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Opinião|Machismo estrutural é o combustível para a violência contra a mulher


Por Carlos Alberto Vilhena e Caroline Maciel*

Em 1978, numa entrevista ao programa Vox Populi, o dramaturgo Nelson Rodrigues afirmou: Eu não digo que toda mulher gosta de apanhar. Só as normais. As neuróticas reagemi.

O celebrado autor pernambucano, cujas peças retratavam a hipocrisia moral da sociedade brasileira, sempre teve na polêmica a sua marca, mas poucas falas suas poderiam ser tão nocivas e conter tanta misoginia quanto a daquela entrevista.

Quase meio século depois, supõe-se que o cenário mudou. O Congresso aprovou a Lei Maria da Penha em 2006 e a Lei do Feminicídio em 2015. Medidas protetivas às mulheres vítimas de violência doméstica e o agravamento da pena por homicídio em função do gênero foram avanços legislativos importantes para o Brasil.

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Carlos Alberto Vilhena Foto: Leobark Rodrigues/Ministério Público Federal

Importantes, mas insuficientes.

No ano passado, houve 1.437 feminicídios no Brasilii. Isto é, a cada seis horas, uma mulher foi morta por pertencer ao gênero feminino. Pouco mais de 60% das vítimas eram negras e 70% foram mortas em casaiii.

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Houve também 245 mil casos de violência doméstica e quase 900 mil chamados ao 190, mais de 100 por horaiv. Perto de meio milhão de medidas protetivas de urgência foram concedidas no ano passadov.

Perto de 66 mil estupros contra mulheres foram cometidos em 2022. A maioria das vítimas tinha até 13 anos de idade e conhecia o agressorvi.

Destaque-se que todos esses números representaram um crescimento em relação às estatísticas do ano anterior.

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Por mais que existam vários fatores a influenciar a violência contra a mulher, pode-se colocar em evidência um elemento inegável, que colabora decisivamente para esses resultados: o machismo.

A mentalidade rodrigueana, de reduzir a mulher a uma forma de vida inferior, que deve suportar violências, segue perpassando nossa cultura. Embora a maioria das pessoas machistas não se atreva a repetir em rede nacional o que aquele escritor disse em 1978, elas seguem a mesma linha danosa de pensamento.

Um pensamento prevalente no lar, no trabalho, nos locais de lazer e em qualquer outro espaço partilhado por mulheres e homens. A diretriz patriarcal de subalternização da mulher é o combustível da violência dirigida à população feminina. Para grande parte dos homens, em graus variados e independentemente de formação, classe social ou raça, a submissão é obrigação da mulher, e qualquer “insubordinação” termina sendo punida econômica, profissional, psicológica ou fisicamente.

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O fato é que o cotidiano feminino é repleto de hostilidades. Há o assédio moral e sexual no trabalho; a constante vedação aos lugares de poder na sociedade; a desqualificação de sua capacidade de liderar; a imposição praticamente exclusiva dos deveres de cuidado com os filhos, com os companheiros, com atividades domésticas. A violência física é o ápice dessa espiral, por ameaçar a integridade de seu corpo, a sua saúde psicológica e frequentemente sua vida.

Por mais que se desenvolvam mecanismos para proteção das mulheres, elas só estarão de fato seguras quando não houver mais agressores. E enquanto não estivermos dispostos, todos e todas, a fazermos a correlação necessária entre o machismo e a violência contra as mulheres, pouco avançaremos. É necessário que passemos urgentemente por uma mudança cultural e comportamental que leve as pessoas – e principalmente os homens – a respeitarem as mulheres integralmente, enxergando-as como iguais.

Igualdade, aliás, explicitada no art. 5º, inciso I, de nossa Lei Maior: homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.

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Acrescente-se a isso o fato de o Brasil ser signatário da Agenda com 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU para 2030. O objetivo 5 desse acordo internacional consiste em alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas até o fim desta décadavii.

A equidade de gênero deveria, portanto, estar no topo das prioridades do Estado brasileiro. Trata-se do mínimo esperado de uma democracia cumpridora não apenas dos tratados internacionais de que é signatária, mas igualmente de sua própria lei fundamental. O baixo nível de igualdade entre os gêneros não deve ser encarado como um problema das mulheres, mas sim como um déficit da própria democracia.

Não obstante esse imperativo legal, os poderes da República ainda não priorizaram a diminuição do fosso que há entre homens e mulheres neste país.

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Das 594 cadeiras existentes no Congresso Nacional, apenas 104 são ocupadas por mulheres, ou seja, 17,5% do total vagas no Legislativo Federalviii, numa nação em que 51.5% da população é femininaix.

Para além da questão da subrepresentação, o Estado atua de forma contraditória na seara eleitoral. Por um lado, há a realização de campanhas para maior participação política feminina, e existe até mesmo uma emenda constitucional destinando 30% do fundo eleitoral para candidatasx. Contudo, os partidos políticos descumpriram essa cota na última eleição e, neste ano, votaram uma autoanistia também por meio de emenda à constituiçãoxi. Como esperar mais mulheres nas cadeiras do parlamento com esse tipo de subterfúgio?

No Judiciário, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça, apenas 38% da magistratura é formada por mulheresxii. Esse cenário se agrava ao observarmos a nossa mais alta corte: o Supremo Tribunal Federal, que antes contava com duas ministras entre seus 11 integrantes, terá a representação feminina reduzida à ministra Cármen Lúcia, visto que o Presidente da República apontou Flávio Dino para a vaga da recém-aposentada ministra Rosa Weber.

O quadro do Judiciário praticamente se reproduz no Ministério Público (MP), o qual dispunha de apenas 39,3% de mulheres no seu quadro de membros em 2018xiii, e que apenas em março deste ano lançou uma política nacional de incentivo à participação feminina na instituiçãoxiv.

Mesmo um governo dito progressista, como o atual, havia nomeado 11 ministras numa Esplanada com 37 pastas. Esse número se reduziu a nove, após algumas substituições promovidas pelo Executivo, menos de um quarto do total de ministériosxv.

Diz-se que o discurso convence e o exemplo arrasta. Como mudar uma cultura saturada pelo machismo e pela interdição à participação feminina no poder, se o próprio Estado não faz sua parte em promover essa mudança?

Torcer por um despertar espontâneo da sociedade quanto à questão de gênero, sem que haja uma iniciativa estatal para educar toda a coletividade (em especial os homens), é praticamente ter a certeza de que a mudança jamais ocorrerá.

Mantendo-se o quadro atual, as mulheres permanecerão sendo vítimas da violência dentro e fora de suas casas. Seguirão tendo de se preocupar com as roupas que vestem, com o modo como se sentam, com a maneira como falam e olham. Precisarão quase sempre esconder quem são, pois qualquer desconformidade com o modelo feminino estabelecido pelo patriarcado poderá ser um risco a sua integridade física e psicológica.

Sem campanhas educacionais, sem enfrentamento das questões de gênero desde o ensino fundamental, permaneceremos reforçando as diferenças culturais que oneram excessivamente as mulheres, inclusive no que diz respeito à criação de filhas e filhos, já que nossa sociedade libera os homens das tarefas de cuidado, mas demanda implacavelmente essas mesmas tarefas das mulheres.

Sem transformação da mentalidade e do comportamento masculinos, continuaremos a ouvir falar em coaches red pill, que ensinam homens a temer, repudiar e castigar as mulheres.

Permanecendo o presente estado das coisas, uma vítima de estupro poderá ser revitimizada em pleno tribunal por um advogado de defesa, com a leniência de um promotor e um juiz inertes à violência ali conduzida. Uma situação tão absurda, que ensejou a criação de uma lei para proteger vítimas de crimes sexuais durante julgamentosxvi.

Reitere-se: toda legislação protetiva deve ser celebrada, mas não há lei que supere em eficácia uma mudança cultural. Enquanto o machismo estiver imiscuído em cada engrenagem desta sociedade, jamais as mulheres estarão a salvo.

Nestes dezesseis dias de ativismo pelo fim da violência contra a mulher, pede-se, cobra-se, exige-se a cooperação entre sociedade e o Estado para viabilizar uma nação em que as mulheres possam viver sem medo. Uma cooperação que conte com forte participação dos homens e das mulheres.

Trata-se de um trabalho extremamente desafiador, mas, nas palavras da intelectual feminista norte-americana Angela Davis, você tem que agir como se fosse possível transformar radicalmente o mundo. E você tem que fazer isso o tempo todoxvii.

Então, mãos à obra.

*Carlos Alberto Vilhena, procurador da República e Procurador Federal dos Direitos do Cidadão

*Caroline Maciel, procuradora regional da República e coordenadora do Grupo de Trabalho Mulher, Criança, Adolescente e Idoso: Proteção de Direitos da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão

ihttps://www.youtube.com/watch?v=1gVdubzhz5U. Acesso em 21/11/2023.

iiSegundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, pág 128. Disponível em https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em 21/11/2023.

iiiSegundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, pág 16. Disponível em https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em 21/11/2023.

ivSegundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, pág 16. Disponível em https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em 21/11/2023.

vSegundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, pág 16. Disponível em https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em 21/11/2023.

viSegundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, pág 15. Disponível em https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em 21/11/2023.

viihttps://brasil.un.org/pt-br/sdgs/5. Acesso em 21/11/2023.

viiihttps://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2023/03/03/presenca-de-mulheres-no-congresso-brasileiro-e-inferior-a-media-mundial.htm. Acesso em 21/11/2023.

ixhttps://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18320-quantidade-de-homens-e-mulheres.html. Acesso em 21/11/2023.

xhttps://www2.camara.leg.br/legin/fed/emecon/2022/emendaconstitucional-117-5-abril-2022-792479-publicacaooriginal-164910-pl.html. Acesso em 21/11/2023.

xihttps://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2023/10/06/pgr-anistia-a-partidos-que-descumpriram-cotas-para-mulheres-e-negros-e-inadmissivel.htm. Acesso em 21/11/2023.

xiihttps://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/08/justica-em-numeros-2023.pdf. Pág. 81. Acesso em 21/11/2023.

xiiihttps://www.cnmp.mp.br/portal/images/20180622_CEN%C3%81RIOS_DE_G%C3%8ANERO_v.FINAL_2.pdf. Pág. 12. Acesso em 21/11/2023.

xivhttps://www.cnmp.mp.br/portal/todas-as-noticias/16288-instituida-pelo-cnmp-a-politica-nacional-de-incentivo-a-participacao-feminina-no-ministerio-publico. Acesso em 21/11/2023.

xvhttps://oglobo.globo.com/politica/noticia/2023/09/07/governo-lula-demite-duas-ministras-em-oito-meses-e-perde-recorde-de-mulheres-na-esplanada.ghtml. Acesso em 21/11/2023.

xvihttps://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/11/23/sancionada-lei-mariana-ferrer-que-protege-vitimas-de-crimes-sexuais-em-julgamentos. Acesso em 21/11/2023.

xviihttps://revistamarieclaire.globo.com/Feminismo/noticia/2022/09/angela-davis-frases-marcantes-da-intelectual-e-ativista.html. Acesso em 21/11/2023.

Em 1978, numa entrevista ao programa Vox Populi, o dramaturgo Nelson Rodrigues afirmou: Eu não digo que toda mulher gosta de apanhar. Só as normais. As neuróticas reagemi.

O celebrado autor pernambucano, cujas peças retratavam a hipocrisia moral da sociedade brasileira, sempre teve na polêmica a sua marca, mas poucas falas suas poderiam ser tão nocivas e conter tanta misoginia quanto a daquela entrevista.

Quase meio século depois, supõe-se que o cenário mudou. O Congresso aprovou a Lei Maria da Penha em 2006 e a Lei do Feminicídio em 2015. Medidas protetivas às mulheres vítimas de violência doméstica e o agravamento da pena por homicídio em função do gênero foram avanços legislativos importantes para o Brasil.

Carlos Alberto Vilhena Foto: Leobark Rodrigues/Ministério Público Federal

Importantes, mas insuficientes.

No ano passado, houve 1.437 feminicídios no Brasilii. Isto é, a cada seis horas, uma mulher foi morta por pertencer ao gênero feminino. Pouco mais de 60% das vítimas eram negras e 70% foram mortas em casaiii.

Houve também 245 mil casos de violência doméstica e quase 900 mil chamados ao 190, mais de 100 por horaiv. Perto de meio milhão de medidas protetivas de urgência foram concedidas no ano passadov.

Perto de 66 mil estupros contra mulheres foram cometidos em 2022. A maioria das vítimas tinha até 13 anos de idade e conhecia o agressorvi.

Destaque-se que todos esses números representaram um crescimento em relação às estatísticas do ano anterior.

Por mais que existam vários fatores a influenciar a violência contra a mulher, pode-se colocar em evidência um elemento inegável, que colabora decisivamente para esses resultados: o machismo.

A mentalidade rodrigueana, de reduzir a mulher a uma forma de vida inferior, que deve suportar violências, segue perpassando nossa cultura. Embora a maioria das pessoas machistas não se atreva a repetir em rede nacional o que aquele escritor disse em 1978, elas seguem a mesma linha danosa de pensamento.

Um pensamento prevalente no lar, no trabalho, nos locais de lazer e em qualquer outro espaço partilhado por mulheres e homens. A diretriz patriarcal de subalternização da mulher é o combustível da violência dirigida à população feminina. Para grande parte dos homens, em graus variados e independentemente de formação, classe social ou raça, a submissão é obrigação da mulher, e qualquer “insubordinação” termina sendo punida econômica, profissional, psicológica ou fisicamente.

O fato é que o cotidiano feminino é repleto de hostilidades. Há o assédio moral e sexual no trabalho; a constante vedação aos lugares de poder na sociedade; a desqualificação de sua capacidade de liderar; a imposição praticamente exclusiva dos deveres de cuidado com os filhos, com os companheiros, com atividades domésticas. A violência física é o ápice dessa espiral, por ameaçar a integridade de seu corpo, a sua saúde psicológica e frequentemente sua vida.

Por mais que se desenvolvam mecanismos para proteção das mulheres, elas só estarão de fato seguras quando não houver mais agressores. E enquanto não estivermos dispostos, todos e todas, a fazermos a correlação necessária entre o machismo e a violência contra as mulheres, pouco avançaremos. É necessário que passemos urgentemente por uma mudança cultural e comportamental que leve as pessoas – e principalmente os homens – a respeitarem as mulheres integralmente, enxergando-as como iguais.

Igualdade, aliás, explicitada no art. 5º, inciso I, de nossa Lei Maior: homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.

Acrescente-se a isso o fato de o Brasil ser signatário da Agenda com 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU para 2030. O objetivo 5 desse acordo internacional consiste em alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas até o fim desta décadavii.

A equidade de gênero deveria, portanto, estar no topo das prioridades do Estado brasileiro. Trata-se do mínimo esperado de uma democracia cumpridora não apenas dos tratados internacionais de que é signatária, mas igualmente de sua própria lei fundamental. O baixo nível de igualdade entre os gêneros não deve ser encarado como um problema das mulheres, mas sim como um déficit da própria democracia.

Não obstante esse imperativo legal, os poderes da República ainda não priorizaram a diminuição do fosso que há entre homens e mulheres neste país.

Das 594 cadeiras existentes no Congresso Nacional, apenas 104 são ocupadas por mulheres, ou seja, 17,5% do total vagas no Legislativo Federalviii, numa nação em que 51.5% da população é femininaix.

Para além da questão da subrepresentação, o Estado atua de forma contraditória na seara eleitoral. Por um lado, há a realização de campanhas para maior participação política feminina, e existe até mesmo uma emenda constitucional destinando 30% do fundo eleitoral para candidatasx. Contudo, os partidos políticos descumpriram essa cota na última eleição e, neste ano, votaram uma autoanistia também por meio de emenda à constituiçãoxi. Como esperar mais mulheres nas cadeiras do parlamento com esse tipo de subterfúgio?

No Judiciário, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça, apenas 38% da magistratura é formada por mulheresxii. Esse cenário se agrava ao observarmos a nossa mais alta corte: o Supremo Tribunal Federal, que antes contava com duas ministras entre seus 11 integrantes, terá a representação feminina reduzida à ministra Cármen Lúcia, visto que o Presidente da República apontou Flávio Dino para a vaga da recém-aposentada ministra Rosa Weber.

O quadro do Judiciário praticamente se reproduz no Ministério Público (MP), o qual dispunha de apenas 39,3% de mulheres no seu quadro de membros em 2018xiii, e que apenas em março deste ano lançou uma política nacional de incentivo à participação feminina na instituiçãoxiv.

Mesmo um governo dito progressista, como o atual, havia nomeado 11 ministras numa Esplanada com 37 pastas. Esse número se reduziu a nove, após algumas substituições promovidas pelo Executivo, menos de um quarto do total de ministériosxv.

Diz-se que o discurso convence e o exemplo arrasta. Como mudar uma cultura saturada pelo machismo e pela interdição à participação feminina no poder, se o próprio Estado não faz sua parte em promover essa mudança?

Torcer por um despertar espontâneo da sociedade quanto à questão de gênero, sem que haja uma iniciativa estatal para educar toda a coletividade (em especial os homens), é praticamente ter a certeza de que a mudança jamais ocorrerá.

Mantendo-se o quadro atual, as mulheres permanecerão sendo vítimas da violência dentro e fora de suas casas. Seguirão tendo de se preocupar com as roupas que vestem, com o modo como se sentam, com a maneira como falam e olham. Precisarão quase sempre esconder quem são, pois qualquer desconformidade com o modelo feminino estabelecido pelo patriarcado poderá ser um risco a sua integridade física e psicológica.

Sem campanhas educacionais, sem enfrentamento das questões de gênero desde o ensino fundamental, permaneceremos reforçando as diferenças culturais que oneram excessivamente as mulheres, inclusive no que diz respeito à criação de filhas e filhos, já que nossa sociedade libera os homens das tarefas de cuidado, mas demanda implacavelmente essas mesmas tarefas das mulheres.

Sem transformação da mentalidade e do comportamento masculinos, continuaremos a ouvir falar em coaches red pill, que ensinam homens a temer, repudiar e castigar as mulheres.

Permanecendo o presente estado das coisas, uma vítima de estupro poderá ser revitimizada em pleno tribunal por um advogado de defesa, com a leniência de um promotor e um juiz inertes à violência ali conduzida. Uma situação tão absurda, que ensejou a criação de uma lei para proteger vítimas de crimes sexuais durante julgamentosxvi.

Reitere-se: toda legislação protetiva deve ser celebrada, mas não há lei que supere em eficácia uma mudança cultural. Enquanto o machismo estiver imiscuído em cada engrenagem desta sociedade, jamais as mulheres estarão a salvo.

Nestes dezesseis dias de ativismo pelo fim da violência contra a mulher, pede-se, cobra-se, exige-se a cooperação entre sociedade e o Estado para viabilizar uma nação em que as mulheres possam viver sem medo. Uma cooperação que conte com forte participação dos homens e das mulheres.

Trata-se de um trabalho extremamente desafiador, mas, nas palavras da intelectual feminista norte-americana Angela Davis, você tem que agir como se fosse possível transformar radicalmente o mundo. E você tem que fazer isso o tempo todoxvii.

Então, mãos à obra.

*Carlos Alberto Vilhena, procurador da República e Procurador Federal dos Direitos do Cidadão

*Caroline Maciel, procuradora regional da República e coordenadora do Grupo de Trabalho Mulher, Criança, Adolescente e Idoso: Proteção de Direitos da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão

ihttps://www.youtube.com/watch?v=1gVdubzhz5U. Acesso em 21/11/2023.

iiSegundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, pág 128. Disponível em https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em 21/11/2023.

iiiSegundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, pág 16. Disponível em https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em 21/11/2023.

ivSegundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, pág 16. Disponível em https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em 21/11/2023.

vSegundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, pág 16. Disponível em https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em 21/11/2023.

viSegundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, pág 15. Disponível em https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em 21/11/2023.

viihttps://brasil.un.org/pt-br/sdgs/5. Acesso em 21/11/2023.

viiihttps://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2023/03/03/presenca-de-mulheres-no-congresso-brasileiro-e-inferior-a-media-mundial.htm. Acesso em 21/11/2023.

ixhttps://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18320-quantidade-de-homens-e-mulheres.html. Acesso em 21/11/2023.

xhttps://www2.camara.leg.br/legin/fed/emecon/2022/emendaconstitucional-117-5-abril-2022-792479-publicacaooriginal-164910-pl.html. Acesso em 21/11/2023.

xihttps://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2023/10/06/pgr-anistia-a-partidos-que-descumpriram-cotas-para-mulheres-e-negros-e-inadmissivel.htm. Acesso em 21/11/2023.

xiihttps://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/08/justica-em-numeros-2023.pdf. Pág. 81. Acesso em 21/11/2023.

xiiihttps://www.cnmp.mp.br/portal/images/20180622_CEN%C3%81RIOS_DE_G%C3%8ANERO_v.FINAL_2.pdf. Pág. 12. Acesso em 21/11/2023.

xivhttps://www.cnmp.mp.br/portal/todas-as-noticias/16288-instituida-pelo-cnmp-a-politica-nacional-de-incentivo-a-participacao-feminina-no-ministerio-publico. Acesso em 21/11/2023.

xvhttps://oglobo.globo.com/politica/noticia/2023/09/07/governo-lula-demite-duas-ministras-em-oito-meses-e-perde-recorde-de-mulheres-na-esplanada.ghtml. Acesso em 21/11/2023.

xvihttps://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/11/23/sancionada-lei-mariana-ferrer-que-protege-vitimas-de-crimes-sexuais-em-julgamentos. Acesso em 21/11/2023.

xviihttps://revistamarieclaire.globo.com/Feminismo/noticia/2022/09/angela-davis-frases-marcantes-da-intelectual-e-ativista.html. Acesso em 21/11/2023.

Em 1978, numa entrevista ao programa Vox Populi, o dramaturgo Nelson Rodrigues afirmou: Eu não digo que toda mulher gosta de apanhar. Só as normais. As neuróticas reagemi.

O celebrado autor pernambucano, cujas peças retratavam a hipocrisia moral da sociedade brasileira, sempre teve na polêmica a sua marca, mas poucas falas suas poderiam ser tão nocivas e conter tanta misoginia quanto a daquela entrevista.

Quase meio século depois, supõe-se que o cenário mudou. O Congresso aprovou a Lei Maria da Penha em 2006 e a Lei do Feminicídio em 2015. Medidas protetivas às mulheres vítimas de violência doméstica e o agravamento da pena por homicídio em função do gênero foram avanços legislativos importantes para o Brasil.

Carlos Alberto Vilhena Foto: Leobark Rodrigues/Ministério Público Federal

Importantes, mas insuficientes.

No ano passado, houve 1.437 feminicídios no Brasilii. Isto é, a cada seis horas, uma mulher foi morta por pertencer ao gênero feminino. Pouco mais de 60% das vítimas eram negras e 70% foram mortas em casaiii.

Houve também 245 mil casos de violência doméstica e quase 900 mil chamados ao 190, mais de 100 por horaiv. Perto de meio milhão de medidas protetivas de urgência foram concedidas no ano passadov.

Perto de 66 mil estupros contra mulheres foram cometidos em 2022. A maioria das vítimas tinha até 13 anos de idade e conhecia o agressorvi.

Destaque-se que todos esses números representaram um crescimento em relação às estatísticas do ano anterior.

Por mais que existam vários fatores a influenciar a violência contra a mulher, pode-se colocar em evidência um elemento inegável, que colabora decisivamente para esses resultados: o machismo.

A mentalidade rodrigueana, de reduzir a mulher a uma forma de vida inferior, que deve suportar violências, segue perpassando nossa cultura. Embora a maioria das pessoas machistas não se atreva a repetir em rede nacional o que aquele escritor disse em 1978, elas seguem a mesma linha danosa de pensamento.

Um pensamento prevalente no lar, no trabalho, nos locais de lazer e em qualquer outro espaço partilhado por mulheres e homens. A diretriz patriarcal de subalternização da mulher é o combustível da violência dirigida à população feminina. Para grande parte dos homens, em graus variados e independentemente de formação, classe social ou raça, a submissão é obrigação da mulher, e qualquer “insubordinação” termina sendo punida econômica, profissional, psicológica ou fisicamente.

O fato é que o cotidiano feminino é repleto de hostilidades. Há o assédio moral e sexual no trabalho; a constante vedação aos lugares de poder na sociedade; a desqualificação de sua capacidade de liderar; a imposição praticamente exclusiva dos deveres de cuidado com os filhos, com os companheiros, com atividades domésticas. A violência física é o ápice dessa espiral, por ameaçar a integridade de seu corpo, a sua saúde psicológica e frequentemente sua vida.

Por mais que se desenvolvam mecanismos para proteção das mulheres, elas só estarão de fato seguras quando não houver mais agressores. E enquanto não estivermos dispostos, todos e todas, a fazermos a correlação necessária entre o machismo e a violência contra as mulheres, pouco avançaremos. É necessário que passemos urgentemente por uma mudança cultural e comportamental que leve as pessoas – e principalmente os homens – a respeitarem as mulheres integralmente, enxergando-as como iguais.

Igualdade, aliás, explicitada no art. 5º, inciso I, de nossa Lei Maior: homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.

Acrescente-se a isso o fato de o Brasil ser signatário da Agenda com 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU para 2030. O objetivo 5 desse acordo internacional consiste em alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas até o fim desta décadavii.

A equidade de gênero deveria, portanto, estar no topo das prioridades do Estado brasileiro. Trata-se do mínimo esperado de uma democracia cumpridora não apenas dos tratados internacionais de que é signatária, mas igualmente de sua própria lei fundamental. O baixo nível de igualdade entre os gêneros não deve ser encarado como um problema das mulheres, mas sim como um déficit da própria democracia.

Não obstante esse imperativo legal, os poderes da República ainda não priorizaram a diminuição do fosso que há entre homens e mulheres neste país.

Das 594 cadeiras existentes no Congresso Nacional, apenas 104 são ocupadas por mulheres, ou seja, 17,5% do total vagas no Legislativo Federalviii, numa nação em que 51.5% da população é femininaix.

Para além da questão da subrepresentação, o Estado atua de forma contraditória na seara eleitoral. Por um lado, há a realização de campanhas para maior participação política feminina, e existe até mesmo uma emenda constitucional destinando 30% do fundo eleitoral para candidatasx. Contudo, os partidos políticos descumpriram essa cota na última eleição e, neste ano, votaram uma autoanistia também por meio de emenda à constituiçãoxi. Como esperar mais mulheres nas cadeiras do parlamento com esse tipo de subterfúgio?

No Judiciário, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça, apenas 38% da magistratura é formada por mulheresxii. Esse cenário se agrava ao observarmos a nossa mais alta corte: o Supremo Tribunal Federal, que antes contava com duas ministras entre seus 11 integrantes, terá a representação feminina reduzida à ministra Cármen Lúcia, visto que o Presidente da República apontou Flávio Dino para a vaga da recém-aposentada ministra Rosa Weber.

O quadro do Judiciário praticamente se reproduz no Ministério Público (MP), o qual dispunha de apenas 39,3% de mulheres no seu quadro de membros em 2018xiii, e que apenas em março deste ano lançou uma política nacional de incentivo à participação feminina na instituiçãoxiv.

Mesmo um governo dito progressista, como o atual, havia nomeado 11 ministras numa Esplanada com 37 pastas. Esse número se reduziu a nove, após algumas substituições promovidas pelo Executivo, menos de um quarto do total de ministériosxv.

Diz-se que o discurso convence e o exemplo arrasta. Como mudar uma cultura saturada pelo machismo e pela interdição à participação feminina no poder, se o próprio Estado não faz sua parte em promover essa mudança?

Torcer por um despertar espontâneo da sociedade quanto à questão de gênero, sem que haja uma iniciativa estatal para educar toda a coletividade (em especial os homens), é praticamente ter a certeza de que a mudança jamais ocorrerá.

Mantendo-se o quadro atual, as mulheres permanecerão sendo vítimas da violência dentro e fora de suas casas. Seguirão tendo de se preocupar com as roupas que vestem, com o modo como se sentam, com a maneira como falam e olham. Precisarão quase sempre esconder quem são, pois qualquer desconformidade com o modelo feminino estabelecido pelo patriarcado poderá ser um risco a sua integridade física e psicológica.

Sem campanhas educacionais, sem enfrentamento das questões de gênero desde o ensino fundamental, permaneceremos reforçando as diferenças culturais que oneram excessivamente as mulheres, inclusive no que diz respeito à criação de filhas e filhos, já que nossa sociedade libera os homens das tarefas de cuidado, mas demanda implacavelmente essas mesmas tarefas das mulheres.

Sem transformação da mentalidade e do comportamento masculinos, continuaremos a ouvir falar em coaches red pill, que ensinam homens a temer, repudiar e castigar as mulheres.

Permanecendo o presente estado das coisas, uma vítima de estupro poderá ser revitimizada em pleno tribunal por um advogado de defesa, com a leniência de um promotor e um juiz inertes à violência ali conduzida. Uma situação tão absurda, que ensejou a criação de uma lei para proteger vítimas de crimes sexuais durante julgamentosxvi.

Reitere-se: toda legislação protetiva deve ser celebrada, mas não há lei que supere em eficácia uma mudança cultural. Enquanto o machismo estiver imiscuído em cada engrenagem desta sociedade, jamais as mulheres estarão a salvo.

Nestes dezesseis dias de ativismo pelo fim da violência contra a mulher, pede-se, cobra-se, exige-se a cooperação entre sociedade e o Estado para viabilizar uma nação em que as mulheres possam viver sem medo. Uma cooperação que conte com forte participação dos homens e das mulheres.

Trata-se de um trabalho extremamente desafiador, mas, nas palavras da intelectual feminista norte-americana Angela Davis, você tem que agir como se fosse possível transformar radicalmente o mundo. E você tem que fazer isso o tempo todoxvii.

Então, mãos à obra.

*Carlos Alberto Vilhena, procurador da República e Procurador Federal dos Direitos do Cidadão

*Caroline Maciel, procuradora regional da República e coordenadora do Grupo de Trabalho Mulher, Criança, Adolescente e Idoso: Proteção de Direitos da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão

ihttps://www.youtube.com/watch?v=1gVdubzhz5U. Acesso em 21/11/2023.

iiSegundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, pág 128. Disponível em https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em 21/11/2023.

iiiSegundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, pág 16. Disponível em https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em 21/11/2023.

ivSegundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, pág 16. Disponível em https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em 21/11/2023.

vSegundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, pág 16. Disponível em https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em 21/11/2023.

viSegundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, pág 15. Disponível em https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em 21/11/2023.

viihttps://brasil.un.org/pt-br/sdgs/5. Acesso em 21/11/2023.

viiihttps://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2023/03/03/presenca-de-mulheres-no-congresso-brasileiro-e-inferior-a-media-mundial.htm. Acesso em 21/11/2023.

ixhttps://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18320-quantidade-de-homens-e-mulheres.html. Acesso em 21/11/2023.

xhttps://www2.camara.leg.br/legin/fed/emecon/2022/emendaconstitucional-117-5-abril-2022-792479-publicacaooriginal-164910-pl.html. Acesso em 21/11/2023.

xihttps://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2023/10/06/pgr-anistia-a-partidos-que-descumpriram-cotas-para-mulheres-e-negros-e-inadmissivel.htm. Acesso em 21/11/2023.

xiihttps://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/08/justica-em-numeros-2023.pdf. Pág. 81. Acesso em 21/11/2023.

xiiihttps://www.cnmp.mp.br/portal/images/20180622_CEN%C3%81RIOS_DE_G%C3%8ANERO_v.FINAL_2.pdf. Pág. 12. Acesso em 21/11/2023.

xivhttps://www.cnmp.mp.br/portal/todas-as-noticias/16288-instituida-pelo-cnmp-a-politica-nacional-de-incentivo-a-participacao-feminina-no-ministerio-publico. Acesso em 21/11/2023.

xvhttps://oglobo.globo.com/politica/noticia/2023/09/07/governo-lula-demite-duas-ministras-em-oito-meses-e-perde-recorde-de-mulheres-na-esplanada.ghtml. Acesso em 21/11/2023.

xvihttps://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/11/23/sancionada-lei-mariana-ferrer-que-protege-vitimas-de-crimes-sexuais-em-julgamentos. Acesso em 21/11/2023.

xviihttps://revistamarieclaire.globo.com/Feminismo/noticia/2022/09/angela-davis-frases-marcantes-da-intelectual-e-ativista.html. Acesso em 21/11/2023.

Opinião por Carlos Alberto Vilhena e Caroline Maciel*

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