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Juíza manda registrar criança com nomes da mãe e dos pais adotivo e biológico


Para magistrada de Goiás, família é um agrupamento de pessoas caracterizado por afetividade

Por Redação
 Foto: Estadão

Por Julia Affonso

No fim de abril, a juíza Coraci Pereira da Silva, da Vara de Família e Sucessões da cidade de Rio Verde, no interior de Goiás, definiu que no registro de uma criança deveriam constar os nomes da mãe e dos pais adotivo e biológico. A menina passou, então, a ter os três nomes na certidão de nascimento, bem como dos quatro avós paternos.

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"(A criança) se sentiu feliz por ter a possibilidade de duas famílias, duas casas, dois pais que ela chama de pais. No finalzinho (da audiência), quando eu estava conversando com ela, perguntei se ela tinha alguma dúvida, se tinha alguma coisa que ela gostaria que esclarecesse, se gostaria de falar. Ela disse: eu gostaria que meu pai que não mora aqui viesse morar aqui para eu ter duas casas. Ela realmente tinha o desejo de permanecer com os dois", afirmou a magistrada.

A juíza Coraci Pereira da Silva. Foto: Arquivo Pessoal
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Durante dois anos, o pai biológico da menina conviveu com a mãe da criança em união estável. Com o término do relacionamento, a mãe passou a viver com o pai afetivo, com quem supostamente teria tido uma filha, registrada por ele com seu nome.

O pai biológico, no entanto, percebeu que com seu desenvolvimento e crescimento, ela não tinha as características físicas semelhantes com o pai que a registrou. Os dois, então, fizeram consensualmente um teste de DNA, que apontou o pai biológico, que requereu o reconhecimento judicial.

"Família é uma forma de convivência das pessoas, ainda que fora do modelo fechado do casamento civil, independente do sexo, da quantidade de pessoas ou se entre elas existe descendência genética ou apenas vínculo de afeto", explica a juíza.

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Desde 2011, o advogado e professor Christiano Cassetari, diretor do Instituto Brasileiro do Direito da Família (IBDFAM), vem contabilizando as decisões favoráveis da Justiça à multiparentalidade. Nos últimos quatro anos, cerca de 20 famílias conseguiram decisões favoráveis no Judiciário. A primeira foi em Rondônia. No cálculo não estão incluídas aquelas famílias que não procuraram a Justiça, algumas decisões de 1ª instância e outras que envolvem segredo de Justiça.

"A questão do registro em cartório depende de alguma regulamentação. Pernambuco, Ceará, Maranhão, Amazonas e, recentemente, Santa Catarina já contam com instrumentos normativos de âmbito estadual que permite reconhecimento de filiação sócio-afetiva diretamente em cartório", explica a juíza.

VEJA A ENTREVISTA COM A MAGISTRADA NA ÍNTEGRA

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ESTADÃO: O que a senhora levou em consideração ao ser favorável ao registro da criança por 3 pessoas?

CORACI PEREIRA DA SILVA: Uma série de fatores. Uma história, que desde o nascimento da criança, a mãe registrou a criança no nome de uma pessoa sem fazer o DNA. Essa criança conviveu com a mãe e esse pai registral. Depois, a mãe foi a óbito e ela continuou com o pai registral, formando laços de afetividade. O pai biológico fez o DNA, descobriu a paternidade biológica e entrou com a ação. Na audiência, quando estavam presentes os dois pais e a criança, eu analisei cada situação, visando o pai biológico, o afetivo e o interesse da criança. Isso me passou uma segurança de que ela estava inserida nas duas famílias. Ela formou laços de afetividade com o pai registral e, na data da audiência, ela já estava sob os cuidados do pai biológico, com quem também já havia formado laços de afetividade. Ela tem também irmãos com as duas famílias, quer permanecer com os irmãozinhos, o de consideração e o biológico. Os dois pais não se opuseram e eu vi consenso. Para a criança foi o melhor naquela situação. Por isso, eu resolvi preservar o vínculo da paternidade sócio-afetiva e incluir a paternidade biológico.

ESTADÃO: A criança ficou feliz?

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JUÍZA CORACI: Super feliz. Ela se sentiu feliz por ter a possibilidade de duas famílias, duas casas e dois pais que ela chama de pais. No finalzinho, quando eu estava conversando com ela, perguntei se ela tinha alguma dúvida, se tinha alguma coisa que ela gostaria que esclarecesse, se ela gostaria de falar, ela disse: eu gostaria que meu pai que não mora aqui, viesse morar aqui, para eu ter duas casas. Ela realmente tinha o desejo de permanecer com os dois.

ESTADÃO: O que os pais precisam dar às crianças?

JUÍZA CORACI: Tudo. De bens materiais até formação moral. Entendo imprescindíveis cuidados necessários ao desenvolvimento físico e psicológico da criança, como alimentação, medicamentos, vestuários, mas, acima de tudo, carinho, afeto, respeito, bons exemplos, formação do caráter, um lar harmônico, ainda que simples, proteção e muito amor.

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ESTADÃO: O que é uma família?

JUÍZA CORACI: É um conceito vago, amplo e que eu prefiro definir longe dos parâmetros jurídicos. Para mim, família é uma forma de convivência das pessoas, ainda que fora do modelo fechado do casamento civil, independente do sexo, da quantidade de pessoas ou se entre elas existe descendência genética ou apenas vínculo de afeto. Eu entendo que a família deve ser considerada com base nesses parâmetros: um agrupamento de pessoas caracterizado por afetividade, estabilidade, aquilo que a sociedade vê daquela união de pessoas, que geralmente tem uma comunhão de vida. Tem um conceito da Marilena Batista Depes que eu gosto. Ela diz que família é um espaço de amor, onde não cabe qualquer tipo de preconceito. Outro conceito que eu gostei também foi do Papa Francisco para a Pastoral da Família, no ano passado. Ele disse que 'Família é um centro de amor, onde reina a lei do respeito e da comunhão, capaz de resistir aos ataques da manipulação e da dominação do centro de poder mundano. Família é um refúgio dos seus membros'. Acho um conceito bem inovador, principalmente para a família católica, que sempre via na família aquela família fechada do casamento civil. Hoje, já não é mais barreira nem essa visão da Igreja Católica. É um conceito bem moderno e bem amplo para incluir todas as pessoas que têm uma comunhão de vida.

ESTADÃO: Existe uma lei que englobe as famílias multiparentais?

JUÍZA CORACI: Lei específica com esse tema, não. Mas no ordenamento jurídico, tem como fazer interpretação das normas, começando desde a Constituição Federal, quando protege a família, o Código Civil, que admite outros tipos de famílias diferentes daquelas oriundas do casamento civil. Fazendo a interpretação desses fragmentos de normas se chega à conclusão da possibilidade da multiparentalidade.

ESTADÃO: Qual é o reconhecimento jurídico da multiparentalidade?

JUÍZA CORACI: Nós não temos uma lei específica falando, mesmo porque o próprio termo multiparentalidade é uma palavra que vem da doutrina. Não é um termo jurídico, é uma palavra para atender uma realidade social das famílias de hoje. É uma questão que vem sendo enfrentada com frequência pelo poder judiciário, por ser uma realidade social. No que se refere à multiparentalidade, ela decorre dos critérios biológico e sócioafetivo, os dois juntos. Quando se exclui os pais biológicos para colocar o nome dos pais afetivos, uma adoção, por exemplo, não é multiparentalidade, é família substituta. A gente fala em multiparentalidade quando as duas famílias passam a figurar no registro de nascimento do filho simultaneamente. A matéria está sendo apreciada pelo STF, inclusive, já ganhou o status de matéria de repercussão geral, mas ainda não foi julgado. Enquanto não é regulamentada a matéria, por exemplo, essa lei específica, estudiosos, doutrinadores, órgãos do poder judiciário de todo o País vêm enfrentando a questão rotineiramente. É uma constante nas varas de família, por isso, estão sendo tomadas algumas decisões, ora no sentido de permanecer o vínculo afetivo, ora o biológico, ora os dois.

ESTADÃO: O que falta para a multiparentalidade atingir mais famílias e ser um processo mais rápido?

JUÍZA CORACI: Talvez melhor estrutura, varas específicas voltas para essas questões da família, mais informação e com o tempo mesmo. Nós estamos passando por uma quebra de paradigma, mudança existem questões de tempo, amadurecimento da mentalidade das pessoas, incluindo aqueles interessados em regularizar as situações e as pessoas que vão decidir a respeito. Eu acredito que o tempo vai contribuir para isso, ao lado da legislação também que não vai tardar a aparecer para esclarecer esses pontos.

ESTADÃO: A Justiça tem acolhido as famílias multiparentais?

JUÍZA CORACI: Em regra, tem acolhido. As decisões, a gente vê no sentido mais de acolher e resolver os problemas que tem na sociedade envolvendo a questão do que deixar à margem. A lei vedando isso não vem resolver o problema. Pelo contrário, vai manter as pessoas em uma situação de irregularidade, impedindo que elas façam uso de direitos já garantidos pela Constituição. Quando você deixa de regulamentar uma situação envolvendo uma família, essas pessoas não vão ter direitos hereditários, não vão ter o status de família perante a sociedade, não vão ter o nome.

ESTADÃO: O projeto de lei conhecido como Estatuto da Família vai contra a Constituição?

JUÍZA CORACI: Segundo alguns doutrinadores, sim, porque seria uma norma limitativa, de exclusão, quando a Constituição caminha para a inclusão, para a extensão deste conceito de família, para atender a realidade social. Se este estatuto for aprovado da forma como está, com esta limitação, com um conceito restrito de família, vai dar trabalho interpretar estar norma para resolver as questões que surgirem no dia a dia envolvendo a matéria.

 Foto: Estadão

Por Julia Affonso

No fim de abril, a juíza Coraci Pereira da Silva, da Vara de Família e Sucessões da cidade de Rio Verde, no interior de Goiás, definiu que no registro de uma criança deveriam constar os nomes da mãe e dos pais adotivo e biológico. A menina passou, então, a ter os três nomes na certidão de nascimento, bem como dos quatro avós paternos.

"(A criança) se sentiu feliz por ter a possibilidade de duas famílias, duas casas, dois pais que ela chama de pais. No finalzinho (da audiência), quando eu estava conversando com ela, perguntei se ela tinha alguma dúvida, se tinha alguma coisa que ela gostaria que esclarecesse, se gostaria de falar. Ela disse: eu gostaria que meu pai que não mora aqui viesse morar aqui para eu ter duas casas. Ela realmente tinha o desejo de permanecer com os dois", afirmou a magistrada.

A juíza Coraci Pereira da Silva. Foto: Arquivo Pessoal

Durante dois anos, o pai biológico da menina conviveu com a mãe da criança em união estável. Com o término do relacionamento, a mãe passou a viver com o pai afetivo, com quem supostamente teria tido uma filha, registrada por ele com seu nome.

O pai biológico, no entanto, percebeu que com seu desenvolvimento e crescimento, ela não tinha as características físicas semelhantes com o pai que a registrou. Os dois, então, fizeram consensualmente um teste de DNA, que apontou o pai biológico, que requereu o reconhecimento judicial.

"Família é uma forma de convivência das pessoas, ainda que fora do modelo fechado do casamento civil, independente do sexo, da quantidade de pessoas ou se entre elas existe descendência genética ou apenas vínculo de afeto", explica a juíza.

Desde 2011, o advogado e professor Christiano Cassetari, diretor do Instituto Brasileiro do Direito da Família (IBDFAM), vem contabilizando as decisões favoráveis da Justiça à multiparentalidade. Nos últimos quatro anos, cerca de 20 famílias conseguiram decisões favoráveis no Judiciário. A primeira foi em Rondônia. No cálculo não estão incluídas aquelas famílias que não procuraram a Justiça, algumas decisões de 1ª instância e outras que envolvem segredo de Justiça.

"A questão do registro em cartório depende de alguma regulamentação. Pernambuco, Ceará, Maranhão, Amazonas e, recentemente, Santa Catarina já contam com instrumentos normativos de âmbito estadual que permite reconhecimento de filiação sócio-afetiva diretamente em cartório", explica a juíza.

VEJA A ENTREVISTA COM A MAGISTRADA NA ÍNTEGRA

ESTADÃO: O que a senhora levou em consideração ao ser favorável ao registro da criança por 3 pessoas?

CORACI PEREIRA DA SILVA: Uma série de fatores. Uma história, que desde o nascimento da criança, a mãe registrou a criança no nome de uma pessoa sem fazer o DNA. Essa criança conviveu com a mãe e esse pai registral. Depois, a mãe foi a óbito e ela continuou com o pai registral, formando laços de afetividade. O pai biológico fez o DNA, descobriu a paternidade biológica e entrou com a ação. Na audiência, quando estavam presentes os dois pais e a criança, eu analisei cada situação, visando o pai biológico, o afetivo e o interesse da criança. Isso me passou uma segurança de que ela estava inserida nas duas famílias. Ela formou laços de afetividade com o pai registral e, na data da audiência, ela já estava sob os cuidados do pai biológico, com quem também já havia formado laços de afetividade. Ela tem também irmãos com as duas famílias, quer permanecer com os irmãozinhos, o de consideração e o biológico. Os dois pais não se opuseram e eu vi consenso. Para a criança foi o melhor naquela situação. Por isso, eu resolvi preservar o vínculo da paternidade sócio-afetiva e incluir a paternidade biológico.

ESTADÃO: A criança ficou feliz?

JUÍZA CORACI: Super feliz. Ela se sentiu feliz por ter a possibilidade de duas famílias, duas casas e dois pais que ela chama de pais. No finalzinho, quando eu estava conversando com ela, perguntei se ela tinha alguma dúvida, se tinha alguma coisa que ela gostaria que esclarecesse, se ela gostaria de falar, ela disse: eu gostaria que meu pai que não mora aqui, viesse morar aqui, para eu ter duas casas. Ela realmente tinha o desejo de permanecer com os dois.

ESTADÃO: O que os pais precisam dar às crianças?

JUÍZA CORACI: Tudo. De bens materiais até formação moral. Entendo imprescindíveis cuidados necessários ao desenvolvimento físico e psicológico da criança, como alimentação, medicamentos, vestuários, mas, acima de tudo, carinho, afeto, respeito, bons exemplos, formação do caráter, um lar harmônico, ainda que simples, proteção e muito amor.

ESTADÃO: O que é uma família?

JUÍZA CORACI: É um conceito vago, amplo e que eu prefiro definir longe dos parâmetros jurídicos. Para mim, família é uma forma de convivência das pessoas, ainda que fora do modelo fechado do casamento civil, independente do sexo, da quantidade de pessoas ou se entre elas existe descendência genética ou apenas vínculo de afeto. Eu entendo que a família deve ser considerada com base nesses parâmetros: um agrupamento de pessoas caracterizado por afetividade, estabilidade, aquilo que a sociedade vê daquela união de pessoas, que geralmente tem uma comunhão de vida. Tem um conceito da Marilena Batista Depes que eu gosto. Ela diz que família é um espaço de amor, onde não cabe qualquer tipo de preconceito. Outro conceito que eu gostei também foi do Papa Francisco para a Pastoral da Família, no ano passado. Ele disse que 'Família é um centro de amor, onde reina a lei do respeito e da comunhão, capaz de resistir aos ataques da manipulação e da dominação do centro de poder mundano. Família é um refúgio dos seus membros'. Acho um conceito bem inovador, principalmente para a família católica, que sempre via na família aquela família fechada do casamento civil. Hoje, já não é mais barreira nem essa visão da Igreja Católica. É um conceito bem moderno e bem amplo para incluir todas as pessoas que têm uma comunhão de vida.

ESTADÃO: Existe uma lei que englobe as famílias multiparentais?

JUÍZA CORACI: Lei específica com esse tema, não. Mas no ordenamento jurídico, tem como fazer interpretação das normas, começando desde a Constituição Federal, quando protege a família, o Código Civil, que admite outros tipos de famílias diferentes daquelas oriundas do casamento civil. Fazendo a interpretação desses fragmentos de normas se chega à conclusão da possibilidade da multiparentalidade.

ESTADÃO: Qual é o reconhecimento jurídico da multiparentalidade?

JUÍZA CORACI: Nós não temos uma lei específica falando, mesmo porque o próprio termo multiparentalidade é uma palavra que vem da doutrina. Não é um termo jurídico, é uma palavra para atender uma realidade social das famílias de hoje. É uma questão que vem sendo enfrentada com frequência pelo poder judiciário, por ser uma realidade social. No que se refere à multiparentalidade, ela decorre dos critérios biológico e sócioafetivo, os dois juntos. Quando se exclui os pais biológicos para colocar o nome dos pais afetivos, uma adoção, por exemplo, não é multiparentalidade, é família substituta. A gente fala em multiparentalidade quando as duas famílias passam a figurar no registro de nascimento do filho simultaneamente. A matéria está sendo apreciada pelo STF, inclusive, já ganhou o status de matéria de repercussão geral, mas ainda não foi julgado. Enquanto não é regulamentada a matéria, por exemplo, essa lei específica, estudiosos, doutrinadores, órgãos do poder judiciário de todo o País vêm enfrentando a questão rotineiramente. É uma constante nas varas de família, por isso, estão sendo tomadas algumas decisões, ora no sentido de permanecer o vínculo afetivo, ora o biológico, ora os dois.

ESTADÃO: O que falta para a multiparentalidade atingir mais famílias e ser um processo mais rápido?

JUÍZA CORACI: Talvez melhor estrutura, varas específicas voltas para essas questões da família, mais informação e com o tempo mesmo. Nós estamos passando por uma quebra de paradigma, mudança existem questões de tempo, amadurecimento da mentalidade das pessoas, incluindo aqueles interessados em regularizar as situações e as pessoas que vão decidir a respeito. Eu acredito que o tempo vai contribuir para isso, ao lado da legislação também que não vai tardar a aparecer para esclarecer esses pontos.

ESTADÃO: A Justiça tem acolhido as famílias multiparentais?

JUÍZA CORACI: Em regra, tem acolhido. As decisões, a gente vê no sentido mais de acolher e resolver os problemas que tem na sociedade envolvendo a questão do que deixar à margem. A lei vedando isso não vem resolver o problema. Pelo contrário, vai manter as pessoas em uma situação de irregularidade, impedindo que elas façam uso de direitos já garantidos pela Constituição. Quando você deixa de regulamentar uma situação envolvendo uma família, essas pessoas não vão ter direitos hereditários, não vão ter o status de família perante a sociedade, não vão ter o nome.

ESTADÃO: O projeto de lei conhecido como Estatuto da Família vai contra a Constituição?

JUÍZA CORACI: Segundo alguns doutrinadores, sim, porque seria uma norma limitativa, de exclusão, quando a Constituição caminha para a inclusão, para a extensão deste conceito de família, para atender a realidade social. Se este estatuto for aprovado da forma como está, com esta limitação, com um conceito restrito de família, vai dar trabalho interpretar estar norma para resolver as questões que surgirem no dia a dia envolvendo a matéria.

 Foto: Estadão

Por Julia Affonso

No fim de abril, a juíza Coraci Pereira da Silva, da Vara de Família e Sucessões da cidade de Rio Verde, no interior de Goiás, definiu que no registro de uma criança deveriam constar os nomes da mãe e dos pais adotivo e biológico. A menina passou, então, a ter os três nomes na certidão de nascimento, bem como dos quatro avós paternos.

"(A criança) se sentiu feliz por ter a possibilidade de duas famílias, duas casas, dois pais que ela chama de pais. No finalzinho (da audiência), quando eu estava conversando com ela, perguntei se ela tinha alguma dúvida, se tinha alguma coisa que ela gostaria que esclarecesse, se gostaria de falar. Ela disse: eu gostaria que meu pai que não mora aqui viesse morar aqui para eu ter duas casas. Ela realmente tinha o desejo de permanecer com os dois", afirmou a magistrada.

A juíza Coraci Pereira da Silva. Foto: Arquivo Pessoal

Durante dois anos, o pai biológico da menina conviveu com a mãe da criança em união estável. Com o término do relacionamento, a mãe passou a viver com o pai afetivo, com quem supostamente teria tido uma filha, registrada por ele com seu nome.

O pai biológico, no entanto, percebeu que com seu desenvolvimento e crescimento, ela não tinha as características físicas semelhantes com o pai que a registrou. Os dois, então, fizeram consensualmente um teste de DNA, que apontou o pai biológico, que requereu o reconhecimento judicial.

"Família é uma forma de convivência das pessoas, ainda que fora do modelo fechado do casamento civil, independente do sexo, da quantidade de pessoas ou se entre elas existe descendência genética ou apenas vínculo de afeto", explica a juíza.

Desde 2011, o advogado e professor Christiano Cassetari, diretor do Instituto Brasileiro do Direito da Família (IBDFAM), vem contabilizando as decisões favoráveis da Justiça à multiparentalidade. Nos últimos quatro anos, cerca de 20 famílias conseguiram decisões favoráveis no Judiciário. A primeira foi em Rondônia. No cálculo não estão incluídas aquelas famílias que não procuraram a Justiça, algumas decisões de 1ª instância e outras que envolvem segredo de Justiça.

"A questão do registro em cartório depende de alguma regulamentação. Pernambuco, Ceará, Maranhão, Amazonas e, recentemente, Santa Catarina já contam com instrumentos normativos de âmbito estadual que permite reconhecimento de filiação sócio-afetiva diretamente em cartório", explica a juíza.

VEJA A ENTREVISTA COM A MAGISTRADA NA ÍNTEGRA

ESTADÃO: O que a senhora levou em consideração ao ser favorável ao registro da criança por 3 pessoas?

CORACI PEREIRA DA SILVA: Uma série de fatores. Uma história, que desde o nascimento da criança, a mãe registrou a criança no nome de uma pessoa sem fazer o DNA. Essa criança conviveu com a mãe e esse pai registral. Depois, a mãe foi a óbito e ela continuou com o pai registral, formando laços de afetividade. O pai biológico fez o DNA, descobriu a paternidade biológica e entrou com a ação. Na audiência, quando estavam presentes os dois pais e a criança, eu analisei cada situação, visando o pai biológico, o afetivo e o interesse da criança. Isso me passou uma segurança de que ela estava inserida nas duas famílias. Ela formou laços de afetividade com o pai registral e, na data da audiência, ela já estava sob os cuidados do pai biológico, com quem também já havia formado laços de afetividade. Ela tem também irmãos com as duas famílias, quer permanecer com os irmãozinhos, o de consideração e o biológico. Os dois pais não se opuseram e eu vi consenso. Para a criança foi o melhor naquela situação. Por isso, eu resolvi preservar o vínculo da paternidade sócio-afetiva e incluir a paternidade biológico.

ESTADÃO: A criança ficou feliz?

JUÍZA CORACI: Super feliz. Ela se sentiu feliz por ter a possibilidade de duas famílias, duas casas e dois pais que ela chama de pais. No finalzinho, quando eu estava conversando com ela, perguntei se ela tinha alguma dúvida, se tinha alguma coisa que ela gostaria que esclarecesse, se ela gostaria de falar, ela disse: eu gostaria que meu pai que não mora aqui, viesse morar aqui, para eu ter duas casas. Ela realmente tinha o desejo de permanecer com os dois.

ESTADÃO: O que os pais precisam dar às crianças?

JUÍZA CORACI: Tudo. De bens materiais até formação moral. Entendo imprescindíveis cuidados necessários ao desenvolvimento físico e psicológico da criança, como alimentação, medicamentos, vestuários, mas, acima de tudo, carinho, afeto, respeito, bons exemplos, formação do caráter, um lar harmônico, ainda que simples, proteção e muito amor.

ESTADÃO: O que é uma família?

JUÍZA CORACI: É um conceito vago, amplo e que eu prefiro definir longe dos parâmetros jurídicos. Para mim, família é uma forma de convivência das pessoas, ainda que fora do modelo fechado do casamento civil, independente do sexo, da quantidade de pessoas ou se entre elas existe descendência genética ou apenas vínculo de afeto. Eu entendo que a família deve ser considerada com base nesses parâmetros: um agrupamento de pessoas caracterizado por afetividade, estabilidade, aquilo que a sociedade vê daquela união de pessoas, que geralmente tem uma comunhão de vida. Tem um conceito da Marilena Batista Depes que eu gosto. Ela diz que família é um espaço de amor, onde não cabe qualquer tipo de preconceito. Outro conceito que eu gostei também foi do Papa Francisco para a Pastoral da Família, no ano passado. Ele disse que 'Família é um centro de amor, onde reina a lei do respeito e da comunhão, capaz de resistir aos ataques da manipulação e da dominação do centro de poder mundano. Família é um refúgio dos seus membros'. Acho um conceito bem inovador, principalmente para a família católica, que sempre via na família aquela família fechada do casamento civil. Hoje, já não é mais barreira nem essa visão da Igreja Católica. É um conceito bem moderno e bem amplo para incluir todas as pessoas que têm uma comunhão de vida.

ESTADÃO: Existe uma lei que englobe as famílias multiparentais?

JUÍZA CORACI: Lei específica com esse tema, não. Mas no ordenamento jurídico, tem como fazer interpretação das normas, começando desde a Constituição Federal, quando protege a família, o Código Civil, que admite outros tipos de famílias diferentes daquelas oriundas do casamento civil. Fazendo a interpretação desses fragmentos de normas se chega à conclusão da possibilidade da multiparentalidade.

ESTADÃO: Qual é o reconhecimento jurídico da multiparentalidade?

JUÍZA CORACI: Nós não temos uma lei específica falando, mesmo porque o próprio termo multiparentalidade é uma palavra que vem da doutrina. Não é um termo jurídico, é uma palavra para atender uma realidade social das famílias de hoje. É uma questão que vem sendo enfrentada com frequência pelo poder judiciário, por ser uma realidade social. No que se refere à multiparentalidade, ela decorre dos critérios biológico e sócioafetivo, os dois juntos. Quando se exclui os pais biológicos para colocar o nome dos pais afetivos, uma adoção, por exemplo, não é multiparentalidade, é família substituta. A gente fala em multiparentalidade quando as duas famílias passam a figurar no registro de nascimento do filho simultaneamente. A matéria está sendo apreciada pelo STF, inclusive, já ganhou o status de matéria de repercussão geral, mas ainda não foi julgado. Enquanto não é regulamentada a matéria, por exemplo, essa lei específica, estudiosos, doutrinadores, órgãos do poder judiciário de todo o País vêm enfrentando a questão rotineiramente. É uma constante nas varas de família, por isso, estão sendo tomadas algumas decisões, ora no sentido de permanecer o vínculo afetivo, ora o biológico, ora os dois.

ESTADÃO: O que falta para a multiparentalidade atingir mais famílias e ser um processo mais rápido?

JUÍZA CORACI: Talvez melhor estrutura, varas específicas voltas para essas questões da família, mais informação e com o tempo mesmo. Nós estamos passando por uma quebra de paradigma, mudança existem questões de tempo, amadurecimento da mentalidade das pessoas, incluindo aqueles interessados em regularizar as situações e as pessoas que vão decidir a respeito. Eu acredito que o tempo vai contribuir para isso, ao lado da legislação também que não vai tardar a aparecer para esclarecer esses pontos.

ESTADÃO: A Justiça tem acolhido as famílias multiparentais?

JUÍZA CORACI: Em regra, tem acolhido. As decisões, a gente vê no sentido mais de acolher e resolver os problemas que tem na sociedade envolvendo a questão do que deixar à margem. A lei vedando isso não vem resolver o problema. Pelo contrário, vai manter as pessoas em uma situação de irregularidade, impedindo que elas façam uso de direitos já garantidos pela Constituição. Quando você deixa de regulamentar uma situação envolvendo uma família, essas pessoas não vão ter direitos hereditários, não vão ter o status de família perante a sociedade, não vão ter o nome.

ESTADÃO: O projeto de lei conhecido como Estatuto da Família vai contra a Constituição?

JUÍZA CORACI: Segundo alguns doutrinadores, sim, porque seria uma norma limitativa, de exclusão, quando a Constituição caminha para a inclusão, para a extensão deste conceito de família, para atender a realidade social. Se este estatuto for aprovado da forma como está, com esta limitação, com um conceito restrito de família, vai dar trabalho interpretar estar norma para resolver as questões que surgirem no dia a dia envolvendo a matéria.

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