuíam notório saber jurídico e o Judiciário atuava como juiz imparcial da causa.

continua após a publicidade

Mesmo que aos trancos e barrancos, os Presidentes da República indicavam juristas relativamente insulados do debate político e da prática da advocacia, o que gerava uma legitimidade das decisões baseada no tecnicismo jurídico – houve exceções, sendo a mais notável ao do mandato de Floriano Peixoto que indicou o médico Barata Ribeiro para o Supremo Tribunal Federal (STF). Ainda assim, o Judiciário obtinha e mantinha sua legitimidade para atuações pontuais exatamente desta configuração, já que não recebia votos.

Além disso, o desenho institucional deixava para a maioria do Congresso a palavra final sobre decisões eminentemente políticas, ou seja, aquelas decisões que envolviam um mérito consistente em juízo de conveniência (esta medida é boa?) e de oportunidade (este é o momento adequado para esta medida?). Observava-se um modelo tradicional da separação entre os poderes.

A dinâmica da Constituição de 1988 rompeu com este modelo mais “estanque” de separação entre os poderes com magistrados de tribunais superiores julgando políticos e declarando leis inconstitucionais num ritmo sem precedentes.

continua após a publicidade

Por algum tempo no pós-1988, os indicados para os tribunais superiores ainda se mantiveram afastados de questões políticas, exercendo uma cautela e discrição típicas de magistrados. Gradativamente, o cenário se alterou e os Presidentes da República perceberam que o Judiciário também participava da política por meio de suas decisões que até podem alegar uma certa tecnicidade jurídica, mas que invadem em muito o juízo de conveniência e oportunidade da política. A partir dos anos 1990, independentemente de seu viés político, a Presidência da República passou a indicar aliados políticos para os cargos mais altos do Judiciário.

Neste desenho institucional, decisões técnicas precisam vir acompanhadas de um adicional de legitimidade além do mero procedimento previsto na legislação. Grandes poderes não podem prescindir de grandes responsabilidades.

Voltando-se à legislação infraconstitucional e os precedentes judiciais, fornecedores das balizas sobre o assunto, o racional das decisões afastando impedimento e suspeição é simples, mesmo considerando-se as sutilezas do processo civil e do processo penal.

continua após a publicidade

O impedimento é mais grave, liga-se diretamente à imparcialidade e decorre das relações diretas entre o magistrado e a parte, ocorrendo independentemente de declaração – é o caso de relações de parentesco próximas. Já a suspeição é mais complexa: exige a prova de que o magistrado tenha seu juízo alterado diante de certas relações que podem ou não alterar a sua parcialidade (amizade íntima, recebimento de presentes, dentre outros). A suspeição pode ser superada se a parte não a arguir.

Os problemas começam com as interpretações. Atualmente, prevalece o entendimento de que magistrado não é parte, tampouco é parte o advogado. Logo, impedimento e suspeição não se aplicariam a este relacionamento se houver amizade íntima entre o magistrado e o advogado. Parte-se praticamente da premissa de que o magistrado é um autômato, aplicador cego da lei no modelo mais positivista possível.

Ora, este posicionamento “consolidado” não é tão auto evidente para a sociedade que, com ou sem razão, questiona as decisões. Historicamente, tal entendimento sequer foi unânime. Já em 1925, Herotides da Silva Lima, mais tarde desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, na sua obra “O Ministério da Advocacia”, argumenta que pode haver sobreposição ou conflito de interesses que envolvam magistrados e advogados. Nos Estados Unidos, há farta literatura sobre questões relacionadas ao fenômeno do “revolving doors”, em que advogados ocupam cargos públicos e, em seguida, deixam as funções públicas para atuar na vida privada.

continua após a publicidade

Este ponto tem sido objeto de atenção da sociedade brasileira desde, pelo menos, os anos 1990, quando surgiram vozes criticando uma suposta “concorrência desleal” por parte daqueles que possuíam um relacionamento mais próximo aos tribunais. De fato, algumas democracias ocidentais restringem interações entre magistrados e advogados em níveis bastante elevados – em algumas jurisdições, magistrados sequer podem ser “amigos” de advogados nas redes sociais sob pena de gerar impedimento ou suspeição.

A propósito, nas arbitragens privadas, existe uma regulamentação extensa sobre o dever de revelação dos árbitros sob pena de nulidade. Para compensar a ausência de jurisdição do Poder Judiciário, o tribunal arbitral adota padrões bastante elevados para a escolha dos árbitros.

As críticas culminaram em uma nova regra no Código de Processo Civil que, em 2015, previu uma hipótese adicional de impedimento do magistrado:

continua após a publicidade

“Art. 144. Há impedimento do juiz, sendo-lhe vedado exercer suas funções no processo:

VIII - em que figure como parte cliente do escritório de advocacia de seu cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, mesmo que patrocinado por advogado de outro escritório;”

Como o Brasil possui um complexo sistema jurídico, por maioria do Plenário do STF, esta regra foi julgada inconstitucional por ofender a razoabilidade e a proporcionalidade.

continua após a publicidade

Em 62 a.C., a segunda esposa de Júlio César, Pompeia, promoveu o festival em honra da “deusa do bem”, no qual não se permitia qualquer presença masculina. Um jovem patrício chamado Publius Clodius Pulcher teria se infiltrado vestido de mulher e, como rumores corriam soltos, seduzido Pompeia. Na obra “A Vida de Júlio César”, Suetônio relata que Júlio César foi intimado a depor no julgamento por profanação da cerimônia religiosa da “deusa do bem” e disse que não sabia se o episódio de sedução era verdadeiro ou falso apesar de sua mãe Aurélia e irmã Júlia lhe terem dado relato completo do ocorrido. Publius Clodius Pulcher foi absolvido, mas Júlio César se separou de Pompeia em seguida. “Minha família não deveria ser livre apenas da culpa, mas também da suspeita”, justificou Júlio César.

Para salvar a democracia, talvez seja hora de se lembrar a máxima romana, aplicada diariamente pelas empresas privadas, que possuem programas de compliance efetivos: evite levantar suspeitas, ainda que não haja nada de errado.

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica

Decisões polêmicas recentes, proferidas por magistrados que não se declararam impedidos ou se consideraram suspeitos em casos envolvendo corrupção, jogaram luz sobre um tema essencialmente técnico da legislação processual.

Em comum, estas decisões geraram insatisfação em parcela significativa da população, contribuindo para o aumento do déficit de legitimidade em torno das instituições judiciárias. Quando se discute vivamente quais os limites para defesa da democracia pelo Judiciário, a forma como a sociedade enxerga estas decisões pode até mesmo contribuir para a sua deslegitimação.

Este problema era bem menor até o advento da Constituição de 1988. Em geral, os nomes indicados possuíam notório saber jurídico e o Judiciário atuava como juiz imparcial da causa.

Mesmo que aos trancos e barrancos, os Presidentes da República indicavam juristas relativamente insulados do debate político e da prática da advocacia, o que gerava uma legitimidade das decisões baseada no tecnicismo jurídico – houve exceções, sendo a mais notável ao do mandato de Floriano Peixoto que indicou o médico Barata Ribeiro para o Supremo Tribunal Federal (STF). Ainda assim, o Judiciário obtinha e mantinha sua legitimidade para atuações pontuais exatamente desta configuração, já que não recebia votos.

Além disso, o desenho institucional deixava para a maioria do Congresso a palavra final sobre decisões eminentemente políticas, ou seja, aquelas decisões que envolviam um mérito consistente em juízo de conveniência (esta medida é boa?) e de oportunidade (este é o momento adequado para esta medida?). Observava-se um modelo tradicional da separação entre os poderes.

A dinâmica da Constituição de 1988 rompeu com este modelo mais “estanque” de separação entre os poderes com magistrados de tribunais superiores julgando políticos e declarando leis inconstitucionais num ritmo sem precedentes.

Por algum tempo no pós-1988, os indicados para os tribunais superiores ainda se mantiveram afastados de questões políticas, exercendo uma cautela e discrição típicas de magistrados. Gradativamente, o cenário se alterou e os Presidentes da República perceberam que o Judiciário também participava da política por meio de suas decisões que até podem alegar uma certa tecnicidade jurídica, mas que invadem em muito o juízo de conveniência e oportunidade da política. A partir dos anos 1990, independentemente de seu viés político, a Presidência da República passou a indicar aliados políticos para os cargos mais altos do Judiciário.

Neste desenho institucional, decisões técnicas precisam vir acompanhadas de um adicional de legitimidade além do mero procedimento previsto na legislação. Grandes poderes não podem prescindir de grandes responsabilidades.

Voltando-se à legislação infraconstitucional e os precedentes judiciais, fornecedores das balizas sobre o assunto, o racional das decisões afastando impedimento e suspeição é simples, mesmo considerando-se as sutilezas do processo civil e do processo penal.

O impedimento é mais grave, liga-se diretamente à imparcialidade e decorre das relações diretas entre o magistrado e a parte, ocorrendo independentemente de declaração – é o caso de relações de parentesco próximas. Já a suspeição é mais complexa: exige a prova de que o magistrado tenha seu juízo alterado diante de certas relações que podem ou não alterar a sua parcialidade (amizade íntima, recebimento de presentes, dentre outros). A suspeição pode ser superada se a parte não a arguir.

Os problemas começam com as interpretações. Atualmente, prevalece o entendimento de que magistrado não é parte, tampouco é parte o advogado. Logo, impedimento e suspeição não se aplicariam a este relacionamento se houver amizade íntima entre o magistrado e o advogado. Parte-se praticamente da premissa de que o magistrado é um autômato, aplicador cego da lei no modelo mais positivista possível.

Ora, este posicionamento “consolidado” não é tão auto evidente para a sociedade que, com ou sem razão, questiona as decisões. Historicamente, tal entendimento sequer foi unânime. Já em 1925, Herotides da Silva Lima, mais tarde desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, na sua obra “O Ministério da Advocacia”, argumenta que pode haver sobreposição ou conflito de interesses que envolvam magistrados e advogados. Nos Estados Unidos, há farta literatura sobre questões relacionadas ao fenômeno do “revolving doors”, em que advogados ocupam cargos públicos e, em seguida, deixam as funções públicas para atuar na vida privada.

Este ponto tem sido objeto de atenção da sociedade brasileira desde, pelo menos, os anos 1990, quando surgiram vozes criticando uma suposta “concorrência desleal” por parte daqueles que possuíam um relacionamento mais próximo aos tribunais. De fato, algumas democracias ocidentais restringem interações entre magistrados e advogados em níveis bastante elevados – em algumas jurisdições, magistrados sequer podem ser “amigos” de advogados nas redes sociais sob pena de gerar impedimento ou suspeição.

A propósito, nas arbitragens privadas, existe uma regulamentação extensa sobre o dever de revelação dos árbitros sob pena de nulidade. Para compensar a ausência de jurisdição do Poder Judiciário, o tribunal arbitral adota padrões bastante elevados para a escolha dos árbitros.

As críticas culminaram em uma nova regra no Código de Processo Civil que, em 2015, previu uma hipótese adicional de impedimento do magistrado:

“Art. 144. Há impedimento do juiz, sendo-lhe vedado exercer suas funções no processo:

VIII - em que figure como parte cliente do escritório de advocacia de seu cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, mesmo que patrocinado por advogado de outro escritório;”

Como o Brasil possui um complexo sistema jurídico, por maioria do Plenário do STF, esta regra foi julgada inconstitucional por ofender a razoabilidade e a proporcionalidade.

Em 62 a.C., a segunda esposa de Júlio César, Pompeia, promoveu o festival em honra da “deusa do bem”, no qual não se permitia qualquer presença masculina. Um jovem patrício chamado Publius Clodius Pulcher teria se infiltrado vestido de mulher e, como rumores corriam soltos, seduzido Pompeia. Na obra “A Vida de Júlio César”, Suetônio relata que Júlio César foi intimado a depor no julgamento por profanação da cerimônia religiosa da “deusa do bem” e disse que não sabia se o episódio de sedução era verdadeiro ou falso apesar de sua mãe Aurélia e irmã Júlia lhe terem dado relato completo do ocorrido. Publius Clodius Pulcher foi absolvido, mas Júlio César se separou de Pompeia em seguida. “Minha família não deveria ser livre apenas da culpa, mas também da suspeita”, justificou Júlio César.

Para salvar a democracia, talvez seja hora de se lembrar a máxima romana, aplicada diariamente pelas empresas privadas, que possuem programas de compliance efetivos: evite levantar suspeitas, ainda que não haja nada de errado.

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica

Decisões polêmicas recentes, proferidas por magistrados que não se declararam impedidos ou se consideraram suspeitos em casos envolvendo corrupção, jogaram luz sobre um tema essencialmente técnico da legislação processual.

Em comum, estas decisões geraram insatisfação em parcela significativa da população, contribuindo para o aumento do déficit de legitimidade em torno das instituições judiciárias. Quando se discute vivamente quais os limites para defesa da democracia pelo Judiciário, a forma como a sociedade enxerga estas decisões pode até mesmo contribuir para a sua deslegitimação.

Este problema era bem menor até o advento da Constituição de 1988. Em geral, os nomes indicados possuíam notório saber jurídico e o Judiciário atuava como juiz imparcial da causa.

Mesmo que aos trancos e barrancos, os Presidentes da República indicavam juristas relativamente insulados do debate político e da prática da advocacia, o que gerava uma legitimidade das decisões baseada no tecnicismo jurídico – houve exceções, sendo a mais notável ao do mandato de Floriano Peixoto que indicou o médico Barata Ribeiro para o Supremo Tribunal Federal (STF). Ainda assim, o Judiciário obtinha e mantinha sua legitimidade para atuações pontuais exatamente desta configuração, já que não recebia votos.

Além disso, o desenho institucional deixava para a maioria do Congresso a palavra final sobre decisões eminentemente políticas, ou seja, aquelas decisões que envolviam um mérito consistente em juízo de conveniência (esta medida é boa?) e de oportunidade (este é o momento adequado para esta medida?). Observava-se um modelo tradicional da separação entre os poderes.

A dinâmica da Constituição de 1988 rompeu com este modelo mais “estanque” de separação entre os poderes com magistrados de tribunais superiores julgando políticos e declarando leis inconstitucionais num ritmo sem precedentes.

Por algum tempo no pós-1988, os indicados para os tribunais superiores ainda se mantiveram afastados de questões políticas, exercendo uma cautela e discrição típicas de magistrados. Gradativamente, o cenário se alterou e os Presidentes da República perceberam que o Judiciário também participava da política por meio de suas decisões que até podem alegar uma certa tecnicidade jurídica, mas que invadem em muito o juízo de conveniência e oportunidade da política. A partir dos anos 1990, independentemente de seu viés político, a Presidência da República passou a indicar aliados políticos para os cargos mais altos do Judiciário.

Neste desenho institucional, decisões técnicas precisam vir acompanhadas de um adicional de legitimidade além do mero procedimento previsto na legislação. Grandes poderes não podem prescindir de grandes responsabilidades.

Voltando-se à legislação infraconstitucional e os precedentes judiciais, fornecedores das balizas sobre o assunto, o racional das decisões afastando impedimento e suspeição é simples, mesmo considerando-se as sutilezas do processo civil e do processo penal.

O impedimento é mais grave, liga-se diretamente à imparcialidade e decorre das relações diretas entre o magistrado e a parte, ocorrendo independentemente de declaração – é o caso de relações de parentesco próximas. Já a suspeição é mais complexa: exige a prova de que o magistrado tenha seu juízo alterado diante de certas relações que podem ou não alterar a sua parcialidade (amizade íntima, recebimento de presentes, dentre outros). A suspeição pode ser superada se a parte não a arguir.

Os problemas começam com as interpretações. Atualmente, prevalece o entendimento de que magistrado não é parte, tampouco é parte o advogado. Logo, impedimento e suspeição não se aplicariam a este relacionamento se houver amizade íntima entre o magistrado e o advogado. Parte-se praticamente da premissa de que o magistrado é um autômato, aplicador cego da lei no modelo mais positivista possível.

Ora, este posicionamento “consolidado” não é tão auto evidente para a sociedade que, com ou sem razão, questiona as decisões. Historicamente, tal entendimento sequer foi unânime. Já em 1925, Herotides da Silva Lima, mais tarde desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, na sua obra “O Ministério da Advocacia”, argumenta que pode haver sobreposição ou conflito de interesses que envolvam magistrados e advogados. Nos Estados Unidos, há farta literatura sobre questões relacionadas ao fenômeno do “revolving doors”, em que advogados ocupam cargos públicos e, em seguida, deixam as funções públicas para atuar na vida privada.

Este ponto tem sido objeto de atenção da sociedade brasileira desde, pelo menos, os anos 1990, quando surgiram vozes criticando uma suposta “concorrência desleal” por parte daqueles que possuíam um relacionamento mais próximo aos tribunais. De fato, algumas democracias ocidentais restringem interações entre magistrados e advogados em níveis bastante elevados – em algumas jurisdições, magistrados sequer podem ser “amigos” de advogados nas redes sociais sob pena de gerar impedimento ou suspeição.

A propósito, nas arbitragens privadas, existe uma regulamentação extensa sobre o dever de revelação dos árbitros sob pena de nulidade. Para compensar a ausência de jurisdição do Poder Judiciário, o tribunal arbitral adota padrões bastante elevados para a escolha dos árbitros.

As críticas culminaram em uma nova regra no Código de Processo Civil que, em 2015, previu uma hipótese adicional de impedimento do magistrado:

“Art. 144. Há impedimento do juiz, sendo-lhe vedado exercer suas funções no processo:

VIII - em que figure como parte cliente do escritório de advocacia de seu cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, mesmo que patrocinado por advogado de outro escritório;”

Como o Brasil possui um complexo sistema jurídico, por maioria do Plenário do STF, esta regra foi julgada inconstitucional por ofender a razoabilidade e a proporcionalidade.

Em 62 a.C., a segunda esposa de Júlio César, Pompeia, promoveu o festival em honra da “deusa do bem”, no qual não se permitia qualquer presença masculina. Um jovem patrício chamado Publius Clodius Pulcher teria se infiltrado vestido de mulher e, como rumores corriam soltos, seduzido Pompeia. Na obra “A Vida de Júlio César”, Suetônio relata que Júlio César foi intimado a depor no julgamento por profanação da cerimônia religiosa da “deusa do bem” e disse que não sabia se o episódio de sedução era verdadeiro ou falso apesar de sua mãe Aurélia e irmã Júlia lhe terem dado relato completo do ocorrido. Publius Clodius Pulcher foi absolvido, mas Júlio César se separou de Pompeia em seguida. “Minha família não deveria ser livre apenas da culpa, mas também da suspeita”, justificou Júlio César.

Para salvar a democracia, talvez seja hora de se lembrar a máxima romana, aplicada diariamente pelas empresas privadas, que possuem programas de compliance efetivos: evite levantar suspeitas, ainda que não haja nada de errado.

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica

Decisões polêmicas recentes, proferidas por magistrados que não se declararam impedidos ou se consideraram suspeitos em casos envolvendo corrupção, jogaram luz sobre um tema essencialmente técnico da legislação processual.

Em comum, estas decisões geraram insatisfação em parcela significativa da população, contribuindo para o aumento do déficit de legitimidade em torno das instituições judiciárias. Quando se discute vivamente quais os limites para defesa da democracia pelo Judiciário, a forma como a sociedade enxerga estas decisões pode até mesmo contribuir para a sua deslegitimação.

Este problema era bem menor até o advento da Constituição de 1988. Em geral, os nomes indicados possuíam notório saber jurídico e o Judiciário atuava como juiz imparcial da causa.

Mesmo que aos trancos e barrancos, os Presidentes da República indicavam juristas relativamente insulados do debate político e da prática da advocacia, o que gerava uma legitimidade das decisões baseada no tecnicismo jurídico – houve exceções, sendo a mais notável ao do mandato de Floriano Peixoto que indicou o médico Barata Ribeiro para o Supremo Tribunal Federal (STF). Ainda assim, o Judiciário obtinha e mantinha sua legitimidade para atuações pontuais exatamente desta configuração, já que não recebia votos.

Além disso, o desenho institucional deixava para a maioria do Congresso a palavra final sobre decisões eminentemente políticas, ou seja, aquelas decisões que envolviam um mérito consistente em juízo de conveniência (esta medida é boa?) e de oportunidade (este é o momento adequado para esta medida?). Observava-se um modelo tradicional da separação entre os poderes.

A dinâmica da Constituição de 1988 rompeu com este modelo mais “estanque” de separação entre os poderes com magistrados de tribunais superiores julgando políticos e declarando leis inconstitucionais num ritmo sem precedentes.

Por algum tempo no pós-1988, os indicados para os tribunais superiores ainda se mantiveram afastados de questões políticas, exercendo uma cautela e discrição típicas de magistrados. Gradativamente, o cenário se alterou e os Presidentes da República perceberam que o Judiciário também participava da política por meio de suas decisões que até podem alegar uma certa tecnicidade jurídica, mas que invadem em muito o juízo de conveniência e oportunidade da política. A partir dos anos 1990, independentemente de seu viés político, a Presidência da República passou a indicar aliados políticos para os cargos mais altos do Judiciário.

Neste desenho institucional, decisões técnicas precisam vir acompanhadas de um adicional de legitimidade além do mero procedimento previsto na legislação. Grandes poderes não podem prescindir de grandes responsabilidades.

Voltando-se à legislação infraconstitucional e os precedentes judiciais, fornecedores das balizas sobre o assunto, o racional das decisões afastando impedimento e suspeição é simples, mesmo considerando-se as sutilezas do processo civil e do processo penal.

O impedimento é mais grave, liga-se diretamente à imparcialidade e decorre das relações diretas entre o magistrado e a parte, ocorrendo independentemente de declaração – é o caso de relações de parentesco próximas. Já a suspeição é mais complexa: exige a prova de que o magistrado tenha seu juízo alterado diante de certas relações que podem ou não alterar a sua parcialidade (amizade íntima, recebimento de presentes, dentre outros). A suspeição pode ser superada se a parte não a arguir.

Os problemas começam com as interpretações. Atualmente, prevalece o entendimento de que magistrado não é parte, tampouco é parte o advogado. Logo, impedimento e suspeição não se aplicariam a este relacionamento se houver amizade íntima entre o magistrado e o advogado. Parte-se praticamente da premissa de que o magistrado é um autômato, aplicador cego da lei no modelo mais positivista possível.

Ora, este posicionamento “consolidado” não é tão auto evidente para a sociedade que, com ou sem razão, questiona as decisões. Historicamente, tal entendimento sequer foi unânime. Já em 1925, Herotides da Silva Lima, mais tarde desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, na sua obra “O Ministério da Advocacia”, argumenta que pode haver sobreposição ou conflito de interesses que envolvam magistrados e advogados. Nos Estados Unidos, há farta literatura sobre questões relacionadas ao fenômeno do “revolving doors”, em que advogados ocupam cargos públicos e, em seguida, deixam as funções públicas para atuar na vida privada.

Este ponto tem sido objeto de atenção da sociedade brasileira desde, pelo menos, os anos 1990, quando surgiram vozes criticando uma suposta “concorrência desleal” por parte daqueles que possuíam um relacionamento mais próximo aos tribunais. De fato, algumas democracias ocidentais restringem interações entre magistrados e advogados em níveis bastante elevados – em algumas jurisdições, magistrados sequer podem ser “amigos” de advogados nas redes sociais sob pena de gerar impedimento ou suspeição.

A propósito, nas arbitragens privadas, existe uma regulamentação extensa sobre o dever de revelação dos árbitros sob pena de nulidade. Para compensar a ausência de jurisdição do Poder Judiciário, o tribunal arbitral adota padrões bastante elevados para a escolha dos árbitros.

As críticas culminaram em uma nova regra no Código de Processo Civil que, em 2015, previu uma hipótese adicional de impedimento do magistrado:

“Art. 144. Há impedimento do juiz, sendo-lhe vedado exercer suas funções no processo:

VIII - em que figure como parte cliente do escritório de advocacia de seu cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, mesmo que patrocinado por advogado de outro escritório;”

Como o Brasil possui um complexo sistema jurídico, por maioria do Plenário do STF, esta regra foi julgada inconstitucional por ofender a razoabilidade e a proporcionalidade.

Em 62 a.C., a segunda esposa de Júlio César, Pompeia, promoveu o festival em honra da “deusa do bem”, no qual não se permitia qualquer presença masculina. Um jovem patrício chamado Publius Clodius Pulcher teria se infiltrado vestido de mulher e, como rumores corriam soltos, seduzido Pompeia. Na obra “A Vida de Júlio César”, Suetônio relata que Júlio César foi intimado a depor no julgamento por profanação da cerimônia religiosa da “deusa do bem” e disse que não sabia se o episódio de sedução era verdadeiro ou falso apesar de sua mãe Aurélia e irmã Júlia lhe terem dado relato completo do ocorrido. Publius Clodius Pulcher foi absolvido, mas Júlio César se separou de Pompeia em seguida. “Minha família não deveria ser livre apenas da culpa, mas também da suspeita”, justificou Júlio César.

Para salvar a democracia, talvez seja hora de se lembrar a máxima romana, aplicada diariamente pelas empresas privadas, que possuem programas de compliance efetivos: evite levantar suspeitas, ainda que não haja nada de errado.

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica

Opinião por Leopoldo Ubiratan Carreiro Pagotto

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.