Em setembro de 2013, representando uma companhia seguradora, estive em audiência com a Senadora Kátia Abreu, então relatora da comissão temporária de modernização da Lei de Licitações. O tema principal daquele encontro foi a adoção do seguro garantia como forma de mitigar os prejuízos decorrentes da paralisação de obras públicas. Na época, um estudo da Confederação Nacional da Indústria (CNI) apontava quase 3 mil obras paradas no Brasil, nas quais já haviam sido investidos mais de R$ 10 bilhões. Com a eclosão da série de escândalos inaugurados pela Operação Lava Jato e seu efeito em cadeia sobre as contratações públicas, esse número deve estar absurdamente defasado em função do crescente envolvimento das construtoras na investigação.
A má gestão administrativa e financeira é responsável pela maior parte das obras públicas paralisadas, do próprio Poder Público (vícios de contratação e inadimplência) ou das empreiteiras, que ficam impossibilitadas de concluir os serviços para os quais foram contratadas. De uma forma ou de outra, os prejuízos impostos à população pela impossibilidade de se beneficiar desses empreendimentos justificam a atenção dada ao Seguro Garantia para conclusão das obras.
Bem por isso, a matéria se destaca na nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, sancionada no último dia 1º de abril sob o nº 14.133, que regerá o regime de contratação pública das entidades de direito público nacionais (Administração direta, autárquica e fundacional de todas as esferas - federal, estadual, distrital e municipal). Esse sistema não se aplica às empresas estatais (empresas públicas ou sociedades de economia mista), submetidas à Lei nº 13.303/2016.
De cara, chama atenção o fato da nova lei, a despeito de substituí-las, coexistir, pelos próximos 2 anos, com a legislação até então vigente: Lei de Licitações (8.666/93), a Lei do Pregão (10.520/02) e o Regime Diferenciado de Contratações Públicas - RDC (12.462/11).
Nesse período, caberá ao ente público contratante escolher qual legislação aplicar. Não é preciso muito esforço para imaginar as celeumas trazidas por essa miríade legislativa. De qualquer forma, a nova lei de licitações representa com importante marco nos negócios públicos, especialmente pela introdução da uniformização na aplicação das normas e da atuação dos agentes públicos envolvidos, diretrizes da segregação de funções e do planejamento, melhora nos critérios e julgamento e nos modos de disputa, entre mais de duas dezenas de pontos que tentam fortalecer o instrumento de contração pública, incluindo aí aspectos conectados a governança e averiguação de conformidade legal dos participantes de certames licitatórios.
Isso é resultado da congregação da experiência tida com procedimentos previstos em diplomas legais específicos e das extensas discussões sobre o tema, em especial nos Tribunais de Contas e na doutrina, incorporando ferramentas contra a ineficiência e a corrupção.
Não à toa, ficou imensa, com 194 artigos. De qualquer forma, é uma importante ferramenta para alcançar sua própria razão de ser: obter a proposta mais vantajosa aos interesses públicos.
A meu ver, contudo, a nova lei não é disruptiva, estando muito aquém do que se esperava depois de 30 anos sob a égide da lei antiga (8.666/93), a cujo modelo se apega, não o tendo descartado. De fato, longe de modificá-lo, a nova lei busca ajustá-lo, congregando, numa só, o sistema de normas, legais e infralegais, fragmentado que regem os negócios públicos. Para se ter uma ideia, em 2018 eram 283 normas, apenas na esfera federal.
Dentre as novidades trazidas pelo novo estatuto, me agradam:
i) governança com ferramenta de controle
A governança é adotada como ferramenta de combate à corrupção, criando mecanismos como atribuição de responsabilidade à alta administração do órgão ou entidade - que passa a ser obrigada a "implementar processos e estruturas, inclusive de gestão de riscos e controles internos, para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e os respectivos contratos" (art. 11, § único) -, alinhamento do planejamento ao plano de contratações anual na fase preparatória (art. 18), gestão de riscos por meio de matrizes contratuais específicas (arts. 22 e 103) e elaboração de plano de contratação anual (art. 174, §2º, I).
ii) criação da modalidade de licitação: diálogo competitivo e adoção do formato eletrônico como padrão
Além de extinguir as modalidades de tomada de preços e convite e o Regime Diferenciado de Contratação (RDC), a nova lei cria o "diálogo competitivo".
Inspirada na norma europeia, essa modalidade será utilizada para contratações complexas, cuja solução ainda não seja conhecida pela Administração, dependendo da colaboração do setor privado para identificar e desenvolver as alternativas possíveis.
As modalidades remanescentes (pregão, concorrência, concurso e leilão) adotarão o formato eletrônico como padrão, tal qual o pregão eletrônico, do qual também herdam o rito (começando pelo julgamento das propostas, terminando com a habilitação do licitante).
iii) gestão de contratos
A Lei 14.133/21 mudou, significativamente, a gestão e a fiscalização de contratos.
A vigência dos contratos - que, pela regra anterior, se limitava a 12 meses, ressalvadas as exceções para os serviços de prestação continuada (60 meses) e aqueles atrelados a projetos com metas estabelecidas no Plano Plurianual (PPA) - passará a 5 anos (art. 106) para serviços e fornecimentos contínuos, podendo ser prorrogados até 10 anos.
Em alguns casos, a contratação poderá ser celebrada por prazo ainda maiores, como 10 anos (art. 108) quando houver transferência de tecnologia de produtos estratégicos do SUS (art. 75, caput, XII), entre 10 e 35 anos quando a contratação gerar receita ou economia à Administração (art. 110).
Além do prazo de vigência, a lei prevê seguro-garantia para os contratos de obras e serviços de engenharia (art. 102), com a cláusula de retomada pela seguradora, ou seja, em caso de inadimplemento pelo contratado, a seguradora deverá assumir a execução da obra.
iv) dispensa de licitação
O regime instituído pela nova regra prevê mais de 30 hipóteses de dispensa de licitação (a Lei nº 8.666/1993 previa apenas 12), demonstrando a intenção de desburocratizar o processo de compra pública.
Poderia ter sido melhor
Não obstante esses pontos notáveis, a nova Lei de Licitações perdeu a oportunidade, por exemplo, de se desapegar do formalismo exacerbado, que assola os processos de contração, transformando os certames num jogo de erro e acerto.
Aliás, na prática, esse ponto deve ser sanado por meio de capacitação dos responsáveis pela condição dos processos licitatórios, que, algumas vezes por desconhecimento, outras por medo, procuram se abrigar no rigor do formalismo, afastando do processo fortes concorrentes, pela simples ausência de uma mera certidão, facilmente obtida pela internet.
A nova sistemática altera, na essência, o perfil do agora conhecido como agente de contratação, demandando o preparo para condução do processo ao seu principal objetivo: obter as melhores condições para a Administração Pública.
Afinal de contas, o interesse público demanda contratar o melhor serviço pelo menor preço, não contratar a empresa que fez um melhor do check-list burocrático.
*Lucas Miglioli, sócio de Miglioli e Bianchi Advogados