O uso de Inteligência Artificial (IA) é realidade na sociedade contemporânea e repercute no setor cultural. Com cada vez mais frequência, percebe-se a presença de tecnologias de IA em diversas modalidades artísticas. Os maiores desafios encontram-se na possibilidade de realocação dos atores da economia criativa diante da possibilidade da IA generativa, ou seja, quando a tecnologia passa a criar, de forma independente, conteúdos originais. No entanto, há iniciativas que podem promover a Cultura brasileira, visando atender os direitos culturais.
Diante do cenário inexorável da presença da IA nas relações sociais, busca-se apresentar exemplos de como a Cultura brasileira pode se beneficiar dos usos e serviços dessas ferramentas tecnológicas.
A IA é pensada a partir de modalidades de aplicação. A primeira seria aquela capaz de executar uma única tarefa (classificada em inglês como narrow); a segunda, quando a máquina é capaz de lidar com qualquer tarefa intelectual (general). Por sua vez, pode apresentar-se como uma forma de inteligência efetivamente existente (weak) ou genuinamente inteligente e autoconsciente (strong). A maioria das discussões sociais contemporâneas em relação às tecnologias de IA discorrem acerca de sua capacidade generativa, ou seja, de realizar ações autônomas, a partir de material prévio. Antes percebidas como utópicas, as IAs generativas têm se apresentado cada vez mais possíveis, a exemplo da recente presença do Chat GPT nas relações humanas.
As tecnologias de IA concentram-se, sobretudo, em países desenvolvidos, confirmando as disparidades econômicas e geográficas no mundo capitalista globalizado. No Vale do Silício, por exemplo, existe um ambiente propício para desenvolvimento de tecnologias de IA, mas se sabe que a contribuição técnica humana para alimentar informações e dados relevantes para o funcionamento de uma IA advém de países onde o valor do trabalho é mais barato, como Índia ou China. O Brasil apresenta-se, neste contexto, sobretudo, como um país fornecedor de mão-de-obra e consumidor de IA, sendo importante pensar como as políticas públicas irão atender aos desafios que permeiam o cenário cultural.
No que diz respeito à IA generativa, há muitos debates relacionados aos direitos autorais, os quais são atribuídos a criações do espírito humano. Aquelas realizadas por IA, por sua vez, derivam do uso intensivo de conhecimento, sendo difícil identificar a contribuição específica de apenas um ser humano para o desenvolvimento de uma tecnologia que se tornou autônoma. Em geral, no entanto, há ainda grande dependência de ações humanas para o funcionamento de uma IA. Neste sentido, é importante atentar-se aos aspectos humanos relacionados à sensibilidade, à criatividade e outras atividades não criativas que alimentam processos para possibilitá-la.
Importa, também, atentar-se à socialização dos benefícios econômicos derivados do processo criativo de uma IA. De que forma a lei e a jurisprudência brasileiras irão conceber e interpretar a autoria de uma IA requer atenção às questões políticas e socioeconômicas profundas, de modo a trazer benefícios para toda a cadeia da economia criativa. Recorda-se que a fundamentação última de uma proteção intelectual deve atentar-se a fins de justiça social, permitindo um cenário de criação e inovação que propicie um desenvolvimento econômico e social justo e equitativo.
Longe de entender esse debate como irrelevante, interessa a este artigo, sobretudo, argumentar como a Cultura brasileira pode beneficiar-se de tecnologias de IA. Nesse sentido, retoma-se a importância atribuída pelo texto constitucional aos direitos culturais. A Constituição Federal brasileira os assegura, desde o capítulo que trata dos direitos fundamentais a, até mesmo, reservar uma seção exclusiva para tratar da Cultura.
Nesta seção, dispõe que o Estado deve garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais, o acesso às fontes da cultura nacional, além de apoiar e incentivar a difusão das manifestações culturais (Art. 215). O parágrafo 1º desse mesmo artigo dispõe, como dever do Estado, a proteção das manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.
Em geral, entendem-se essas manifestações culturais como reminiscências do passado, localizadas longe do ambiente tecnológico, em que se imagina a interação da IA. No entanto, é neste mesmo ambiente híbrido, entre expressões culturais tradicionais e a sociedade informacional, que se apresentam iniciativas de utilização de IA, com grande valor para o patrimônio cultural brasileiro.
Um exemplo dessas iniciativas é o projeto da Universidade de São Paulo, em parceria com o Centro de Inteligência Artificial (C4AI), a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e o IBM Research, que busca desenvolver ferramentas de IA para auxiliar na documentação, preservação, vitalização e uso das línguas indígenas no Brasil [1]. O C4AI também trabalha na elaboração de uma ferramenta de Processamento de Linguagem Natural (PLN) de última geração para o português, como já existe em idiomas de uso hegemônico no cenário internacional, como o inglês e o espanhol [2].
As ferramentas de IA apresentam também dificuldades para atender demandas acerca de culturas situadas em contextos marginalizados. Já se fala em racismo promovido por IA, no ambiente digital. As tecnologias não são neutras e, se não forem objeto de atenção pelas políticas públicas, podem incentivar preconceitos estruturais na sociedade.
A esse respeito foi realizado estudo da Ação Educativa e da REDE Negra em Tecnologia e Sociedade, com o apoio da Fundação Mozilla, que demonstrou, além da invisibilidade de pessoas negras no desenvolvimento de tecnologias, a falta de diversidade e a baixa inclusão no ambiente digital [3].
Outra iniciativa interessante, realizada com o objetivo de reavivar as memórias dos povos originários a partir de uma colaboração com pessoas reais, é a do movimento #caradacausa [4]. O lema do movimento é superar o AI (apagamento indígena), informando que, em sites de busca, quando se procuram os rostos indígenas, encontram-se dados estereotipados de indígenas que não correspondem aos povos originários brasileiros.
Os resultados auferidos pelos buscadores, geralmente, apresentam imagens de indígenas norte-americanos, de forma pasteurizada, sem apresentar informações da diversidade cultural brasileira. Neste sentido, o movimento busca alimentar os algoritmos, para oferecer respostas mais fidedignas à cara das mais de 305 etnias indígenas brasileiras, suas culturas e línguas.
Os exemplos mencionados demonstram esforços da sociedade brasileira em garantir os direitos culturais, tais quais previstos no texto constitucional. Cabe ao Estado o suporte logístico para a efetividade dos direitos culturais, conforme preconiza Francisco Humberto Cunha Filho. Se a IA é inexorável, convém utilizá-la de modo realista a favor da Cultura brasileira.
*Maria Helena Japiassu M. de Macedo é consultora jurídica nos temas de Direito da Arte e Propriedade Intelectual e OFCHAN/Itamaraty cedida ao Escritório do Ministério da Cultura no Paraná. É mestranda em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPR), membro do Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial da Universidade Federal do Paraná (Gedai/UFPR) e do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais - (IBDCULT), coordenadora do GT Arte da OAB/PR e escritora de literatura
Notas
[1] Disponível em: https://cidadedourados.com.br/2023/06/02/ia-pode-ajudar-na-preservacao-de-linguas-indigenas-no-brasil/
[2] Disponível em: https://jornal.usp.br/institucional/usp-da-inicio-as-atividades-do-mais-moderno-centro-de-inteligencia-artificial-do-brasil/
[3] Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/?id=615075:algoritmos-e-inteligencia-artificial-podem-promover-racismo-no-brasil
[4] Disponível em: https://www.one.com.br/blog/a-ignorancia-das-inteligencias-artificiais/