Economistas e imprensa especializada já se manifestaram sobre o enorme desafio que tem o governo em cumprir o arcabouço fiscal. Com previsão de receita audaciosa, o governo aposta no deslinde de questões judiciais, na aprovação de projetos de lei afetos ao tema e, principalmente, na eficiência da máquina arrecadadora, como já declarou publicamente por diversas vezes o ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Todo o empenho do governo para substituir o fracassado regime fiscal do “teto de gastos” por novo modelo que permita a variação das despesas, conforme o crescimento das receitas, depende agora, justamente, do ingresso de receitas nos cofres públicos.
O governo espera um resultado extra de arrecadação de 168 bilhões de reais e sabe que não alcançará tal resultado apenas com alterações legais ou decisões judiciais, mas depende, mais do nunca, de uma Receita Federal funcionando a plenos pulmões, principalmente no preocupante cenário atual: a arrecadação apresentou a pior sequência desde a pandemia. Se a equipe econômica agir com prudência, seguirá um antigo provérbio chinês: “Se quiser derrubar uma árvore na metade do tempo, passe o dobro do tempo amolando o machado”.
Em outras palavras, para se atingir o esperado incremento de arrecadação, é imperioso, entre outras medidas, investir na Receita Federal e em seu quadro funcional. O bom contribuinte precisa ser orientado a quitar suas obrigações de forma mais simples e menos onerosa, ao mesmo tempo em que se devem intensificar meios para aumentar a percepção de risco para os sonegadores e devedores contumazes, sob pena de as medidas de conformidade representarem recuo na arrecadação.
Nesse cenário, é forçoso alertar que esse esforço arrecadatório a nível federal corre sério risco, uma vez que o corpo funcional, responsável por traduzir em recursos as expectativas da equipe econômica, está desmotivado, em modo arrastado. Essa atmosfera de desânimo tem uma razão: o acordo com os auditores-fiscais continua pendente de solução. Desde 2016, ainda no governo Dilma, os auditores da Receita Federal assinaram um acordo e concordaram em alterar sua forma de remuneração, replicando o formato adotado pela quase totalidade dos fiscos estaduais e boa parte dos países desenvolvidos, o que a Lei 13.464/17 chamou de Programa de Produtividade da RFB.
Antes mesmo de o ministro Haddad assumir a pasta, ele declarara publicamente ciência do acordo e que iria cumpri-lo. Para tanto, faltava tão somente editar um decreto regulamentador que traduzisse o acordado em 2016. Em junho de 2023, o decreto foi publicado, mas com a inserção de um parágrafo que, na prática, rasga o Programa de Produtividade da RFB, ao desvincular seus efeitos remuneratórios dos resultados alcançados.
Em linha com o parágrafo alterado, o Executivo encaminhou, em 31 de agosto, o projeto de lei orçamentária ao Congresso com recursos que não garantem o cumprimento do acordo, contrariando o compromisso do ministro Haddad. Não foram apenas promessas verbais do ministro, pois ele assinara uma Portaria em julho de 2023, determinando a inclusão dos valores necessários ao integral cumprimento do acordo como despesas obrigatórias na proposta de orçamento do ministério da Fazenda, o que certamente aumentou a expectativa do corpo funcional com a concretização do acordo de 2016. No entanto, a nova quebra de compromisso gerou um clima de desalento e revolta diante de todas as sinalizações que vinham sendo dadas. E todos sabemos que revolta e desalento nas equipes de trabalho não combinam com cumprimento de metas.
Os ministros e secretários que avalizaram as modificações do decreto, inviabilizando o cumprimento do acordo, não perceberam, ou fingiram não entender, que sem a diligência extraordinária da Receita Federal, as ousadas metas arrecadatórias tornam-se objetos quase que inefáveis, induzindo o governo - pelas regras aprovadas do arcabouço fiscal -, a conviver erraticamente com cortes de despesas e contingenciamentos, não muito diferente do que ocorria na gestão de Paulo Guedes. Em um cenário de incertezas, a crença dos agentes econômicos na capacidade do governo de zerar o déficit tende naturalmente a se deteriorar, com posterior desgaste político no Congresso Nacional e desdobramentos sobre a governabilidade.
O presidente Lula surge nesse momento como ator fundamental, por pelo menos três razões, para resolver esse impasse. A primeira é que somente ele tem a competência para retificar o Decreto 11.545/2023, ajustando o PLOA para cumprimento do acordo feito por Dilma, em 2016. A segunda é mandar ao Parlamento e ao mercado sinais inequívocos de que está fazendo todo o esforço para cumprir os audaciosos objetivos. Por fim, mas não menos importante, por se tratar de uma oportunidade de o presidente provar que suas falas estão em sintonia com seus atos. Em viagem que fez em maio deste ano ao Reino Unido, Lula declarou: “Você não pode prometer e não cumprir. A coisa mais barata e eficaz é a gente fazer aquilo que a gente promete”.
*Mauro Silva, auditor fiscal da Receita Federal e presidente da Unafisco Nacional
*George Souza, auditor fiscal da Receita Federal e diretor de Defesa Profissional e Assuntos Técnicos da Unafisco Nacional