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Opinião|Lei, regulação e contenção de poder


Todos esses deveres impostos à Administração são corolários da segurança jurídica, cujos contornos já se encontram na Constituição. A positivação em lei tem sentidos simbólico e concreto

Por Fernando Dantas M. Neustein

As mudanças na estrutura econômica de produção de riqueza no Brasil nas últimas décadas têm causado ebulição no mundo jurídico. O direito do trabalho, por exemplo, recebeu uma infusão de novidades com a reforma de 2017, com o objetivo de atualizá-lo. O direito civil testemunhou o nascimento de complexas subespecialidades, como o direito digital e a proteção de dados. Com a reforma do Estado impulsionada por essas transformações, talvez nenhuma disciplina jurídica tenha sofrido um tal abalo sísmico como o direito administrativo.

No epicentro do tremor reside uma questão antiga da organização política do poder: a vinculação da Administração à lei, sobre a qual persistem controvérsias. A corrente clássica, inspirada pelos ideais da revolução francesa, advoga a tese da vinculação total, apegada ao conceito de lei como expressão da vontade geral. A corrente contemporânea, influenciada pelo constitucionalismo da segunda metade do século XX, sustenta que a vinculação do administrador deveria ser à Constituição. Entre ambas, há quem busque conciliar a rigidez objetiva da primeira (que privilegia o papel dos órgãos de representação política como motor de criação do direito) com a flexibilidade principiológica da segunda (que pressupõe papel ativo do Judiciário na definição do sentido do texto constitucional).

Esse debate se expressa diariamente nos conflitos entre Administração e particulares. No contencioso regulatório, por exemplo, agências frequentemente invocam a Constituição como referencial normativo para a edição de regulamentos. E fazem-no muitas vezes com base em preceitos abertos, buscando um salvo-conduto hermenêutico para ampliar a sua atividade normativa e fiscalizatória. Esse teste voluntarioso das fronteiras do Direito convida os administrados à judicialização, sobretudo quando estão em jogo temas sensíveis como produção e comércio.

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Essa contenda não se notabiliza pela paridade de armas, contudo. Segue intacta, por exemplo, a possibilidade de suspensão de liminares concedidas contra a Administração (Lei 8437/1992). Suspensão monocrática e com base em requisitos propositadamente fluidos, que expressam verdadeira Razão de Estado – e que, como tal, deveria ser invocada em situações excepcionais, e não como atalho recursal para cassar decisões desfavoráveis à Administração, como ocorre com frequência. Administrados não têm essa prerrogativa, ainda que liminares concedidas contra os seus interesses possam ter efeitos sérios sobre práticas comerciais estabelecidas no tempo, complexos arranjos contratuais, enfim.

A boa notícia é que os administrados se investiram nos anos recentes de novos fundamentos legais para conter o que por vezes se apresenta como ímpeto arbitrário da Administração, de quem hoje a lei exige um esforço argumentativo mais sofisticado para justificar a atividade normativa/executiva. Os exemplos mais notórios são a lei de liberdade econômica e as alterações à lei de introdução das normas do direito brasileiro.

Da primeira, destacam-se o princípio da subsidiariedade/excepcionalidade da intervenção estatal (art. 2º, III), entendido como a permissão da atuação do Estado apenas quando a iniciativa privada por insuficiente/inadequada; o compromisso da Administração com a clareza, objetividade e previsibilidade (art. 4º-A, II), voltado a reduzir incertezas e ambiguidades na linguagem oficial, que prejudicam a sua compreensão pelo administrado; e o dever de realização de análise de impacto previamente à edição ou alteração de atos normativos (art. 5º), que tem raiz no princípio da motivação dos atos da Administração, obrigando-a a justifica-los de forma racional e elaborada, justamente para facilitar o controle de legalidade pelo administrado.

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Da segunda, emergiram o consequencialismo como parâmetro decisório obrigatório (arts. 20 e 21), com vistas a reduzir a abstração e a excessiva principiologia da Administração, sujeitando-a aos ditames do pragmatismo e da objetividade; o dever de adotar regimes de transição (art. 23), para criar condições para a observância, sem sobressalto, do novo regime normativo pelo administrado; e a proteção ao ato jurídico praticado sob regime normativo alterado supervenientemente (art. 24), que, aplicável às esferas administrativa, controladora e judicial, expressa o primado da irretroatividade, elemento básico de justiça.

Todos esses deveres impostos à Administração são corolários da segurança jurídica, cujos contornos já se encontram na Constituição. A positivação em lei tem sentidos simbólico e concreto. A simbologia está em reafirmar a feição liberal e não autoritária do Estado, cuja ação requer controle pelo Direito. O sentido concreto está em atribuir ao administrado o direito público subjetivo de exigir esse padrão de conduta da Administração, o que se mostra relevante neste momento em que o STF examina ações que questionam a constitucionalidade de regulações da Anvisa sobre temas como medicamentos, alimentos, tabaco, entre outros.

As mudanças na estrutura econômica de produção de riqueza no Brasil nas últimas décadas têm causado ebulição no mundo jurídico. O direito do trabalho, por exemplo, recebeu uma infusão de novidades com a reforma de 2017, com o objetivo de atualizá-lo. O direito civil testemunhou o nascimento de complexas subespecialidades, como o direito digital e a proteção de dados. Com a reforma do Estado impulsionada por essas transformações, talvez nenhuma disciplina jurídica tenha sofrido um tal abalo sísmico como o direito administrativo.

No epicentro do tremor reside uma questão antiga da organização política do poder: a vinculação da Administração à lei, sobre a qual persistem controvérsias. A corrente clássica, inspirada pelos ideais da revolução francesa, advoga a tese da vinculação total, apegada ao conceito de lei como expressão da vontade geral. A corrente contemporânea, influenciada pelo constitucionalismo da segunda metade do século XX, sustenta que a vinculação do administrador deveria ser à Constituição. Entre ambas, há quem busque conciliar a rigidez objetiva da primeira (que privilegia o papel dos órgãos de representação política como motor de criação do direito) com a flexibilidade principiológica da segunda (que pressupõe papel ativo do Judiciário na definição do sentido do texto constitucional).

Esse debate se expressa diariamente nos conflitos entre Administração e particulares. No contencioso regulatório, por exemplo, agências frequentemente invocam a Constituição como referencial normativo para a edição de regulamentos. E fazem-no muitas vezes com base em preceitos abertos, buscando um salvo-conduto hermenêutico para ampliar a sua atividade normativa e fiscalizatória. Esse teste voluntarioso das fronteiras do Direito convida os administrados à judicialização, sobretudo quando estão em jogo temas sensíveis como produção e comércio.

Essa contenda não se notabiliza pela paridade de armas, contudo. Segue intacta, por exemplo, a possibilidade de suspensão de liminares concedidas contra a Administração (Lei 8437/1992). Suspensão monocrática e com base em requisitos propositadamente fluidos, que expressam verdadeira Razão de Estado – e que, como tal, deveria ser invocada em situações excepcionais, e não como atalho recursal para cassar decisões desfavoráveis à Administração, como ocorre com frequência. Administrados não têm essa prerrogativa, ainda que liminares concedidas contra os seus interesses possam ter efeitos sérios sobre práticas comerciais estabelecidas no tempo, complexos arranjos contratuais, enfim.

A boa notícia é que os administrados se investiram nos anos recentes de novos fundamentos legais para conter o que por vezes se apresenta como ímpeto arbitrário da Administração, de quem hoje a lei exige um esforço argumentativo mais sofisticado para justificar a atividade normativa/executiva. Os exemplos mais notórios são a lei de liberdade econômica e as alterações à lei de introdução das normas do direito brasileiro.

Da primeira, destacam-se o princípio da subsidiariedade/excepcionalidade da intervenção estatal (art. 2º, III), entendido como a permissão da atuação do Estado apenas quando a iniciativa privada por insuficiente/inadequada; o compromisso da Administração com a clareza, objetividade e previsibilidade (art. 4º-A, II), voltado a reduzir incertezas e ambiguidades na linguagem oficial, que prejudicam a sua compreensão pelo administrado; e o dever de realização de análise de impacto previamente à edição ou alteração de atos normativos (art. 5º), que tem raiz no princípio da motivação dos atos da Administração, obrigando-a a justifica-los de forma racional e elaborada, justamente para facilitar o controle de legalidade pelo administrado.

Da segunda, emergiram o consequencialismo como parâmetro decisório obrigatório (arts. 20 e 21), com vistas a reduzir a abstração e a excessiva principiologia da Administração, sujeitando-a aos ditames do pragmatismo e da objetividade; o dever de adotar regimes de transição (art. 23), para criar condições para a observância, sem sobressalto, do novo regime normativo pelo administrado; e a proteção ao ato jurídico praticado sob regime normativo alterado supervenientemente (art. 24), que, aplicável às esferas administrativa, controladora e judicial, expressa o primado da irretroatividade, elemento básico de justiça.

Todos esses deveres impostos à Administração são corolários da segurança jurídica, cujos contornos já se encontram na Constituição. A positivação em lei tem sentidos simbólico e concreto. A simbologia está em reafirmar a feição liberal e não autoritária do Estado, cuja ação requer controle pelo Direito. O sentido concreto está em atribuir ao administrado o direito público subjetivo de exigir esse padrão de conduta da Administração, o que se mostra relevante neste momento em que o STF examina ações que questionam a constitucionalidade de regulações da Anvisa sobre temas como medicamentos, alimentos, tabaco, entre outros.

As mudanças na estrutura econômica de produção de riqueza no Brasil nas últimas décadas têm causado ebulição no mundo jurídico. O direito do trabalho, por exemplo, recebeu uma infusão de novidades com a reforma de 2017, com o objetivo de atualizá-lo. O direito civil testemunhou o nascimento de complexas subespecialidades, como o direito digital e a proteção de dados. Com a reforma do Estado impulsionada por essas transformações, talvez nenhuma disciplina jurídica tenha sofrido um tal abalo sísmico como o direito administrativo.

No epicentro do tremor reside uma questão antiga da organização política do poder: a vinculação da Administração à lei, sobre a qual persistem controvérsias. A corrente clássica, inspirada pelos ideais da revolução francesa, advoga a tese da vinculação total, apegada ao conceito de lei como expressão da vontade geral. A corrente contemporânea, influenciada pelo constitucionalismo da segunda metade do século XX, sustenta que a vinculação do administrador deveria ser à Constituição. Entre ambas, há quem busque conciliar a rigidez objetiva da primeira (que privilegia o papel dos órgãos de representação política como motor de criação do direito) com a flexibilidade principiológica da segunda (que pressupõe papel ativo do Judiciário na definição do sentido do texto constitucional).

Esse debate se expressa diariamente nos conflitos entre Administração e particulares. No contencioso regulatório, por exemplo, agências frequentemente invocam a Constituição como referencial normativo para a edição de regulamentos. E fazem-no muitas vezes com base em preceitos abertos, buscando um salvo-conduto hermenêutico para ampliar a sua atividade normativa e fiscalizatória. Esse teste voluntarioso das fronteiras do Direito convida os administrados à judicialização, sobretudo quando estão em jogo temas sensíveis como produção e comércio.

Essa contenda não se notabiliza pela paridade de armas, contudo. Segue intacta, por exemplo, a possibilidade de suspensão de liminares concedidas contra a Administração (Lei 8437/1992). Suspensão monocrática e com base em requisitos propositadamente fluidos, que expressam verdadeira Razão de Estado – e que, como tal, deveria ser invocada em situações excepcionais, e não como atalho recursal para cassar decisões desfavoráveis à Administração, como ocorre com frequência. Administrados não têm essa prerrogativa, ainda que liminares concedidas contra os seus interesses possam ter efeitos sérios sobre práticas comerciais estabelecidas no tempo, complexos arranjos contratuais, enfim.

A boa notícia é que os administrados se investiram nos anos recentes de novos fundamentos legais para conter o que por vezes se apresenta como ímpeto arbitrário da Administração, de quem hoje a lei exige um esforço argumentativo mais sofisticado para justificar a atividade normativa/executiva. Os exemplos mais notórios são a lei de liberdade econômica e as alterações à lei de introdução das normas do direito brasileiro.

Da primeira, destacam-se o princípio da subsidiariedade/excepcionalidade da intervenção estatal (art. 2º, III), entendido como a permissão da atuação do Estado apenas quando a iniciativa privada por insuficiente/inadequada; o compromisso da Administração com a clareza, objetividade e previsibilidade (art. 4º-A, II), voltado a reduzir incertezas e ambiguidades na linguagem oficial, que prejudicam a sua compreensão pelo administrado; e o dever de realização de análise de impacto previamente à edição ou alteração de atos normativos (art. 5º), que tem raiz no princípio da motivação dos atos da Administração, obrigando-a a justifica-los de forma racional e elaborada, justamente para facilitar o controle de legalidade pelo administrado.

Da segunda, emergiram o consequencialismo como parâmetro decisório obrigatório (arts. 20 e 21), com vistas a reduzir a abstração e a excessiva principiologia da Administração, sujeitando-a aos ditames do pragmatismo e da objetividade; o dever de adotar regimes de transição (art. 23), para criar condições para a observância, sem sobressalto, do novo regime normativo pelo administrado; e a proteção ao ato jurídico praticado sob regime normativo alterado supervenientemente (art. 24), que, aplicável às esferas administrativa, controladora e judicial, expressa o primado da irretroatividade, elemento básico de justiça.

Todos esses deveres impostos à Administração são corolários da segurança jurídica, cujos contornos já se encontram na Constituição. A positivação em lei tem sentidos simbólico e concreto. A simbologia está em reafirmar a feição liberal e não autoritária do Estado, cuja ação requer controle pelo Direito. O sentido concreto está em atribuir ao administrado o direito público subjetivo de exigir esse padrão de conduta da Administração, o que se mostra relevante neste momento em que o STF examina ações que questionam a constitucionalidade de regulações da Anvisa sobre temas como medicamentos, alimentos, tabaco, entre outros.

Opinião por Fernando Dantas M. Neustein

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