Notícias e artigos do mundo do Direito: a rotina da Polícia, Ministério Público e Tribunais

Interessa à sociedade saber o que os juízes pensam


Por André Augusto Salvador Bezerra
André Augusto Salvador Bezerra. Foto: Arquivo Pessoal

O crescimento do uso das redes sociais nas disputas políticas tem ensejado uma interessante discussão acerca das possibilidades e dos limites de sua utilização por juízes, agentes tradicionalmente alijados dos grandes debates do país, sob o pretexto da neutralidade.

Na realidade, a presença de magistrados nas redes sociais escancara um fato que deveria ser óbvio, mas que frequentemente é tratado como verdadeiro tabu: o ato de decidir um processo não é um ato politicamente neutro, por mais que o respectivo responsável pela decisão procure (sinceramente) parecer que sim. Os motivos de fato e de direito manifestados no discurso presente em cada ato decisório revelam opções influenciadas pela visão de mundo pessoal do intérprete e aplicador, oriundas, por sua vez, de valores religiosos, familiares e, importante dizer, políticos e ideológicos.

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Afinal de contas, juízes não surgem do nada. Vivem em sociedade e carregam, dentro de si, as múltiplas opiniões e posições ideológicas que permeiam a vida em cada meio social, as quais são externadas oficialmente em suas decisões ou extraoficialmente (isto é, fora da atividade funcional) nos mais variados locais, desde reuniões de amigos ou de familiares até em palestras, entrevistas ou redes sociais.

Juiz, mas cidadão

A prática da liberdade de expressão por juízes advém, assim, como consequência do exercício cidadão, o que, por seu lado, é amparado juridicamente. Recorda-se que a magistratura não exclui os direitos de cidadania de seus membros, exceto o expressamente mencionado pela própria Constituição: o ingresso em partido político (art. 95, § único, inciso III).

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Em tais termos, com base no direito constitucional da livre manifestação do pensamento e da proibição da censura (art. 5o, inciso IV e art. 220, § 2o), pode o juiz divulgar sua opinião acerca de medidas governamentais; criticar a conduta de agentes públicos ou de lideranças políticas e exteriorizar suas preferências em períodos eleitorais, desde que isso não signifique adesão formal (filiação) à agremiação partidária.

Está ainda o magistrado autorizado constitucionalmente a exercer a crítica sobre os tribunais e, até mesmo, sobre outras decisões judiciais, superando-se a vedação prevista no art. 36, III, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN), outorgada em 1979, sob a vigência do regime ditatorial. Parte-se do pressuposto democrático da necessidade do livre debate interno de ideias para se aperfeiçoar as instituições, permitindo que estas atuem da forma mais eficaz possível em direção ao objetivo da construção de sociedade livre, justa e solidária (art.3o, I, da Constituição).

A exigência social da liberdade de expressão

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Nesse ponto da exposição, alcança-se uma segunda perspectiva nem sempre considerada quando se examina a questão colocada no presente texto. Trata-se do interesse social ao exercício do direito à palavra por parte de membros do Judiciário.

Deveras, a preocupação social já se fazia presente nos primeiros momentos da luta iluminista contra a censura. Em seu célebre discurso ao Parlamento inglês, no ano de 1644, John Milton advogou o fim da restrição à palavra como caminho necessário para a sociedade inglesa promover uma "busca comum e fraternal pela verdade" (Aeropagítica, 1999, p. 161); cerca de dois séculos depois, na mesma Inglaterra, John Stuart Mill deixava claro que a restrição à liberdade de expor pensamentos "defrauda a raça humana" (Sobre a liberdade, 1997, p. 23).

Há, em tais ideias, uma clara correlação entre liberdade de expressão e o que os autores entendiam por progresso social e humano. Expor uma opinião não importa, pois, apenas ao dono de ponto de vista; importa a todos nós, que crescemos e melhoramos quando nos deparamos com variadas maneiras de pensar.

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Não existe nenhum motivo para se excluir esse raciocínio secular quando se reflete acerca da liberdade de expressão de magistrados. Pelo contrário, há de se reforçar, na medida em que juízes compõe um poder de Estado inserido, conforme o vigente projeto político constitucional, em um sistema democrático.

Ora, "com um aparente jogo de palavras pode-se definir o governo da democracia como o governo do poder público em público", afirma Noberto Bobbio, no clássico O futuro da democracia (2009, p. 98). O sistema democrático tem, pois, em sua essência, a oposição ao segredo de Estado, aos motivos ocultos, às práticas em sigilo: é, por isso, o regime do exercício de poder visível.

Garantir a possibilidade de magistrados externarem seus pontos de vista - em reuniões privadas, em eventos públicos ou em redes sociais - significa torná-los visíveis à população. Todos podem, assim, saber o que pensam, como pensam e o que os influencia em suas decisões.

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Necessário recordar, mais uma vez, que decisões judiciais são inevitavelmente influenciadas pelos valores de quem procede à leitura de textos jurídicos, interpretando-os e aplicando-os a casos concretos. Essa influência existe, com ou sem exercício da liberdade de expressão. Contudo, sob a vigência de tal direito, há publicidade e transparência. Tudo fica mais claro.

Nada do que aqui se sustenta enfraquece a necessária imparcialidade (termo que não se confunde com neutralidade ideológica) do Judiciário. Pelo contrário, fortalece. Sabendo-se, por exemplo, das posições políticas de um dado magistrado, podem as partes melhor averiguar se sua decisão efetivamente pautou-se pela técnica jurídica ou pelo voluntarismo ideológico. Ademais, impõe, ao magistrado conhecido por defender determinadas ideias, um maior ônus argumentativo para decidir uma causa em que se discutem essas mesmas ideias.

Evidente que inexiste juridicamente liberdade absoluta para magistrados falarem o que e como quiserem. O direito à palavra não exime juízes, por exemplo, do dever de não prejulgar uma causa que presidem quando emitem uma opinião, ou ainda do dever de não fazer uso do anonimato, proibido pela Constituição (art. 5o, IV). Não podem, outrossim, ofender a autoestima e a imagem de terceiros e nem tampouco promover o discurso do ódio, da intolerância ou que, de alguma forma, enfraqueça toda a sistemática de Direitos Humanos que alicerça o Estado de Direito a que têm o dever funcional de assegurar.

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A liberdade de expressão não é absoluta. Para ninguém. Nem para juízes.

Observações finais: reforçar a legitimidade

O Brasil pós-manifestações de 2013 tem testemunhado uma crise de legitimidade de suas instituições. O Judiciário não passa ileso a esse processo, tendo suas decisões - judiciais ou administrativas internas - sido criticadas e até mesmo atacadas no âmbito da crescente onda de intolerância que, por vezes, parece inundar o país.

Quando instituições são atacadas, cabe aos respectivos membros a tomada de uma opção, dentre duas possíveis: fechar-se à sociedade a fim de escapulir das críticas ou abrir-se ao accountability social com o intuito de mostrar a todos quem são seus membros, o que faz no dia a dia em favor da democracia e sua importância para o Estado de Direito.

A opção de se fechar é aquela normalmente tomada quando a resposta à crise institucional se dá pela saída autocrática, tal como sucedeu com o Golpe de 1964. A opção da abertura é a que sucede sob um projeto de aprofundamento democrático, da forma prometida pela Constituição de 1988.

Em meio à crise de legitimidade das instituições, no início de maio de 2019, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) instituiu grupo de trabalho para "avaliar os parâmetros para o uso adequado das redes sociais" por juízes. O órgão a quem cabe controlar externamente a função jurisdicional estatal insere-se, pois, perante a bifurcação presente nos caminhos colocados às instituições em períodos de crise: o caminho de fechar-se à sociedade ou o rumo de abrir-se para ela; tomar o caminho do sigilo, abandonando o Estado de Direito, ou escolher o caminho da transparência em favor da soberania popular.

Em uma democracia, interessa à sociedade saber o que pensam os membros de todos os poderes de Estado. Eis uma lembrança fundamental a ser considerada pelo CNJ na encruzilhada em que se situa.

*André Augusto Salvador Bezerra Doutor pelo Programa em Humanidades e Direitos da USP. Juiz de Direito em São Paulo. Membro e ex-Presidente da Associação Juízes para a Democracia.

André Augusto Salvador Bezerra. Foto: Arquivo Pessoal

O crescimento do uso das redes sociais nas disputas políticas tem ensejado uma interessante discussão acerca das possibilidades e dos limites de sua utilização por juízes, agentes tradicionalmente alijados dos grandes debates do país, sob o pretexto da neutralidade.

Na realidade, a presença de magistrados nas redes sociais escancara um fato que deveria ser óbvio, mas que frequentemente é tratado como verdadeiro tabu: o ato de decidir um processo não é um ato politicamente neutro, por mais que o respectivo responsável pela decisão procure (sinceramente) parecer que sim. Os motivos de fato e de direito manifestados no discurso presente em cada ato decisório revelam opções influenciadas pela visão de mundo pessoal do intérprete e aplicador, oriundas, por sua vez, de valores religiosos, familiares e, importante dizer, políticos e ideológicos.

Afinal de contas, juízes não surgem do nada. Vivem em sociedade e carregam, dentro de si, as múltiplas opiniões e posições ideológicas que permeiam a vida em cada meio social, as quais são externadas oficialmente em suas decisões ou extraoficialmente (isto é, fora da atividade funcional) nos mais variados locais, desde reuniões de amigos ou de familiares até em palestras, entrevistas ou redes sociais.

Juiz, mas cidadão

A prática da liberdade de expressão por juízes advém, assim, como consequência do exercício cidadão, o que, por seu lado, é amparado juridicamente. Recorda-se que a magistratura não exclui os direitos de cidadania de seus membros, exceto o expressamente mencionado pela própria Constituição: o ingresso em partido político (art. 95, § único, inciso III).

Em tais termos, com base no direito constitucional da livre manifestação do pensamento e da proibição da censura (art. 5o, inciso IV e art. 220, § 2o), pode o juiz divulgar sua opinião acerca de medidas governamentais; criticar a conduta de agentes públicos ou de lideranças políticas e exteriorizar suas preferências em períodos eleitorais, desde que isso não signifique adesão formal (filiação) à agremiação partidária.

Está ainda o magistrado autorizado constitucionalmente a exercer a crítica sobre os tribunais e, até mesmo, sobre outras decisões judiciais, superando-se a vedação prevista no art. 36, III, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN), outorgada em 1979, sob a vigência do regime ditatorial. Parte-se do pressuposto democrático da necessidade do livre debate interno de ideias para se aperfeiçoar as instituições, permitindo que estas atuem da forma mais eficaz possível em direção ao objetivo da construção de sociedade livre, justa e solidária (art.3o, I, da Constituição).

A exigência social da liberdade de expressão

Nesse ponto da exposição, alcança-se uma segunda perspectiva nem sempre considerada quando se examina a questão colocada no presente texto. Trata-se do interesse social ao exercício do direito à palavra por parte de membros do Judiciário.

Deveras, a preocupação social já se fazia presente nos primeiros momentos da luta iluminista contra a censura. Em seu célebre discurso ao Parlamento inglês, no ano de 1644, John Milton advogou o fim da restrição à palavra como caminho necessário para a sociedade inglesa promover uma "busca comum e fraternal pela verdade" (Aeropagítica, 1999, p. 161); cerca de dois séculos depois, na mesma Inglaterra, John Stuart Mill deixava claro que a restrição à liberdade de expor pensamentos "defrauda a raça humana" (Sobre a liberdade, 1997, p. 23).

Há, em tais ideias, uma clara correlação entre liberdade de expressão e o que os autores entendiam por progresso social e humano. Expor uma opinião não importa, pois, apenas ao dono de ponto de vista; importa a todos nós, que crescemos e melhoramos quando nos deparamos com variadas maneiras de pensar.

Não existe nenhum motivo para se excluir esse raciocínio secular quando se reflete acerca da liberdade de expressão de magistrados. Pelo contrário, há de se reforçar, na medida em que juízes compõe um poder de Estado inserido, conforme o vigente projeto político constitucional, em um sistema democrático.

Ora, "com um aparente jogo de palavras pode-se definir o governo da democracia como o governo do poder público em público", afirma Noberto Bobbio, no clássico O futuro da democracia (2009, p. 98). O sistema democrático tem, pois, em sua essência, a oposição ao segredo de Estado, aos motivos ocultos, às práticas em sigilo: é, por isso, o regime do exercício de poder visível.

Garantir a possibilidade de magistrados externarem seus pontos de vista - em reuniões privadas, em eventos públicos ou em redes sociais - significa torná-los visíveis à população. Todos podem, assim, saber o que pensam, como pensam e o que os influencia em suas decisões.

Necessário recordar, mais uma vez, que decisões judiciais são inevitavelmente influenciadas pelos valores de quem procede à leitura de textos jurídicos, interpretando-os e aplicando-os a casos concretos. Essa influência existe, com ou sem exercício da liberdade de expressão. Contudo, sob a vigência de tal direito, há publicidade e transparência. Tudo fica mais claro.

Nada do que aqui se sustenta enfraquece a necessária imparcialidade (termo que não se confunde com neutralidade ideológica) do Judiciário. Pelo contrário, fortalece. Sabendo-se, por exemplo, das posições políticas de um dado magistrado, podem as partes melhor averiguar se sua decisão efetivamente pautou-se pela técnica jurídica ou pelo voluntarismo ideológico. Ademais, impõe, ao magistrado conhecido por defender determinadas ideias, um maior ônus argumentativo para decidir uma causa em que se discutem essas mesmas ideias.

Evidente que inexiste juridicamente liberdade absoluta para magistrados falarem o que e como quiserem. O direito à palavra não exime juízes, por exemplo, do dever de não prejulgar uma causa que presidem quando emitem uma opinião, ou ainda do dever de não fazer uso do anonimato, proibido pela Constituição (art. 5o, IV). Não podem, outrossim, ofender a autoestima e a imagem de terceiros e nem tampouco promover o discurso do ódio, da intolerância ou que, de alguma forma, enfraqueça toda a sistemática de Direitos Humanos que alicerça o Estado de Direito a que têm o dever funcional de assegurar.

A liberdade de expressão não é absoluta. Para ninguém. Nem para juízes.

Observações finais: reforçar a legitimidade

O Brasil pós-manifestações de 2013 tem testemunhado uma crise de legitimidade de suas instituições. O Judiciário não passa ileso a esse processo, tendo suas decisões - judiciais ou administrativas internas - sido criticadas e até mesmo atacadas no âmbito da crescente onda de intolerância que, por vezes, parece inundar o país.

Quando instituições são atacadas, cabe aos respectivos membros a tomada de uma opção, dentre duas possíveis: fechar-se à sociedade a fim de escapulir das críticas ou abrir-se ao accountability social com o intuito de mostrar a todos quem são seus membros, o que faz no dia a dia em favor da democracia e sua importância para o Estado de Direito.

A opção de se fechar é aquela normalmente tomada quando a resposta à crise institucional se dá pela saída autocrática, tal como sucedeu com o Golpe de 1964. A opção da abertura é a que sucede sob um projeto de aprofundamento democrático, da forma prometida pela Constituição de 1988.

Em meio à crise de legitimidade das instituições, no início de maio de 2019, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) instituiu grupo de trabalho para "avaliar os parâmetros para o uso adequado das redes sociais" por juízes. O órgão a quem cabe controlar externamente a função jurisdicional estatal insere-se, pois, perante a bifurcação presente nos caminhos colocados às instituições em períodos de crise: o caminho de fechar-se à sociedade ou o rumo de abrir-se para ela; tomar o caminho do sigilo, abandonando o Estado de Direito, ou escolher o caminho da transparência em favor da soberania popular.

Em uma democracia, interessa à sociedade saber o que pensam os membros de todos os poderes de Estado. Eis uma lembrança fundamental a ser considerada pelo CNJ na encruzilhada em que se situa.

*André Augusto Salvador Bezerra Doutor pelo Programa em Humanidades e Direitos da USP. Juiz de Direito em São Paulo. Membro e ex-Presidente da Associação Juízes para a Democracia.

André Augusto Salvador Bezerra. Foto: Arquivo Pessoal

O crescimento do uso das redes sociais nas disputas políticas tem ensejado uma interessante discussão acerca das possibilidades e dos limites de sua utilização por juízes, agentes tradicionalmente alijados dos grandes debates do país, sob o pretexto da neutralidade.

Na realidade, a presença de magistrados nas redes sociais escancara um fato que deveria ser óbvio, mas que frequentemente é tratado como verdadeiro tabu: o ato de decidir um processo não é um ato politicamente neutro, por mais que o respectivo responsável pela decisão procure (sinceramente) parecer que sim. Os motivos de fato e de direito manifestados no discurso presente em cada ato decisório revelam opções influenciadas pela visão de mundo pessoal do intérprete e aplicador, oriundas, por sua vez, de valores religiosos, familiares e, importante dizer, políticos e ideológicos.

Afinal de contas, juízes não surgem do nada. Vivem em sociedade e carregam, dentro de si, as múltiplas opiniões e posições ideológicas que permeiam a vida em cada meio social, as quais são externadas oficialmente em suas decisões ou extraoficialmente (isto é, fora da atividade funcional) nos mais variados locais, desde reuniões de amigos ou de familiares até em palestras, entrevistas ou redes sociais.

Juiz, mas cidadão

A prática da liberdade de expressão por juízes advém, assim, como consequência do exercício cidadão, o que, por seu lado, é amparado juridicamente. Recorda-se que a magistratura não exclui os direitos de cidadania de seus membros, exceto o expressamente mencionado pela própria Constituição: o ingresso em partido político (art. 95, § único, inciso III).

Em tais termos, com base no direito constitucional da livre manifestação do pensamento e da proibição da censura (art. 5o, inciso IV e art. 220, § 2o), pode o juiz divulgar sua opinião acerca de medidas governamentais; criticar a conduta de agentes públicos ou de lideranças políticas e exteriorizar suas preferências em períodos eleitorais, desde que isso não signifique adesão formal (filiação) à agremiação partidária.

Está ainda o magistrado autorizado constitucionalmente a exercer a crítica sobre os tribunais e, até mesmo, sobre outras decisões judiciais, superando-se a vedação prevista no art. 36, III, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN), outorgada em 1979, sob a vigência do regime ditatorial. Parte-se do pressuposto democrático da necessidade do livre debate interno de ideias para se aperfeiçoar as instituições, permitindo que estas atuem da forma mais eficaz possível em direção ao objetivo da construção de sociedade livre, justa e solidária (art.3o, I, da Constituição).

A exigência social da liberdade de expressão

Nesse ponto da exposição, alcança-se uma segunda perspectiva nem sempre considerada quando se examina a questão colocada no presente texto. Trata-se do interesse social ao exercício do direito à palavra por parte de membros do Judiciário.

Deveras, a preocupação social já se fazia presente nos primeiros momentos da luta iluminista contra a censura. Em seu célebre discurso ao Parlamento inglês, no ano de 1644, John Milton advogou o fim da restrição à palavra como caminho necessário para a sociedade inglesa promover uma "busca comum e fraternal pela verdade" (Aeropagítica, 1999, p. 161); cerca de dois séculos depois, na mesma Inglaterra, John Stuart Mill deixava claro que a restrição à liberdade de expor pensamentos "defrauda a raça humana" (Sobre a liberdade, 1997, p. 23).

Há, em tais ideias, uma clara correlação entre liberdade de expressão e o que os autores entendiam por progresso social e humano. Expor uma opinião não importa, pois, apenas ao dono de ponto de vista; importa a todos nós, que crescemos e melhoramos quando nos deparamos com variadas maneiras de pensar.

Não existe nenhum motivo para se excluir esse raciocínio secular quando se reflete acerca da liberdade de expressão de magistrados. Pelo contrário, há de se reforçar, na medida em que juízes compõe um poder de Estado inserido, conforme o vigente projeto político constitucional, em um sistema democrático.

Ora, "com um aparente jogo de palavras pode-se definir o governo da democracia como o governo do poder público em público", afirma Noberto Bobbio, no clássico O futuro da democracia (2009, p. 98). O sistema democrático tem, pois, em sua essência, a oposição ao segredo de Estado, aos motivos ocultos, às práticas em sigilo: é, por isso, o regime do exercício de poder visível.

Garantir a possibilidade de magistrados externarem seus pontos de vista - em reuniões privadas, em eventos públicos ou em redes sociais - significa torná-los visíveis à população. Todos podem, assim, saber o que pensam, como pensam e o que os influencia em suas decisões.

Necessário recordar, mais uma vez, que decisões judiciais são inevitavelmente influenciadas pelos valores de quem procede à leitura de textos jurídicos, interpretando-os e aplicando-os a casos concretos. Essa influência existe, com ou sem exercício da liberdade de expressão. Contudo, sob a vigência de tal direito, há publicidade e transparência. Tudo fica mais claro.

Nada do que aqui se sustenta enfraquece a necessária imparcialidade (termo que não se confunde com neutralidade ideológica) do Judiciário. Pelo contrário, fortalece. Sabendo-se, por exemplo, das posições políticas de um dado magistrado, podem as partes melhor averiguar se sua decisão efetivamente pautou-se pela técnica jurídica ou pelo voluntarismo ideológico. Ademais, impõe, ao magistrado conhecido por defender determinadas ideias, um maior ônus argumentativo para decidir uma causa em que se discutem essas mesmas ideias.

Evidente que inexiste juridicamente liberdade absoluta para magistrados falarem o que e como quiserem. O direito à palavra não exime juízes, por exemplo, do dever de não prejulgar uma causa que presidem quando emitem uma opinião, ou ainda do dever de não fazer uso do anonimato, proibido pela Constituição (art. 5o, IV). Não podem, outrossim, ofender a autoestima e a imagem de terceiros e nem tampouco promover o discurso do ódio, da intolerância ou que, de alguma forma, enfraqueça toda a sistemática de Direitos Humanos que alicerça o Estado de Direito a que têm o dever funcional de assegurar.

A liberdade de expressão não é absoluta. Para ninguém. Nem para juízes.

Observações finais: reforçar a legitimidade

O Brasil pós-manifestações de 2013 tem testemunhado uma crise de legitimidade de suas instituições. O Judiciário não passa ileso a esse processo, tendo suas decisões - judiciais ou administrativas internas - sido criticadas e até mesmo atacadas no âmbito da crescente onda de intolerância que, por vezes, parece inundar o país.

Quando instituições são atacadas, cabe aos respectivos membros a tomada de uma opção, dentre duas possíveis: fechar-se à sociedade a fim de escapulir das críticas ou abrir-se ao accountability social com o intuito de mostrar a todos quem são seus membros, o que faz no dia a dia em favor da democracia e sua importância para o Estado de Direito.

A opção de se fechar é aquela normalmente tomada quando a resposta à crise institucional se dá pela saída autocrática, tal como sucedeu com o Golpe de 1964. A opção da abertura é a que sucede sob um projeto de aprofundamento democrático, da forma prometida pela Constituição de 1988.

Em meio à crise de legitimidade das instituições, no início de maio de 2019, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) instituiu grupo de trabalho para "avaliar os parâmetros para o uso adequado das redes sociais" por juízes. O órgão a quem cabe controlar externamente a função jurisdicional estatal insere-se, pois, perante a bifurcação presente nos caminhos colocados às instituições em períodos de crise: o caminho de fechar-se à sociedade ou o rumo de abrir-se para ela; tomar o caminho do sigilo, abandonando o Estado de Direito, ou escolher o caminho da transparência em favor da soberania popular.

Em uma democracia, interessa à sociedade saber o que pensam os membros de todos os poderes de Estado. Eis uma lembrança fundamental a ser considerada pelo CNJ na encruzilhada em que se situa.

*André Augusto Salvador Bezerra Doutor pelo Programa em Humanidades e Direitos da USP. Juiz de Direito em São Paulo. Membro e ex-Presidente da Associação Juízes para a Democracia.

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