O diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo Floriano de Azevedo Marques disse que a aprovação do polêmico PL 7448 é um 'marco' para a segurança jurídica. Em sua avaliação, 'não tem qualquer procedência' a discussão de que a Lava Jato poderia ser de alguma forma prejudicada.
Em entrevista ao Estadão, Azevedo Marques, professor titular do Departamento de Direito do Estado nas Arcadas do Largo São Francisco, explicou os pormenores do PL 7448, sancionado pelo presidente Michel Temer na quarta-feira, 25, com vetos a alguns trechos.
O professor destacou o cenário a partir de agora. "Começa a verdadeira construção e a percepção de quão importante essa lei vai ser para o País", diz.
Azevedo Marques elaborou a peça apresentada pelo senador Antonio Anastasia (PSDB) em conjunto com o professor da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, Carlos Ari Sundfeld.
Ele acredita que as críticas do Ministério Público Federal, apesar de 'válidas', não se sustentam. "Há uma preocupação importante contra iniciativas que tolham o processo de apuração que está sendo vivido no País", diz o professor.
ESTADÃO: Qual a importância da sanção do projeto pelo presidente?
PROFESSOR FLORIANO DE AZEVEDO MARQUES: A importância é muito grande, eu diria para você que o país deu um passo importante no sentido de ter um cenário de segurança jurídica, que confere mais segurança jurídica ao cidadão. O projeto de lei estabelece parâmetros e critérios utilizados em alguns cenários, mas que, em um contexto geral, nem sempre são respeitados até pelo tamanho do País. Com a sanção, ainda que com os vetos, avançamos significativamente no sentido de ter um marco legal que confere e concretiza a segurança jurídica.
ESTADÃO: Quais eram as principais dificuldades que a Lei abrange a partir de agora?
AZEVEDO MARQUES: O PL era de uma lei que baliza a aplicação de outras, que dá critérios para aplicação. Ele não tem conteúdo concreto, então o grande desafio, que começa a partir de agora, é o da concretização dos modos de interpretar esta lei. Começamos a estabelecer quais são os critérios que a jurisprudência vai definir para delimitar a aplicação desta Lei. Ela foi muito criticada por causa do conteúdo mais aberto, abstrato. Quem vai dar concretude quanto ao que é a análise de consequências, de efeitos suficientes, são as decisões judiciais. Eu diria pra você que essa lei reforça o papel do judiciário como a instância dos poderes do estado que define como as leis são aplicadas.
ESTADÃO: O presidente vetou trechos do PL. O que muda do texto proposto para o que foi sancionado?
AZEVEDO MARQUES: Como participante da concepção do projeto, estou convicto de que todos os dispositivos do projeto aprovado no Congresso deveriam ser sancionados, mas posso dizer que os vetos não alteraram a espinha dorsal da lei. Podemos dividir em algumas questões. A primeira, que acho que foi o maior equívoco no veto, foi o artigo 25, muito debatido porque definia a possibilidade de a administração pública mover uma ação judicial, se antecipando a declaração de legalidade do ato.
ESTADÃO: Pode dar um exemplo?
AZEVEDO MARQUES: Uma licença ambiental editada regularmente pelos órgãos ambientais em um projeto muito polêmico, com divergências entre órgãos e ambientalistas. Essa ação permitia que o poder público fosse ao judiciário pedindo que o juiz definisse se aquela licença é válida ou não. Qual é o prejuízo do veto? Ele tira o instrumento para estabilizar as relações sociais. Ele não impede que nenhum órgão no estado atue, mas como no nosso sistema o judiciário é quem dá a última palavra, tanto melhor que essa última palavra seja dada logo, para que você possa avançar. Esse veto eu acho que foi bastante prejudicial.
ESTADÃO: Considera algum outro prejudicial?
AZEVEDO MARQUES: Outro veto que entendo como prejudicial é aquele que permitia que os órgãos de advocacia pública defendam os agentes públicos de boa fé quando questionados por seus atos. O que isso significa? Hoje, qualquer servidor público que pratique um ato pode ser réu num processo de alguma instância que questione a legalidade do seu ato. Nem todos os servidores que são processados praticaram ilegalidades e vão ser condenados, mas um servidor que não pratique ilegalidade, e que não obstante é processado, tem que custear ele próprio a sua defesa. Os parágrafos do artigo 28 permitiam que a advocacia do Estado defendesse seus servidores nos atos praticados por eles no exercício do mandato e, quando condenado, tem que devolver, pagar ao estado o valor da sua defesa. Esse foi o segundo veto que eu acho que foi bastante ruim para o contexto da lei. No mais, foram vetados artigos ou parágrafos que tratavam de detalhes que, ao ver do presidente da República, da Advocacia-Geral da União, criavam ônus excessivos, formalismos excessivos para administração pública e, por isso, foram vetados, mas na essência o projeto foi sancionado.
ESTADÃO: Uma crítica é que ao longo do processo o projeto teria sido aprovado no Congresso sem passar pelo Plenário. O sr. acha que ele foi pouco discutido?
AZEVEDO MARQUES: A sistemática de aprovação nas comissões é absolutamente comum no Congresso. Ao longo de toda a tramitação, cabe aos deputados solicitar que o projeto vá a Plenário. Qualquer ator, muito mais ainda os críticos, Ministério Público Federal, Tribunal de Contas da União, acompanha a tramitação legislativa. Este projeto integrava a agenda de prioridades legislativas do Conselho Nacional do Ministério Público para 2018, portanto não era um projeto secreto. Era um projeto conhecido que integrava a agenda legislativa do CNMP, inclusive com recomendação de aprovação. Não tramitou na calada da noite. Agora, se nenhum senador e um número muito pequeno de deputados quis levar esse tema para o Plenário, por achar que ele não tinha relevância, isso não pode condenar o projeto a ser tratado como um projeto secreto, clandestino.
ESTADÃO: O projeto recebeu críticas da PGR, MPF e do TCU. Por que essas críticas aconteceram antes da sanção do presidente?
AZEVEDO MARQUES: Acho que por dois motivos. A primeira razão é que há uma tensão muito válida contra iniciativas que tolham o processo de apuração que está sendo vivido no país. Claro que existe sempre uma precaução contra projetos que queiram retirar poderes, impedir investigações, tolher a atuação dos órgãos de controle. Ao longo do debate surgiram manifestações favoráveis, seja da comunidade jurídica, do meio econômico, de pessoas importantes e insuspeitas, como o ministro Bresser Pereira, várias pessoas que estão longe de serem defensores da impunidade. A segunda preocupação é que eu acho que toda a esfera do Estado, que assume uma certa prerrogativa, um certo protagonismo, legitimamente resiste quando se quer colocar algum parâmetro na sua atuação.
ESTADÃO: Há precedentes?
AZEVEDO MARQUES: Foi a mesma reação que houve por esses órgãos quando da criação do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público. Diziam que querem criar conselhos para manietar a atuação do Ministério Público, do Judiciário, e a prática demonstrou que não. Eu digo sempre que quem zela pelo controle não pode ter medo do controle. Acho que o debate foi muito importante inclusive para dispersar preocupações que se revelaram infundadas.
ESTADÃO: A maior preocupação foi que o projeto poderia de alguma forma dificultar o futuro da Lava Jato
AZEVEDO MARQUES: Vou dar um exemplo de como isso não é verdadeiro. No debate, o artigo 28 foi muito torpedeado porque se dizia que o servidor não pode ser punido por diferença de interpretação dos órgãos de controle. Esse artigo vai exatamente na esteira da críticas dos atores da Lava Jato contra o chamado crime de hermenêutica, na lei do abuso de poder. Na mesma linha, eu não posso ser processado pelo simples fato de praticar uma interpretação diferente da interpretação dos órgãos de controle. Eu não vejo em que esse projeto possa interromper a Lava Jato.
ESTADÃO: O que destaca no texto?
AZEVEDO MARQUES: Em nenhum momento você teve qualquer tipo de relação entre os artigos do PL e a Lava Jato, que não pode se tornar uma entidade mítica que as pessoas citam sem demonstrar a razão. O PL exige que as decisões tenham uma fundamentação, imponham as consequências. Ora, o que se está demonstrando é que as condenações da Lava Jato são muito adequadas nesse sentido. Eu não cogitaria que um juiz da Lava Jato desse uma condenação penal sem fundamentação, então eu não vejo realmente qualquer procedência nessa afirmação.