Em âmbito internacional, o setor de defesa constitui um dos mais sensíveis e estratégicos da economia, considerado, obviamente, o seu impacto direto sobre a segurança e integridade nacionais – a estabilidade e previsibilidade da vida social e econômica dependem, dentre vários fatores, de um certo grau de segurança em relação a ameaças e intromissões externas.
No Brasil, isso não é diferente. Seguindo a linha adotada por quase todas as nações, o país possui uma linha clara no sentido de desenvolvimento de autonomia e de autossuficiência em matéria de defesa – de modo a reduzir, tanto quanto possível, o recurso a fontes externas para satisfação de suas necessidades nessa área. Num mundo cada vez mais complexo e envolvido, direta ou indiretamente, em conflitos internacionais, o desenvolvimento de uma indústria de defesa nacional ganha contornos ainda mais urgentes.
Naturalmente, o Estado é o elemento central do setor de defesa – e, como consequência, é ele quem funciona como ente catalisador do mercado que suporta esse setor. É por meio das contratações públicas que o Estado tem acesso aos bens e serviços necessários para implementação da estratégia de defesa. São essas contratações, como resultado disso, que acabam viabilizando e fomentando a base industrial de defesa nacional.
O sistema legal brasileiro oferece vários instrumentos para que o Estado possa atuar no sentido de desenvolver e fomentar a base industrial de defesa nacional. Esses instrumentos funcionam tanto no sentido de privilegiar, de forma direta, empresas brasileiras de defesa, quanto indiretamente, no sentido de promover vantagens tecnológicas, comerciais ou industriais em favor do mercado de defesa brasileiro.
A Lei nº 12.598/2012prevê a possibilidade de licitações exclusivas para aquisição de produtos ou sistemas de defesa produzidos no Brasil (art. 2º, II, “b”), bem como para empresas estratégicas de defesa – que devem, obrigatoriamente, ter, no Brasil, a sua administração e o seu estabelecimento industrial (art. 2º, IV, “b”) - quando o processo de compra envolver a aquisição de produtos estratégicos de defesa (art. 2º, II, “a”).
Nessa linha, a Portaria GM-MD nº 5.175/2021 estabelece que a aquisição, no exterior, de bens e serviços bélicos não poderá ser realizada sem que haja um fornecedor de tais bens e serviços, no Brasil (art. 4º).
Quando, todavia, houver essa disponibilidade, a norma estabelece uma espécie de margem de preferência para produtos e serviços nacionais, determinando que a contratação de similares estrangeiros só será admitida quando o valor daqueles forem superiores a 30% (trinta por cento) do valor de seus equivalentes estrangeiros. No caso de materiais e serviços, em geral, essa contratação é admitida, desde que, mediante parecer técnico, a capacidade de fornecimento ou execução por empresas nacionais seja insuficiente para atendimento da quantidade demandada ou em caso de “notória vantagem técnica ou tecnológica”(art. 4º, §3º).
Em tais casos, como se vê, há uma atribuição direta de vantagem competitiva a empresas nacionais em processos de contratação de produtos de defesa, privilegiando a contratação dessas empresas em detrimento de concorrentes estrangeiros.
A par disso, a Lei nº 12.598/2012 (art. 3º, §6º) e o seu decreto regulamentador (art. 12, do Decreto nº 7.970/2013) preveem a possibilidade de o edital exigir um percentual mínimo de conteúdo nacional embarcado nos produtos ou sistema de defesa objeto da futura contratação. Evidentemente, essa exigência pode constar tanto de contratos firmados com empresas estrangeiras ou nacionais – neste último caso, restringindo a importação de determinados itens e obrigando a contratação de acessórios junto a empresas locais.
Além disso, nos casos de importação de produtos de defesa em valor superior a US$ 50.000.000,00, é obrigatória a celebração, em paralelo, de um acordo de compensação (offset) entre o órgão contratante e a empresa fornecedora (art. 12, Portaria GM-DM nº 3.662/2021) – a contratação desse acordo é facultativa em compras em valor inferior ao montante acima mencionado (art. 13).
Essa compensação pode ser de natureza tecnológica, comercial ou industrial, podendo ter o Estado ou outras empresas que compõem a base industrial de defesa como destinatárias finais do acordo (art. 22). As medidas compensatórias visam, na prática, incrementar o mercado nacional de defesa com novas tecnologias, enriquecimento do capital humano, inserção das empresas nacionais nas cadeias produtivas e integração do processo de fabricação (art. 21).
Tanto no caso dos acordos de compensação, quanto nos casos de exigência de conteúdo nacional, embora a contratação ocorra (ou possa ocorrer) com empresas estrangeiras, o sistema aplicável às compras públicas na área de defesa cria mecanismos de geração de externalidades positivas à base industrial nacional – gerando benefícios indiretos ao ecossistema de produtos e serviços de defesa brasileiro.
As vantagens diretas e indiretas geradas pelo instrumental de contratação pública na área de defesa visa garantir que recursos financeiros e intelectuais sejam direcionados ao complexo industrial de defesa brasileiro. A utilização do poder de compra estatal na área de defesa pode, nesse sentido, propiciar a autonomia e autossuficiência que, estrategicamente, se pretende conferir ao setor – tornando o sistema de defesa nacional menos vulnerável ao complexo concerto internacional.