O chamado "Estatuto das Famílias do Século XXI", que pretende instituir o Projeto de lei n. 3.369 de 2015, em sua redação original, propõe que sejam reconhecidas como famílias, com todos os direitos respectivos, todas as formas de união entre duas ou mais pessoas que para este fim se constituam e que se baseiem no amor, na socioafetividade, independentemente de consanguinidade, gênero, orientação sexual, nacionalidade, credo ou raça, incluindo seus filhos ou pessoas que assim sejam consideradas.
Esse PL estava na pauta da Comissão de Direitos Humanos e Minorias de 21 de agosto de 2019, mas foi retirado algumas horas antes da data prevista, a requerimento do seu atual relator, deputado Tulio Gadelha (PDT/PE), segundo ele para apresentação de substitutivo porque as redes digitais estariam sendo usadas para interpretações distorcidas.
O debate nas redes digitais sobre o PL é o seguinte. Segundo os críticos ao PL, seu texto atribui natureza de família ao incesto, ou seja, autoriza ou legaliza a relação sexual entre pai e filha, mãe e filho, irmãos etc. Em defesa do PL, seu autor, o deputado Orlando Silva (PCdoB/BA), e também seu relator dizem que a proposta não legaliza a relação incestuosa.
Independentemente daquele debate, não há como negar que o PL, na redação acima referida, pretende alterar o conceito de família, para possibilitar a poligamia, chamada de poliamor ou poliafeto, isto é, o casamento ou a união estável entre três, quatro, cinco ou mais pessoas, um homem e duas mulheres, uma mulher e dois homens, um homem e três, quatro ou mais mulheres etc.
Além da poligamia dos "trisais" ou de mais pessoas, que podemos chamar de "poligamia consentida" porque seria acordada entre todos, a poligamia dos "amantes", que chamamos de "poligamia não consentida" porque não tem a concordância do consorte traído, passaria a ter, segundo o PL, a configuração de família. Isto é inconstitucional e, por si só, impediria a sua aprovação.
Realmente a justificativa do PL é de uma simplicidade que impressiona. Em apenas 5 parágrafos e poucas linhas, em sua redação original, pretende justificar uma mudança completa das normas brasileiras sobre as entidades familiares e, pior ainda, sem o devido processo legislativo de alteração constitucional, pretende mudar a Lei maior.
A simpatia que o relatório do PL à Comissão de Direitos Humanos e Minorias pretendeu gerar, com foco nas uniões homoafetivas, desvia a atenção do leitor e também merece algumas ponderações. Note-se que o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo gênero pelo Supremo Tribunal Federal, como se vê nos votos dos Ministros proferidos na ADPF 132 e na ADI 4277, exige a monogamia na constituição familiar, ou seja, somente dois homens ou duas mulheres podem formar família, o que é de extrema relevância nessa decisão da Suprema Corte e foi esquecido no PL.
Esse PL, na redação original, não trata somente de relações homossexuais, sua abrangência é muito maior.
Também não é somente de relações socioafetivas, ou seja, daquelas que se formam, no plano dos fatos, entre quem educa e cuida, como se fosse um pai, e um filho biologicamente de outra pessoa que o PL trata.
Releia-se o texto do PL. Vê-se em sua redação original a possibilidade de que uma relação entre duas ou mais pessoas que se baseie no amor seja considerada família, portanto, com todos os efeitos da constituição familiar, oriundos do direito de família, sucessório, previdenciário etc.
Assim esse PL originalmente propõe a poligamia consentida (trisais) e a poligamia não consentida (mancebias ou relações entre amantes), como formas de constituição de família. Aqui não se pode esquecer de citar o recente acórdão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), proferido no Pedido de Providências da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), em 24/4/18, que vedou as escrituras de poligamia com bases constitucionais, além das sociais.
No histórico, o relatório do PL pretende fazer links com o preconceito que existiu no passado em relação a pessoas separadas e aos casamentos inter-raciais, chegando a querer fundamentar a proposta na discriminação contra os evangélicos que ocorreu em outros países.
Esses argumentos históricos não têm o condão de justificar o PL, que propõe a alteração do conceito de família, do núcleo essencial da sociedade e, por conseguinte, das pessoas.
Quando o PL diz reconhecer os direitos de todas as famílias, sem exceção ou discriminação no mesmo caminho da maioria dos países democráticos do Ocidente, volta a citar a cor da pele, a religião e a orientação sexual, inclusive fazendo referência à adoção pelo par homoafetivo.
Reitere-se que o PL, na redação original, tem maior e inesgotável abrangência.
Tanto é assim que é dito no citado relatório do PL à Comissão de Direitos Humanos e Minorias que qualquer modalidade de relação entre duas ou mais pessoas, que venha a se formar com amor, deve ser reconhecida e garantida pelo Poder Público em todos os direitos decorrentes da constituição de uma família.
Lembremos que a poligamia destrói as pessoas e viola o princípio de proteção da dignidade da pessoa humana segundo estudos científicos (artigo, artigo, artigo).
Nos países ocidentais e mesmo nos países orientais (em sua maior parte), a monogamia é o sistema adotado para a formação de uma família. Isso porque a cultura monogâmica é uma conquista histórica e sua normatização é um marco na evolução sociocultural da humanidade. A história já logrou em demonstrar que a poligamia gera efeitos perversos para as pessoas e para a sociedade como um todo.
A poligamia seria, portanto, um retrocesso a épocas ultrapassadas e não um progresso do "século XXI", como consta do PL.
É impróprio reduzir o debate a uma oposição entre conservadores e progressistas. O que está em jogo é algo mais profundo: a própria dignidade do ser humano. A delimitação da entidade familiar formada pelo casamento e pela união estável, reconhecidos como monogâmicos pelo ordenamento jurídico, deve-se à construção civilizatória pautada nas condições para o melhor desenvolvimento do ser humano.
Ademais, se há qualquer pretensão de estímulo à felicidade por parte do PL, esta é meramente ilusória. Quando o referido PL fala em promoção de uma cultura de paz ou em amor como elemento único constitutivo da família, baseia-se em conceitos distorcidos. Pergunta-se: existiria paz social sem ordem? Ou, a absoluta autonomia da vontade, por si só, de fato asseguraria felicidade às pessoas?
Estamos diante de um Projeto de Lei que, na redação original, abrirá as portas para a destruição da família. A poligamia (dos trisais e dos amantes) configura estímulo para uniões nocivas às pessoas e à sociedade.
E não podemos ser inocentes ao ponto de fechar os olhos para a existência do empenho de alguns de destruir a família. Famílias destruídas acarretam o enfraquecimento das pessoas, o que, por conseguinte, facilita a sua manipulação.
O alerta está lançado: estamos diante de uma projeto de lei que na redação original é primitivo, que retorna aos "homens das cavernas", ou seja, a uma sociedade sem organização.
Lembremos que a principal finalidade do direito e, portanto, da lei, é a organização social.
Esse PL implica desorganização e retrocesso social. Aguarda-se a alteração da sua redação, prometida pelo relator do PL, deputado Tulio Gadelha, em forma de substitutivo, para novas análises.
*Regina Beatriz Tavares da Silva, presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Doutora em Direito pela USP e advogada