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O balanço da transparência partidário-eleitoral


Por Marcelo Issa
Marcelo Issa. Foto: Assessoria de Imprensa / Divulgação

O presidente Jair Bolsonaro sancionou ontem, com alguns vetos, a Lei 13.877, de 2019, que altera regras de funcionamento dos partidos políticos e de organização das eleições.

Não fosse o alerta e a atuação do Transparência Partidária, com apoio de muitas outras entidades preocupadas com o amadurecimento da democracia brasileira, possivelmente estaríamos hoje diante do maior retrocesso das últimas décadas para transparência e integridade dos partidos políticos e das campanhas eleitorais.

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Com nossa mobilização e o apoio da opinião pública, evitamos uma drástica diminuição da transparência das contas dos partidos e do acompanhamento das contas de campanha. Detivemos a autorização para usar recursos públicos para pagar a defesa de políticos acusados de corrupção e para custear ações judiciais de "interesse indireto" do partido. Impedimos que penas já aplicadas fossem anistiadas e que pudessem ser pagas com recursos públicos. Afastamos a exigência de conduta dolosa para multar os partidos. Mantivemos o limite de 30% das emendas de bancada para o Fundo Eleitoral, barramos a abertura de brecha para incursos na Lei da Ficha Limpa e evitamos que os partidos pudessem pagar passagens aéreas com dinheiro público para qualquer pessoa.

É preciso deixar bem claro, contudo, que ao contrário do que alguns parlamentares alegaram, a realidade é que não houve espaço para participação social nesse processo legislativo tão importante. O texto aprovado no dia 03 de setembro, apareceu poucas horas antes de ser votado. Era um substitutivo do deputado Wilson Santiago (PTB/PB), que nada tinha a ver com a versão original do Projeto de Lei 11.021/2018. Não é verdade, portanto, que a matéria esteve em debate por mais de dez meses na Câmara dos Deputados.

O fato é que só depois que o projeto saiu da Câmara dos Deputados é que pudemos nos debruçar sobre o novo conteúdo. Produzimos uma análise das propostas, um resumo dos retrocessos, bem com uma carta aberta para ser entregue ao presidente do Senado. É importante salientar que todos nossos apontamentos sempre se restringiram a regras e mecanismos de transparência e combate à corrupção.

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No começo da tarde do dia 11 de setembro, uma quarta-feira, consultamos a página do Senado na internet e não encontramos o PL. Em seguida, entramos em contato por telefone com a Mesa Diretora, que nos informou que a proposta sequer havia sido numerada e que, por isso, não constava do sistema de acompanhamento eletrônico.

Exatamente às 17h daquele mesmo dia, o Transparência Partidária reuniu organizações da sociedade civil com expertise no tema para debater a minuta da carta conjunta. Enquanto discutíamos o tema, descobrimos às 18h que, mesmo fora da pauta, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM/AP), queria votar o projeto naquele mesmo dia.

Até aquele momento, apenas Transparência Partidária e Contas Abertas haviam assinado a carta. A Transparência Brasil foi a próxima e outras organizações seguiram. Divulgamos o documento entre mais organizações, que aderiram à iniciativa e, assim, ampliamos os apoios. A carta, juntamente com o resumo analítico dos retrocessos, foi distribuída amplamente no plenário do Senado.

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Ao analisar os documentos, alguns senadores começaram discursos e articulações para retirar o projeto da pauta e adiar a votação. Diziam que sequer tinham lido o projeto, citavam as entidades signatárias e o número de senadores pedindo mais tempo foi aumentando.

O senador Weverton Rocha (PDT/MA), relator da matéria, entretanto, proferiu parecer favorável, argumentando que não havia nada de grave na proposta e que o projeto precisava ser aprovado antes do dia 04 de outubro para valer para as eleições do ano que vem. Mas a mobilização da sociedade civil ajudou a reverter a situação. Até que, pouco antes das 21h, a matéria foi retirada de pauta e a votação ficou para a semana seguinte.

A imprensa passou a dar amplo destaque ao assunto e no dia 17, terça-feira, representantes das entidades foram a Brasília para acompanhar a votação no Senado. Um acordo entre os líderes partidários decidiu rejeitar praticamente todo o projeto, devolvendo a matéria para a Câmara.

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Alguns senadores e todos os especialistas em regimento que consultamos afirmavam que a Câmara somente poderia referendar a decisão do Senado ou recuperar a íntegra do projeto que aprovara uma semana antes. Mas não foi isso que aconteceu.

Como se sabe, a Câmara resolveu votar a matéria já no dia seguinte. Seus defensores alegavam que o texto apenas consolidaria práticas ou normas já existentes. Afirmavam, por exemplo, que algumas categorias de despesas de campanha não estariam sujeitas a limite de valor segundo entendimento da Justiça Eleitoral, quando na verdade esses serviços não podiam ser pagos com recursos de campanha e, apenas por isso, não estavam sujeitos a limitação de valor.

Também chegaram a dizer que as empresas podem declarar imposto de renda em diferentes sistemas disponíveis no mercado, o que obviamente não corresponde à realidade. É claro que, internamente, as empresas podem usar qualquer sistema para a gestão contábil, mas o envio das informações para o fisco só é permitido através dos programas desenvolvidos pela própria Receita Federal.

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Antes da votação do projeto na Câmara, protocolamos uma carta aberta ao presidente Rodrigo Maia (DEM/RJ) apontando todas nossas preocupações. Por volta das 23h do dia 18, quarta-feira, encerrou-se a votação e alguns dos dispositivos que indicamos foram efetivamente retirados e outros tiveram sua redação alterada.

Muitos pontos preocupantes, no entanto, permaneceram no texto que foi enviado para análise do presidente Bolsonaro, que teria então 15 dias úteis para sanção ou veto. Na terça-feira desta semana, divulgamos uma nova carta pública, dessa vez endereçada ao presidente, para alerta-lo em relação aos riscos que permaneciam para a integridade dos partidos e das campanhas eleitorais.

Recomendamos ao todo veto a 16 dispositivos, mas apenas dois foram vetados: o que permitia pagar passagens aéreas para qualquer pessoa e aquele que flexibilizaria a Lei da Ficha Limpa.

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Infelizmente, permaneceu a exclusão das contas bancárias dos partidos dos controles mais rígidos de órgãos como Receita Federal e COAF, embora todos os escândalos de corrupção dos últimos anos revelem que os partidos políticos são engrenagens centrais de praticamente todos os casos revelados.

Também ficaram os dispositivos que permitem que serviços de contabilidade e advocacia sejam pagos com recursos públicos ou de pessoas físicas, sem nenhum limite de valor, seja em relação aos honorários, em relação ao tamanho da doação ou, ainda, em relação ao teto nominal de gastos de campanha.

A esse respeito, é necessário reconhecer que determinados serviços são mais suscetíveis a eventuais práticas irregulares, na medida em que não há critérios objetivos para sua precificação. Nesses casos, os valores cobrados pela realização de atividades idênticas podem sofrer grande variação, a depender exclusivamente de características do profissional contratado. Merecem, portanto, tratamento mais rigoroso, especialmente quando se trata de processos eleitorais, ainda mais quando financiados com recursos públicos.

A corrupção é um fenômeno que tem causas objetivas, que são precisamente as oportunidades concretas para sua ocorrência. Portanto, para que o combate à corrupção seja eficiente, essas oportunidades precisam ser objetivamente identificadas, a fim de que se possam instituir mecanismos e regramentos para prevenção e repressão do fenômeno. Não se trata de levantar genericamente suspeição contra quem quer que seja, mas de adotar mecanismos de prevenção. Infelizmente, a falta de um teto para esse tipo de despesa deixou a porta aberta para que indivíduos desonestos possam manipular os permissivos legais, denegrindo toda uma categoria profissional, para mascarar eventuais práticas de caixa-dois e lavagem de dinheiro. Como todo ato de corrupção ocorre nas sombras, o que não se pode é deixar brechas na legislação que facilitem sua realização.

Lamentavelmente, também ficou a possibilidade de transferência de recursos do Fundo Partidário para qualquer instituto privado, desde que presidido por pessoa que ocupe a função de Secretária da Mulher do partido. Nesse caso, não há sequer a necessidade de criar uma nova pessoa jurídica com essa finalidade, o que permite transferir o dinheiro inclusive para um instituto já existente. E vale registrar que o texto fixa apenas o percentual mínimo do total de recursos do Fundo Partidário que pode ser destinado a esse instituto, o que permite que parcelas ainda maiores de recursos públicos sejam direcionados para instituições privadas estranhas ao sistema partidário e a respeito das quais não se estabelece qualquer regramento de fiscalização.

A lei sancionada por Bolsonaro diminui ainda a autonomia dos técnicos responsáveis pela análise das contas partidárias, que não poderão mais opinar sobre a pena que entendem mais adequada para cada irregularidade identificada. Além de parecer uma medida autoritária, que lembra censura, o que se retira na prática é a possibilidade de os juízes contarem com o suporte de funcionários públicos especializados, o que é uma prática corriqueira em qualquer processo judicial e que em nada se confunde com ingerência sobre as sentenças.

No mais, vale destacar que a nova lei parece seguir a mesma lógica das diversas alterações realizadas ao longo dos anos na Lei dos Partidos, que é de 1995: suavização das penalidades aplicáveis aos partidos; atomização de responsabilidades, ou seja, isolamento dos dirigentes e das instâncias superiores em relação aos atos praticados nas esferas inferiores; e diminuição das obrigações e tarefas dos partidos, que no mais das vezes acabam sendo transferidas para a Justiça Eleitoral.

É claro que essas constantes mudanças na lei não estimulam uma gestão cuidadosa dos partidos e dos recursos públicos que eles recebem. Ao contrário. É provável, inclusive, que esse movimento tenha contribuído para o alegado estado deficitário das contas partidárias, em que pese o aumento substantivo que vem ocorrendo ano a ano no valor do Fundo Partidário.

Por isso, é bastante negativo que não tenha havido veto ao dispositivo que permite usar o Fundo Partidário genericamente para "compra e locação de bens móveis e imóveis" nem ao que insere mais uma flexibilização do pagamento das multas aplicadas aos partidos. Nesse caso, os descontos que a Justiça Eleitoral pode fazer nos repasses do Fundo Partidário ficaram limitados a no máximo 50% do valor devido. É mais uma diminuição da capacidade dos órgãos de controle de promover o esmero na gestão dos partidos e inibir a reiteração das condutas irregulares.

Na mesma linha, acabou ficando um dispositivo que impede a Justiça Eleitoral de solicitar aos partidos documentos públicos ou emitidos por entidade bancária; outro que a obriga a notificar a instância superior para poder aplicar penalidade a diretório municipal ou estadual; e um terceiro que transfere a responsabilidade pela gestão dos dados de filiados para a Justiça Eleitoral, como se o Poder Judiciário devesse funcionar como instância auxiliar dos partidos políticos.

Na próxima quarta-feira, 02 de outubro, deve haver sessão conjunta das duas casas do Congresso Nacional. Espera-se que não sejam derrubados os vetos presidenciais a essa matéria.

Por fim, é preciso registrar que apesar de esse processo ter ocorrido de forma apressada, totalmente afastado daquilo que se pode entender como democracia, considero que essas últimas semanas evidenciaram mais uma vez a relevância e a potência da sociedade civil organizada e deixaram evidente que precisamos estabelecer um profundo debate nacional sobre as regras de governança de nossos partidos políticos e alterar nossa legislação partidária.

De minha parte, estou convencido de que o Brasil precisa de partidos políticos pautados em transparência e boa gestão dos recursos públicos para o fortalecimento da democracia e o desenvolvimento do país.  Penso que o resgate da legitimação social dos partidos é requisito fundamental não só para o pleno exercício da cidadania, mas também para a resolução de nossos dilemas e iniquidades e para a garantia e o aprofundamento da democracia no Brasil. Alcançar os objetivos da Constituição -- construir uma sociedade livre e solidária, reduzir as desigualdades e eliminar todas as formas de discriminação -- será muito mais lento e custoso sem partidos políticos transparentes, coerentes, íntegros e democráticos.

*Marcelo Issa, cientista político e advogado, é diretor-executivo do Transparência Partidária e membro do Conselho Deliberativo da Transparência Brasil

Marcelo Issa. Foto: Assessoria de Imprensa / Divulgação

O presidente Jair Bolsonaro sancionou ontem, com alguns vetos, a Lei 13.877, de 2019, que altera regras de funcionamento dos partidos políticos e de organização das eleições.

Não fosse o alerta e a atuação do Transparência Partidária, com apoio de muitas outras entidades preocupadas com o amadurecimento da democracia brasileira, possivelmente estaríamos hoje diante do maior retrocesso das últimas décadas para transparência e integridade dos partidos políticos e das campanhas eleitorais.

Com nossa mobilização e o apoio da opinião pública, evitamos uma drástica diminuição da transparência das contas dos partidos e do acompanhamento das contas de campanha. Detivemos a autorização para usar recursos públicos para pagar a defesa de políticos acusados de corrupção e para custear ações judiciais de "interesse indireto" do partido. Impedimos que penas já aplicadas fossem anistiadas e que pudessem ser pagas com recursos públicos. Afastamos a exigência de conduta dolosa para multar os partidos. Mantivemos o limite de 30% das emendas de bancada para o Fundo Eleitoral, barramos a abertura de brecha para incursos na Lei da Ficha Limpa e evitamos que os partidos pudessem pagar passagens aéreas com dinheiro público para qualquer pessoa.

É preciso deixar bem claro, contudo, que ao contrário do que alguns parlamentares alegaram, a realidade é que não houve espaço para participação social nesse processo legislativo tão importante. O texto aprovado no dia 03 de setembro, apareceu poucas horas antes de ser votado. Era um substitutivo do deputado Wilson Santiago (PTB/PB), que nada tinha a ver com a versão original do Projeto de Lei 11.021/2018. Não é verdade, portanto, que a matéria esteve em debate por mais de dez meses na Câmara dos Deputados.

O fato é que só depois que o projeto saiu da Câmara dos Deputados é que pudemos nos debruçar sobre o novo conteúdo. Produzimos uma análise das propostas, um resumo dos retrocessos, bem com uma carta aberta para ser entregue ao presidente do Senado. É importante salientar que todos nossos apontamentos sempre se restringiram a regras e mecanismos de transparência e combate à corrupção.

No começo da tarde do dia 11 de setembro, uma quarta-feira, consultamos a página do Senado na internet e não encontramos o PL. Em seguida, entramos em contato por telefone com a Mesa Diretora, que nos informou que a proposta sequer havia sido numerada e que, por isso, não constava do sistema de acompanhamento eletrônico.

Exatamente às 17h daquele mesmo dia, o Transparência Partidária reuniu organizações da sociedade civil com expertise no tema para debater a minuta da carta conjunta. Enquanto discutíamos o tema, descobrimos às 18h que, mesmo fora da pauta, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM/AP), queria votar o projeto naquele mesmo dia.

Até aquele momento, apenas Transparência Partidária e Contas Abertas haviam assinado a carta. A Transparência Brasil foi a próxima e outras organizações seguiram. Divulgamos o documento entre mais organizações, que aderiram à iniciativa e, assim, ampliamos os apoios. A carta, juntamente com o resumo analítico dos retrocessos, foi distribuída amplamente no plenário do Senado.

Ao analisar os documentos, alguns senadores começaram discursos e articulações para retirar o projeto da pauta e adiar a votação. Diziam que sequer tinham lido o projeto, citavam as entidades signatárias e o número de senadores pedindo mais tempo foi aumentando.

O senador Weverton Rocha (PDT/MA), relator da matéria, entretanto, proferiu parecer favorável, argumentando que não havia nada de grave na proposta e que o projeto precisava ser aprovado antes do dia 04 de outubro para valer para as eleições do ano que vem. Mas a mobilização da sociedade civil ajudou a reverter a situação. Até que, pouco antes das 21h, a matéria foi retirada de pauta e a votação ficou para a semana seguinte.

A imprensa passou a dar amplo destaque ao assunto e no dia 17, terça-feira, representantes das entidades foram a Brasília para acompanhar a votação no Senado. Um acordo entre os líderes partidários decidiu rejeitar praticamente todo o projeto, devolvendo a matéria para a Câmara.

Alguns senadores e todos os especialistas em regimento que consultamos afirmavam que a Câmara somente poderia referendar a decisão do Senado ou recuperar a íntegra do projeto que aprovara uma semana antes. Mas não foi isso que aconteceu.

Como se sabe, a Câmara resolveu votar a matéria já no dia seguinte. Seus defensores alegavam que o texto apenas consolidaria práticas ou normas já existentes. Afirmavam, por exemplo, que algumas categorias de despesas de campanha não estariam sujeitas a limite de valor segundo entendimento da Justiça Eleitoral, quando na verdade esses serviços não podiam ser pagos com recursos de campanha e, apenas por isso, não estavam sujeitos a limitação de valor.

Também chegaram a dizer que as empresas podem declarar imposto de renda em diferentes sistemas disponíveis no mercado, o que obviamente não corresponde à realidade. É claro que, internamente, as empresas podem usar qualquer sistema para a gestão contábil, mas o envio das informações para o fisco só é permitido através dos programas desenvolvidos pela própria Receita Federal.

Antes da votação do projeto na Câmara, protocolamos uma carta aberta ao presidente Rodrigo Maia (DEM/RJ) apontando todas nossas preocupações. Por volta das 23h do dia 18, quarta-feira, encerrou-se a votação e alguns dos dispositivos que indicamos foram efetivamente retirados e outros tiveram sua redação alterada.

Muitos pontos preocupantes, no entanto, permaneceram no texto que foi enviado para análise do presidente Bolsonaro, que teria então 15 dias úteis para sanção ou veto. Na terça-feira desta semana, divulgamos uma nova carta pública, dessa vez endereçada ao presidente, para alerta-lo em relação aos riscos que permaneciam para a integridade dos partidos e das campanhas eleitorais.

Recomendamos ao todo veto a 16 dispositivos, mas apenas dois foram vetados: o que permitia pagar passagens aéreas para qualquer pessoa e aquele que flexibilizaria a Lei da Ficha Limpa.

Infelizmente, permaneceu a exclusão das contas bancárias dos partidos dos controles mais rígidos de órgãos como Receita Federal e COAF, embora todos os escândalos de corrupção dos últimos anos revelem que os partidos políticos são engrenagens centrais de praticamente todos os casos revelados.

Também ficaram os dispositivos que permitem que serviços de contabilidade e advocacia sejam pagos com recursos públicos ou de pessoas físicas, sem nenhum limite de valor, seja em relação aos honorários, em relação ao tamanho da doação ou, ainda, em relação ao teto nominal de gastos de campanha.

A esse respeito, é necessário reconhecer que determinados serviços são mais suscetíveis a eventuais práticas irregulares, na medida em que não há critérios objetivos para sua precificação. Nesses casos, os valores cobrados pela realização de atividades idênticas podem sofrer grande variação, a depender exclusivamente de características do profissional contratado. Merecem, portanto, tratamento mais rigoroso, especialmente quando se trata de processos eleitorais, ainda mais quando financiados com recursos públicos.

A corrupção é um fenômeno que tem causas objetivas, que são precisamente as oportunidades concretas para sua ocorrência. Portanto, para que o combate à corrupção seja eficiente, essas oportunidades precisam ser objetivamente identificadas, a fim de que se possam instituir mecanismos e regramentos para prevenção e repressão do fenômeno. Não se trata de levantar genericamente suspeição contra quem quer que seja, mas de adotar mecanismos de prevenção. Infelizmente, a falta de um teto para esse tipo de despesa deixou a porta aberta para que indivíduos desonestos possam manipular os permissivos legais, denegrindo toda uma categoria profissional, para mascarar eventuais práticas de caixa-dois e lavagem de dinheiro. Como todo ato de corrupção ocorre nas sombras, o que não se pode é deixar brechas na legislação que facilitem sua realização.

Lamentavelmente, também ficou a possibilidade de transferência de recursos do Fundo Partidário para qualquer instituto privado, desde que presidido por pessoa que ocupe a função de Secretária da Mulher do partido. Nesse caso, não há sequer a necessidade de criar uma nova pessoa jurídica com essa finalidade, o que permite transferir o dinheiro inclusive para um instituto já existente. E vale registrar que o texto fixa apenas o percentual mínimo do total de recursos do Fundo Partidário que pode ser destinado a esse instituto, o que permite que parcelas ainda maiores de recursos públicos sejam direcionados para instituições privadas estranhas ao sistema partidário e a respeito das quais não se estabelece qualquer regramento de fiscalização.

A lei sancionada por Bolsonaro diminui ainda a autonomia dos técnicos responsáveis pela análise das contas partidárias, que não poderão mais opinar sobre a pena que entendem mais adequada para cada irregularidade identificada. Além de parecer uma medida autoritária, que lembra censura, o que se retira na prática é a possibilidade de os juízes contarem com o suporte de funcionários públicos especializados, o que é uma prática corriqueira em qualquer processo judicial e que em nada se confunde com ingerência sobre as sentenças.

No mais, vale destacar que a nova lei parece seguir a mesma lógica das diversas alterações realizadas ao longo dos anos na Lei dos Partidos, que é de 1995: suavização das penalidades aplicáveis aos partidos; atomização de responsabilidades, ou seja, isolamento dos dirigentes e das instâncias superiores em relação aos atos praticados nas esferas inferiores; e diminuição das obrigações e tarefas dos partidos, que no mais das vezes acabam sendo transferidas para a Justiça Eleitoral.

É claro que essas constantes mudanças na lei não estimulam uma gestão cuidadosa dos partidos e dos recursos públicos que eles recebem. Ao contrário. É provável, inclusive, que esse movimento tenha contribuído para o alegado estado deficitário das contas partidárias, em que pese o aumento substantivo que vem ocorrendo ano a ano no valor do Fundo Partidário.

Por isso, é bastante negativo que não tenha havido veto ao dispositivo que permite usar o Fundo Partidário genericamente para "compra e locação de bens móveis e imóveis" nem ao que insere mais uma flexibilização do pagamento das multas aplicadas aos partidos. Nesse caso, os descontos que a Justiça Eleitoral pode fazer nos repasses do Fundo Partidário ficaram limitados a no máximo 50% do valor devido. É mais uma diminuição da capacidade dos órgãos de controle de promover o esmero na gestão dos partidos e inibir a reiteração das condutas irregulares.

Na mesma linha, acabou ficando um dispositivo que impede a Justiça Eleitoral de solicitar aos partidos documentos públicos ou emitidos por entidade bancária; outro que a obriga a notificar a instância superior para poder aplicar penalidade a diretório municipal ou estadual; e um terceiro que transfere a responsabilidade pela gestão dos dados de filiados para a Justiça Eleitoral, como se o Poder Judiciário devesse funcionar como instância auxiliar dos partidos políticos.

Na próxima quarta-feira, 02 de outubro, deve haver sessão conjunta das duas casas do Congresso Nacional. Espera-se que não sejam derrubados os vetos presidenciais a essa matéria.

Por fim, é preciso registrar que apesar de esse processo ter ocorrido de forma apressada, totalmente afastado daquilo que se pode entender como democracia, considero que essas últimas semanas evidenciaram mais uma vez a relevância e a potência da sociedade civil organizada e deixaram evidente que precisamos estabelecer um profundo debate nacional sobre as regras de governança de nossos partidos políticos e alterar nossa legislação partidária.

De minha parte, estou convencido de que o Brasil precisa de partidos políticos pautados em transparência e boa gestão dos recursos públicos para o fortalecimento da democracia e o desenvolvimento do país.  Penso que o resgate da legitimação social dos partidos é requisito fundamental não só para o pleno exercício da cidadania, mas também para a resolução de nossos dilemas e iniquidades e para a garantia e o aprofundamento da democracia no Brasil. Alcançar os objetivos da Constituição -- construir uma sociedade livre e solidária, reduzir as desigualdades e eliminar todas as formas de discriminação -- será muito mais lento e custoso sem partidos políticos transparentes, coerentes, íntegros e democráticos.

*Marcelo Issa, cientista político e advogado, é diretor-executivo do Transparência Partidária e membro do Conselho Deliberativo da Transparência Brasil

Marcelo Issa. Foto: Assessoria de Imprensa / Divulgação

O presidente Jair Bolsonaro sancionou ontem, com alguns vetos, a Lei 13.877, de 2019, que altera regras de funcionamento dos partidos políticos e de organização das eleições.

Não fosse o alerta e a atuação do Transparência Partidária, com apoio de muitas outras entidades preocupadas com o amadurecimento da democracia brasileira, possivelmente estaríamos hoje diante do maior retrocesso das últimas décadas para transparência e integridade dos partidos políticos e das campanhas eleitorais.

Com nossa mobilização e o apoio da opinião pública, evitamos uma drástica diminuição da transparência das contas dos partidos e do acompanhamento das contas de campanha. Detivemos a autorização para usar recursos públicos para pagar a defesa de políticos acusados de corrupção e para custear ações judiciais de "interesse indireto" do partido. Impedimos que penas já aplicadas fossem anistiadas e que pudessem ser pagas com recursos públicos. Afastamos a exigência de conduta dolosa para multar os partidos. Mantivemos o limite de 30% das emendas de bancada para o Fundo Eleitoral, barramos a abertura de brecha para incursos na Lei da Ficha Limpa e evitamos que os partidos pudessem pagar passagens aéreas com dinheiro público para qualquer pessoa.

É preciso deixar bem claro, contudo, que ao contrário do que alguns parlamentares alegaram, a realidade é que não houve espaço para participação social nesse processo legislativo tão importante. O texto aprovado no dia 03 de setembro, apareceu poucas horas antes de ser votado. Era um substitutivo do deputado Wilson Santiago (PTB/PB), que nada tinha a ver com a versão original do Projeto de Lei 11.021/2018. Não é verdade, portanto, que a matéria esteve em debate por mais de dez meses na Câmara dos Deputados.

O fato é que só depois que o projeto saiu da Câmara dos Deputados é que pudemos nos debruçar sobre o novo conteúdo. Produzimos uma análise das propostas, um resumo dos retrocessos, bem com uma carta aberta para ser entregue ao presidente do Senado. É importante salientar que todos nossos apontamentos sempre se restringiram a regras e mecanismos de transparência e combate à corrupção.

No começo da tarde do dia 11 de setembro, uma quarta-feira, consultamos a página do Senado na internet e não encontramos o PL. Em seguida, entramos em contato por telefone com a Mesa Diretora, que nos informou que a proposta sequer havia sido numerada e que, por isso, não constava do sistema de acompanhamento eletrônico.

Exatamente às 17h daquele mesmo dia, o Transparência Partidária reuniu organizações da sociedade civil com expertise no tema para debater a minuta da carta conjunta. Enquanto discutíamos o tema, descobrimos às 18h que, mesmo fora da pauta, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM/AP), queria votar o projeto naquele mesmo dia.

Até aquele momento, apenas Transparência Partidária e Contas Abertas haviam assinado a carta. A Transparência Brasil foi a próxima e outras organizações seguiram. Divulgamos o documento entre mais organizações, que aderiram à iniciativa e, assim, ampliamos os apoios. A carta, juntamente com o resumo analítico dos retrocessos, foi distribuída amplamente no plenário do Senado.

Ao analisar os documentos, alguns senadores começaram discursos e articulações para retirar o projeto da pauta e adiar a votação. Diziam que sequer tinham lido o projeto, citavam as entidades signatárias e o número de senadores pedindo mais tempo foi aumentando.

O senador Weverton Rocha (PDT/MA), relator da matéria, entretanto, proferiu parecer favorável, argumentando que não havia nada de grave na proposta e que o projeto precisava ser aprovado antes do dia 04 de outubro para valer para as eleições do ano que vem. Mas a mobilização da sociedade civil ajudou a reverter a situação. Até que, pouco antes das 21h, a matéria foi retirada de pauta e a votação ficou para a semana seguinte.

A imprensa passou a dar amplo destaque ao assunto e no dia 17, terça-feira, representantes das entidades foram a Brasília para acompanhar a votação no Senado. Um acordo entre os líderes partidários decidiu rejeitar praticamente todo o projeto, devolvendo a matéria para a Câmara.

Alguns senadores e todos os especialistas em regimento que consultamos afirmavam que a Câmara somente poderia referendar a decisão do Senado ou recuperar a íntegra do projeto que aprovara uma semana antes. Mas não foi isso que aconteceu.

Como se sabe, a Câmara resolveu votar a matéria já no dia seguinte. Seus defensores alegavam que o texto apenas consolidaria práticas ou normas já existentes. Afirmavam, por exemplo, que algumas categorias de despesas de campanha não estariam sujeitas a limite de valor segundo entendimento da Justiça Eleitoral, quando na verdade esses serviços não podiam ser pagos com recursos de campanha e, apenas por isso, não estavam sujeitos a limitação de valor.

Também chegaram a dizer que as empresas podem declarar imposto de renda em diferentes sistemas disponíveis no mercado, o que obviamente não corresponde à realidade. É claro que, internamente, as empresas podem usar qualquer sistema para a gestão contábil, mas o envio das informações para o fisco só é permitido através dos programas desenvolvidos pela própria Receita Federal.

Antes da votação do projeto na Câmara, protocolamos uma carta aberta ao presidente Rodrigo Maia (DEM/RJ) apontando todas nossas preocupações. Por volta das 23h do dia 18, quarta-feira, encerrou-se a votação e alguns dos dispositivos que indicamos foram efetivamente retirados e outros tiveram sua redação alterada.

Muitos pontos preocupantes, no entanto, permaneceram no texto que foi enviado para análise do presidente Bolsonaro, que teria então 15 dias úteis para sanção ou veto. Na terça-feira desta semana, divulgamos uma nova carta pública, dessa vez endereçada ao presidente, para alerta-lo em relação aos riscos que permaneciam para a integridade dos partidos e das campanhas eleitorais.

Recomendamos ao todo veto a 16 dispositivos, mas apenas dois foram vetados: o que permitia pagar passagens aéreas para qualquer pessoa e aquele que flexibilizaria a Lei da Ficha Limpa.

Infelizmente, permaneceu a exclusão das contas bancárias dos partidos dos controles mais rígidos de órgãos como Receita Federal e COAF, embora todos os escândalos de corrupção dos últimos anos revelem que os partidos políticos são engrenagens centrais de praticamente todos os casos revelados.

Também ficaram os dispositivos que permitem que serviços de contabilidade e advocacia sejam pagos com recursos públicos ou de pessoas físicas, sem nenhum limite de valor, seja em relação aos honorários, em relação ao tamanho da doação ou, ainda, em relação ao teto nominal de gastos de campanha.

A esse respeito, é necessário reconhecer que determinados serviços são mais suscetíveis a eventuais práticas irregulares, na medida em que não há critérios objetivos para sua precificação. Nesses casos, os valores cobrados pela realização de atividades idênticas podem sofrer grande variação, a depender exclusivamente de características do profissional contratado. Merecem, portanto, tratamento mais rigoroso, especialmente quando se trata de processos eleitorais, ainda mais quando financiados com recursos públicos.

A corrupção é um fenômeno que tem causas objetivas, que são precisamente as oportunidades concretas para sua ocorrência. Portanto, para que o combate à corrupção seja eficiente, essas oportunidades precisam ser objetivamente identificadas, a fim de que se possam instituir mecanismos e regramentos para prevenção e repressão do fenômeno. Não se trata de levantar genericamente suspeição contra quem quer que seja, mas de adotar mecanismos de prevenção. Infelizmente, a falta de um teto para esse tipo de despesa deixou a porta aberta para que indivíduos desonestos possam manipular os permissivos legais, denegrindo toda uma categoria profissional, para mascarar eventuais práticas de caixa-dois e lavagem de dinheiro. Como todo ato de corrupção ocorre nas sombras, o que não se pode é deixar brechas na legislação que facilitem sua realização.

Lamentavelmente, também ficou a possibilidade de transferência de recursos do Fundo Partidário para qualquer instituto privado, desde que presidido por pessoa que ocupe a função de Secretária da Mulher do partido. Nesse caso, não há sequer a necessidade de criar uma nova pessoa jurídica com essa finalidade, o que permite transferir o dinheiro inclusive para um instituto já existente. E vale registrar que o texto fixa apenas o percentual mínimo do total de recursos do Fundo Partidário que pode ser destinado a esse instituto, o que permite que parcelas ainda maiores de recursos públicos sejam direcionados para instituições privadas estranhas ao sistema partidário e a respeito das quais não se estabelece qualquer regramento de fiscalização.

A lei sancionada por Bolsonaro diminui ainda a autonomia dos técnicos responsáveis pela análise das contas partidárias, que não poderão mais opinar sobre a pena que entendem mais adequada para cada irregularidade identificada. Além de parecer uma medida autoritária, que lembra censura, o que se retira na prática é a possibilidade de os juízes contarem com o suporte de funcionários públicos especializados, o que é uma prática corriqueira em qualquer processo judicial e que em nada se confunde com ingerência sobre as sentenças.

No mais, vale destacar que a nova lei parece seguir a mesma lógica das diversas alterações realizadas ao longo dos anos na Lei dos Partidos, que é de 1995: suavização das penalidades aplicáveis aos partidos; atomização de responsabilidades, ou seja, isolamento dos dirigentes e das instâncias superiores em relação aos atos praticados nas esferas inferiores; e diminuição das obrigações e tarefas dos partidos, que no mais das vezes acabam sendo transferidas para a Justiça Eleitoral.

É claro que essas constantes mudanças na lei não estimulam uma gestão cuidadosa dos partidos e dos recursos públicos que eles recebem. Ao contrário. É provável, inclusive, que esse movimento tenha contribuído para o alegado estado deficitário das contas partidárias, em que pese o aumento substantivo que vem ocorrendo ano a ano no valor do Fundo Partidário.

Por isso, é bastante negativo que não tenha havido veto ao dispositivo que permite usar o Fundo Partidário genericamente para "compra e locação de bens móveis e imóveis" nem ao que insere mais uma flexibilização do pagamento das multas aplicadas aos partidos. Nesse caso, os descontos que a Justiça Eleitoral pode fazer nos repasses do Fundo Partidário ficaram limitados a no máximo 50% do valor devido. É mais uma diminuição da capacidade dos órgãos de controle de promover o esmero na gestão dos partidos e inibir a reiteração das condutas irregulares.

Na mesma linha, acabou ficando um dispositivo que impede a Justiça Eleitoral de solicitar aos partidos documentos públicos ou emitidos por entidade bancária; outro que a obriga a notificar a instância superior para poder aplicar penalidade a diretório municipal ou estadual; e um terceiro que transfere a responsabilidade pela gestão dos dados de filiados para a Justiça Eleitoral, como se o Poder Judiciário devesse funcionar como instância auxiliar dos partidos políticos.

Na próxima quarta-feira, 02 de outubro, deve haver sessão conjunta das duas casas do Congresso Nacional. Espera-se que não sejam derrubados os vetos presidenciais a essa matéria.

Por fim, é preciso registrar que apesar de esse processo ter ocorrido de forma apressada, totalmente afastado daquilo que se pode entender como democracia, considero que essas últimas semanas evidenciaram mais uma vez a relevância e a potência da sociedade civil organizada e deixaram evidente que precisamos estabelecer um profundo debate nacional sobre as regras de governança de nossos partidos políticos e alterar nossa legislação partidária.

De minha parte, estou convencido de que o Brasil precisa de partidos políticos pautados em transparência e boa gestão dos recursos públicos para o fortalecimento da democracia e o desenvolvimento do país.  Penso que o resgate da legitimação social dos partidos é requisito fundamental não só para o pleno exercício da cidadania, mas também para a resolução de nossos dilemas e iniquidades e para a garantia e o aprofundamento da democracia no Brasil. Alcançar os objetivos da Constituição -- construir uma sociedade livre e solidária, reduzir as desigualdades e eliminar todas as formas de discriminação -- será muito mais lento e custoso sem partidos políticos transparentes, coerentes, íntegros e democráticos.

*Marcelo Issa, cientista político e advogado, é diretor-executivo do Transparência Partidária e membro do Conselho Deliberativo da Transparência Brasil

Marcelo Issa. Foto: Assessoria de Imprensa / Divulgação

O presidente Jair Bolsonaro sancionou ontem, com alguns vetos, a Lei 13.877, de 2019, que altera regras de funcionamento dos partidos políticos e de organização das eleições.

Não fosse o alerta e a atuação do Transparência Partidária, com apoio de muitas outras entidades preocupadas com o amadurecimento da democracia brasileira, possivelmente estaríamos hoje diante do maior retrocesso das últimas décadas para transparência e integridade dos partidos políticos e das campanhas eleitorais.

Com nossa mobilização e o apoio da opinião pública, evitamos uma drástica diminuição da transparência das contas dos partidos e do acompanhamento das contas de campanha. Detivemos a autorização para usar recursos públicos para pagar a defesa de políticos acusados de corrupção e para custear ações judiciais de "interesse indireto" do partido. Impedimos que penas já aplicadas fossem anistiadas e que pudessem ser pagas com recursos públicos. Afastamos a exigência de conduta dolosa para multar os partidos. Mantivemos o limite de 30% das emendas de bancada para o Fundo Eleitoral, barramos a abertura de brecha para incursos na Lei da Ficha Limpa e evitamos que os partidos pudessem pagar passagens aéreas com dinheiro público para qualquer pessoa.

É preciso deixar bem claro, contudo, que ao contrário do que alguns parlamentares alegaram, a realidade é que não houve espaço para participação social nesse processo legislativo tão importante. O texto aprovado no dia 03 de setembro, apareceu poucas horas antes de ser votado. Era um substitutivo do deputado Wilson Santiago (PTB/PB), que nada tinha a ver com a versão original do Projeto de Lei 11.021/2018. Não é verdade, portanto, que a matéria esteve em debate por mais de dez meses na Câmara dos Deputados.

O fato é que só depois que o projeto saiu da Câmara dos Deputados é que pudemos nos debruçar sobre o novo conteúdo. Produzimos uma análise das propostas, um resumo dos retrocessos, bem com uma carta aberta para ser entregue ao presidente do Senado. É importante salientar que todos nossos apontamentos sempre se restringiram a regras e mecanismos de transparência e combate à corrupção.

No começo da tarde do dia 11 de setembro, uma quarta-feira, consultamos a página do Senado na internet e não encontramos o PL. Em seguida, entramos em contato por telefone com a Mesa Diretora, que nos informou que a proposta sequer havia sido numerada e que, por isso, não constava do sistema de acompanhamento eletrônico.

Exatamente às 17h daquele mesmo dia, o Transparência Partidária reuniu organizações da sociedade civil com expertise no tema para debater a minuta da carta conjunta. Enquanto discutíamos o tema, descobrimos às 18h que, mesmo fora da pauta, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM/AP), queria votar o projeto naquele mesmo dia.

Até aquele momento, apenas Transparência Partidária e Contas Abertas haviam assinado a carta. A Transparência Brasil foi a próxima e outras organizações seguiram. Divulgamos o documento entre mais organizações, que aderiram à iniciativa e, assim, ampliamos os apoios. A carta, juntamente com o resumo analítico dos retrocessos, foi distribuída amplamente no plenário do Senado.

Ao analisar os documentos, alguns senadores começaram discursos e articulações para retirar o projeto da pauta e adiar a votação. Diziam que sequer tinham lido o projeto, citavam as entidades signatárias e o número de senadores pedindo mais tempo foi aumentando.

O senador Weverton Rocha (PDT/MA), relator da matéria, entretanto, proferiu parecer favorável, argumentando que não havia nada de grave na proposta e que o projeto precisava ser aprovado antes do dia 04 de outubro para valer para as eleições do ano que vem. Mas a mobilização da sociedade civil ajudou a reverter a situação. Até que, pouco antes das 21h, a matéria foi retirada de pauta e a votação ficou para a semana seguinte.

A imprensa passou a dar amplo destaque ao assunto e no dia 17, terça-feira, representantes das entidades foram a Brasília para acompanhar a votação no Senado. Um acordo entre os líderes partidários decidiu rejeitar praticamente todo o projeto, devolvendo a matéria para a Câmara.

Alguns senadores e todos os especialistas em regimento que consultamos afirmavam que a Câmara somente poderia referendar a decisão do Senado ou recuperar a íntegra do projeto que aprovara uma semana antes. Mas não foi isso que aconteceu.

Como se sabe, a Câmara resolveu votar a matéria já no dia seguinte. Seus defensores alegavam que o texto apenas consolidaria práticas ou normas já existentes. Afirmavam, por exemplo, que algumas categorias de despesas de campanha não estariam sujeitas a limite de valor segundo entendimento da Justiça Eleitoral, quando na verdade esses serviços não podiam ser pagos com recursos de campanha e, apenas por isso, não estavam sujeitos a limitação de valor.

Também chegaram a dizer que as empresas podem declarar imposto de renda em diferentes sistemas disponíveis no mercado, o que obviamente não corresponde à realidade. É claro que, internamente, as empresas podem usar qualquer sistema para a gestão contábil, mas o envio das informações para o fisco só é permitido através dos programas desenvolvidos pela própria Receita Federal.

Antes da votação do projeto na Câmara, protocolamos uma carta aberta ao presidente Rodrigo Maia (DEM/RJ) apontando todas nossas preocupações. Por volta das 23h do dia 18, quarta-feira, encerrou-se a votação e alguns dos dispositivos que indicamos foram efetivamente retirados e outros tiveram sua redação alterada.

Muitos pontos preocupantes, no entanto, permaneceram no texto que foi enviado para análise do presidente Bolsonaro, que teria então 15 dias úteis para sanção ou veto. Na terça-feira desta semana, divulgamos uma nova carta pública, dessa vez endereçada ao presidente, para alerta-lo em relação aos riscos que permaneciam para a integridade dos partidos e das campanhas eleitorais.

Recomendamos ao todo veto a 16 dispositivos, mas apenas dois foram vetados: o que permitia pagar passagens aéreas para qualquer pessoa e aquele que flexibilizaria a Lei da Ficha Limpa.

Infelizmente, permaneceu a exclusão das contas bancárias dos partidos dos controles mais rígidos de órgãos como Receita Federal e COAF, embora todos os escândalos de corrupção dos últimos anos revelem que os partidos políticos são engrenagens centrais de praticamente todos os casos revelados.

Também ficaram os dispositivos que permitem que serviços de contabilidade e advocacia sejam pagos com recursos públicos ou de pessoas físicas, sem nenhum limite de valor, seja em relação aos honorários, em relação ao tamanho da doação ou, ainda, em relação ao teto nominal de gastos de campanha.

A esse respeito, é necessário reconhecer que determinados serviços são mais suscetíveis a eventuais práticas irregulares, na medida em que não há critérios objetivos para sua precificação. Nesses casos, os valores cobrados pela realização de atividades idênticas podem sofrer grande variação, a depender exclusivamente de características do profissional contratado. Merecem, portanto, tratamento mais rigoroso, especialmente quando se trata de processos eleitorais, ainda mais quando financiados com recursos públicos.

A corrupção é um fenômeno que tem causas objetivas, que são precisamente as oportunidades concretas para sua ocorrência. Portanto, para que o combate à corrupção seja eficiente, essas oportunidades precisam ser objetivamente identificadas, a fim de que se possam instituir mecanismos e regramentos para prevenção e repressão do fenômeno. Não se trata de levantar genericamente suspeição contra quem quer que seja, mas de adotar mecanismos de prevenção. Infelizmente, a falta de um teto para esse tipo de despesa deixou a porta aberta para que indivíduos desonestos possam manipular os permissivos legais, denegrindo toda uma categoria profissional, para mascarar eventuais práticas de caixa-dois e lavagem de dinheiro. Como todo ato de corrupção ocorre nas sombras, o que não se pode é deixar brechas na legislação que facilitem sua realização.

Lamentavelmente, também ficou a possibilidade de transferência de recursos do Fundo Partidário para qualquer instituto privado, desde que presidido por pessoa que ocupe a função de Secretária da Mulher do partido. Nesse caso, não há sequer a necessidade de criar uma nova pessoa jurídica com essa finalidade, o que permite transferir o dinheiro inclusive para um instituto já existente. E vale registrar que o texto fixa apenas o percentual mínimo do total de recursos do Fundo Partidário que pode ser destinado a esse instituto, o que permite que parcelas ainda maiores de recursos públicos sejam direcionados para instituições privadas estranhas ao sistema partidário e a respeito das quais não se estabelece qualquer regramento de fiscalização.

A lei sancionada por Bolsonaro diminui ainda a autonomia dos técnicos responsáveis pela análise das contas partidárias, que não poderão mais opinar sobre a pena que entendem mais adequada para cada irregularidade identificada. Além de parecer uma medida autoritária, que lembra censura, o que se retira na prática é a possibilidade de os juízes contarem com o suporte de funcionários públicos especializados, o que é uma prática corriqueira em qualquer processo judicial e que em nada se confunde com ingerência sobre as sentenças.

No mais, vale destacar que a nova lei parece seguir a mesma lógica das diversas alterações realizadas ao longo dos anos na Lei dos Partidos, que é de 1995: suavização das penalidades aplicáveis aos partidos; atomização de responsabilidades, ou seja, isolamento dos dirigentes e das instâncias superiores em relação aos atos praticados nas esferas inferiores; e diminuição das obrigações e tarefas dos partidos, que no mais das vezes acabam sendo transferidas para a Justiça Eleitoral.

É claro que essas constantes mudanças na lei não estimulam uma gestão cuidadosa dos partidos e dos recursos públicos que eles recebem. Ao contrário. É provável, inclusive, que esse movimento tenha contribuído para o alegado estado deficitário das contas partidárias, em que pese o aumento substantivo que vem ocorrendo ano a ano no valor do Fundo Partidário.

Por isso, é bastante negativo que não tenha havido veto ao dispositivo que permite usar o Fundo Partidário genericamente para "compra e locação de bens móveis e imóveis" nem ao que insere mais uma flexibilização do pagamento das multas aplicadas aos partidos. Nesse caso, os descontos que a Justiça Eleitoral pode fazer nos repasses do Fundo Partidário ficaram limitados a no máximo 50% do valor devido. É mais uma diminuição da capacidade dos órgãos de controle de promover o esmero na gestão dos partidos e inibir a reiteração das condutas irregulares.

Na mesma linha, acabou ficando um dispositivo que impede a Justiça Eleitoral de solicitar aos partidos documentos públicos ou emitidos por entidade bancária; outro que a obriga a notificar a instância superior para poder aplicar penalidade a diretório municipal ou estadual; e um terceiro que transfere a responsabilidade pela gestão dos dados de filiados para a Justiça Eleitoral, como se o Poder Judiciário devesse funcionar como instância auxiliar dos partidos políticos.

Na próxima quarta-feira, 02 de outubro, deve haver sessão conjunta das duas casas do Congresso Nacional. Espera-se que não sejam derrubados os vetos presidenciais a essa matéria.

Por fim, é preciso registrar que apesar de esse processo ter ocorrido de forma apressada, totalmente afastado daquilo que se pode entender como democracia, considero que essas últimas semanas evidenciaram mais uma vez a relevância e a potência da sociedade civil organizada e deixaram evidente que precisamos estabelecer um profundo debate nacional sobre as regras de governança de nossos partidos políticos e alterar nossa legislação partidária.

De minha parte, estou convencido de que o Brasil precisa de partidos políticos pautados em transparência e boa gestão dos recursos públicos para o fortalecimento da democracia e o desenvolvimento do país.  Penso que o resgate da legitimação social dos partidos é requisito fundamental não só para o pleno exercício da cidadania, mas também para a resolução de nossos dilemas e iniquidades e para a garantia e o aprofundamento da democracia no Brasil. Alcançar os objetivos da Constituição -- construir uma sociedade livre e solidária, reduzir as desigualdades e eliminar todas as formas de discriminação -- será muito mais lento e custoso sem partidos políticos transparentes, coerentes, íntegros e democráticos.

*Marcelo Issa, cientista político e advogado, é diretor-executivo do Transparência Partidária e membro do Conselho Deliberativo da Transparência Brasil

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