O grande criminalista Evaristo de Moraes ao ser procurado para patrocinar a defesa de um desafeto político de seu mestre Rui Barbosa, resolveu antes de aceitar o múnus público fazer uma consulta ao inigualável advogado. Ao responder a carta de seu amigo e admirador tem-se um verdadeiro libelo em favor do direito de defesa, pontificando o Águia de Haia: “Tratando-se de um acusado em matéria criminal, não há causa em absoluto indigna de defesa. Ainda quando o crime seja de todos o mais nefando, resta verificar a prova; e ainda quando a prova inicial seja decisiva, falta, não só apurá-la no cadinho dos debates judiciais, senão também vigiar pela regularidade estrita do processo nas suas mínimas formas” (O dever do advogado, editora HB, p. 36).
Os lamentáveis e reprováveis fatos praticados no dia 08 de janeiro de 2023, liderados por grupos de extrema-direita que almejavam concretizar um golpe de estado culminando em um ataque orquestrado aos poderes da República, invadindo, depredando e agredindo o Congresso Nacional, o STF e o Planalto, tiveram seu julgamento iniciado perante o Supremo Tribunal Federal.
Particularmente entendo que estes processos possuem uma série de equívocos constitucionais e procedimentais, a começar pelo desrespeito à garantia do Juiz Natural (art. 5º, LIII, da Constituição Federal) que assegura o direito aos acusados de somente serem presos ou processados pelo juiz competente, não se extraindo a competência originária da Suprema Corte para julgar referidos réus por ofensa a estrutura física e ao patrimônio público do STF, do Congresso Nacional e do Poder Executivo, sem agressão direta aos seus integrantes e inexistindo o envolvimento ou liderança identificada de alguém com foro especial por prerrogativa de função.
Os réus golpistas não devem ser processados e julgados perante o mais elevado tribunal da nação, quando este não é o foro competente, não se apresentando como idôneo o argumento de que a competência decorre de previsão contida no Regimento Interno do STF ou em razão da ofensa ao Pretório Excelso de forma genérica.
Além de foro incompetente, tem-se rito inadequado, considerando que os processos criminais que tramitam perante os tribunais e cortes superiores devem observar a ritualística contida na Lei nº. 8.038/90, mesmo neste caso inexistindo réus com prerrogativa de função.
Referida agressão à Constituição Federal é grave e preocupante (processos criminais inaugurados perante juiz incompetente com a incidência de rito processual indevido). Entrementes, o pior está por vir. Foram ofertadas mais de 1.000 denúncias (Ações Penais Originárias), sendo deflagrados feitos criminais que devem apurar a prática dos ilícitos de abolição violenta do estado democrático de direito (art. 359-L, CP), golpe de estado (art. 359-M, CP), dano qualificado ao patrimônio público (art. 163, parágrafo único, III, CP), dano ao patrimônio histórico tombado (art. 63, Lei nº. 9.6058/98) e associação criminosa armada (art. 288, parágrafo único, CP), imputando fatos típicos cujas penas podem ultrapassar 15 anos de reclusão, além da fixação de multas elevadas e do pedido de condenação em dano moral coletivo, sem o adequado respeito ao direito de defesa, garantia constitucional inerente a existência de qualquer democracia.
Convém antes de apontar o espezinhamento ao sacrossanto direito de defesa, registrar que reputo todos os crimes arremessados em desfavor dos réus como gravíssimos, reafirmando que não deve a sociedade brasileira ter tolerância com golpistas, pessoas que defendem discursos de ódio e são responsáveis por práticas, gestos e posturas antidemocráticas.
Entretanto, mesmo para os equivocados defensores do autoritarismo como resposta ao resultado de eleições livres, pessoas que possuem o germe do fascismo inoculado em suas ideias, quando acusadas criminalmente, devem ter o indisponível direito de defesa assegurado e devidamente respeitado.
Por mais grave, abjeto e hediondo o crime cometido, tem-se que em um estado democrático de direito a ninguém é legítimo acusar sem dar direito ao contraditório, processar sem permitir a oportunidade de produção de provas e contraprovas, julgar e condenar sem assegurar o pleno exercício da ampla defesa com os meios e recursos a ela inerentes.
Nesse contexto merece ser evidenciado que uma das principais formas de se implementar o direito de defesa diz respeito a materialização da participação do advogado no julgamento, possibilitando a apresentação de sustentação oral, alegando todos os fatos e elencando os argumentos que entender pertinentes, deduzindo sua tese jurídica, dialogando com os julgadores, desincumbindo-se do encargo da defesa em sua amplitude constitucionalmente assegurada.
Cuida-se a sustentação oral de prerrogativa essencial da advocacia, estando positivada no art. 7º, IX, da Lei nº. 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e da OAB), sendo assegurada a oportunidade do advogado falar perante o tribunal pelo prazo de 15 minutos, se tempo maior não lhe for concedido.
Registre-se que nem mesmo durante os anos de chumbo da ditadura militar, na vigência dos Atos Institucionais (a exemplo do famigerado AI-5 que suspendeu o direito ao habeas corpus), a presença do advogado no julgamento deixou de ser garantida pela Suprema Corte que assim afirmou: “pelo sistema processual brasileiro, a presença física do réu e do seu advogado contempla o sistema da ampla defesa constitucional” (HC 52.106-SP, j. 31.05.74).
Para perplexidade da comunidade jurídica passou o STF a sumarizar o processo penal, promovendo a análise do mérito dos “atos antidemocráticos” perante o plenário virtual. Ao invés de uma decisão amparada nos debates e na dialética refletida, partiu-se para objetividade e assepsia de um julgamento não presencial (virtual), aplicando a “dialética do agora”, valendo-se de um rito sumaríssimo, impedindo os advogados de apresentarem sustentação oral e deduzirem seus argumentos no escopo de refutar a acusação e dialogar com a decisão judicial.
Segundo esse procedimento sumarizante a sustentação oral deve ser exercida com o envio de um vídeo para o STF contendo as teses da defesa, havendo a informação de que referido arquivo será disponibilizado e assistido pelos magistrados que possuem um prazo para inserirem seus votos eletrônicos no sistema do Supremo Tribunal. Eis uma saída procedimental absolutamente autoritária, antidemocrática, arbitrária e temerária, agredindo o direito de defesa, aplicando uma ritualística processual completamente sumarizada, precária e voltada para o resultado, sem preocupação com as formas e principalmente com a essência.
Se a ninguém é dado o direito de menosprezar a Constituição Federal, com muito mais razão falece legitimidade e causa espanto quando referida postura parte da Suprema Corte, ainda que revestida de argumentos aparentemente voltados para o bem comum. Sempre devemos questionar: quem nos salva da bondade dos bons?
Em matéria de processo penal, forma é garantia e garantia é liberdade. Não permitir aos réus (independentemente da crime a que respondam) o direito à ampla defesa (sendo a sustentação oral desdobramento lógico deste direito) significa o sacrifício de princípios constitucionais no altar das circunstâncias e das conveniências.
Seria o caso de relembrar Rui Barbosa ao afirmar que “a defesa não quer o panegírico da culpa ou do culpado. Sua função consiste em ser, ao lado do acusado, inocente ou criminoso, a voz de seus direitos legais” (Ob., cit., p. 31).
A adoção de ritos sumários com a restrição ao direito de defesa deslustra o Supremo Tribunal Federal e inquinam o julgamento com a pecha do arbítrio.
*Evânio Moura, doutor em Direito Penal e mestre em Processo Penal pela PUC-SP. Professor de Direito Penal da Faculdade de Direito 08 de Julho. Advogado. Procurador do Estado de Sergipe