Ninguém se ilude a acreditar que em nichos de erudição inexistam baixezas. O ser humano é feito dessa matéria frágil e defeituosa, que se deixa contaminar por sentimentos inferiores. A ilustração cultural apenas sofistica a forma pela qual as maldades são perpetradas.
O Itamarati, que é a mais venerada fórmula de preparação de profissionais singulares, como os diplomatas, não foge à regra. Pode ser que os embates se travem com “punhos de renda”. Mas eles existem. Por pudor ou natural reserva, os bastidores não chegam a conhecimento da plebe. Salvo quando algum ressentido os registra para divulgação póstuma.
Oliveira Lima, que serviu à carrière durante décadas, em suas “Memórias” deixa claras as suas reservas quanto a dois monumentos pátrios: Joaquim Nabuco e o Barão do Rio Branco.
Em relação a Nabuco, inicia por elogiá-lo: “...tinha eminentes qualidades para representar brilhantemente o seu país. Tinha as maneiras de um aristocrata e os sentimentos de um gentleman; possuía a cultura de um verdadeiro intelectual e sabia usá-la com arte, e era um bonito homem”. Para, em seguida, partir para a ironia: “Numa das suas crises de bajulação futurista, o Sr. Graça Aranha disse que a formosura de Nabuco era apolínea. A comparação é infeliz. Nabuco tinha uma beleza viril e tanto que passavam despercebidas certas faceirices femininas de que tinha a fraqueza, como encostar-se ao comprido contra a parede para fazer realçar a sua esbelteza, ou tapar a metade da cara com um lenço à moda das mulheres árabes de antes da emancipação do sexo”.
Reconhece o charme de Joaquim Nabuco: “seus olhos tinham a expressão mais atraente, seu sorriso era cativante e da sua voz, que na oratória, tinha uns agudos estridentes, se podia dizer que ia direto ao coração sem parecer precisar de penetrar pelo ouvido”. Entra a analisar o caráter: “Havia mesmo uma certa dose de bondade na sua alma e creio que não foi ela de todo alheia ao seu papel saliente na campanha da abolição da escravidão, a qual foi mais que tudo um gesto político de sabor literário, inspirado pela filantropia inglesa”.
Inicia, então, leves críticas: “Joaquim Nabuco nunca poderia ter sido, como seu pai, o que se chama um estadista, porque o que lhe sobrava em bom gosto literário, lhe faltava em senso das realidades, aquilo que comumente se chama o senso prático no tocante às questões públicas”.
Narra o seu convívio com Nabuco desde criança, inclusive ter, aos quinze anos, escrito um artigo palpitante de simpatia, que valeu, em resposta, uma carta em que Nabuco dizia de Oliveira Lima: “mal sabia que no menino que lhe dava as notícias da última hora estava um jornalista em botão desabrochando rapidamente para o sol da publicidade”.
Em seguida, após reconhecer que o talento de escritor pode realçar uma figura diplomática, aduz que Nabuco não dominava a língua inglesa como Salvador de Mendonça. E que sua capacidade literária era um predicado secundário para a missão à qual Nabuco se dedicou e da qual só colheu frustração: a questão territorial com a Guiana Inglesa. Oliveira Lima atribui a Rio Branco haver dito que o português de Nabuco não se dava bem com a língua francesa e criticou a prolixidade dos memoriais brasileiros, com mais de mil páginas, enquanto a inglesa não chegava a cem. O comentário de Rio Branco teria sido: “Vou apostar que a memória inglesa diz mais na sua concisão e se lê com maior proveito”.
Na opinião de Oliveira Lima, o Barão de Rio Branco evidenciou íntima satisfação quando Nabuco perdeu a parada. Na noite em que soube do resultado, num jantar do Hotel dos Estrangeiros, Rio Branco dirigiu-se a Oliveira Lima, sem disfarçar seu contentamento: “Já soube do nosso fracasso?”. E continua, o memorialista, a tripudiar de Nabuco: “O maior defeito de Nabuco era a vaidade, do seu físico e do seu espírito. Ela o fazia egoísta e o levava à ingratidão. Rio Branco não era menos vaidoso nem menos egoísta, e tinha muito menos coração do que Nabuco, sendo mesmo desapiedado. Da sua alma não jorrava o leite da ternura humana. Era, porém, mais agradecido e mais serviçal do que Nabuco, por interesse, para provocar favores que ele sabia bem recompensar às custas do tesouro”.
Por sorte nossa, hoje não existem mais intrigas na diplomacia brasileira.
*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e secretário-geral da Academia Paulista de Letras