A história da emancipação das mulheres se distingue em graus e fases distintas nos diversos países do mundo. De comum à hegemonia do patriarcado há uma história de avanços e retrocessos na causa feminista e nas sazonais implantação de políticas públicas afirmativas. A conscientização do povo para à inclusão da mulher nos diversos segmentos produtivos da sociedade como forma de reduzir as opressões- a igualdade de gênero-, como motor desse novo milênio sem qualquer nostalgia do obscurantismo de décadas anteriores em que a mulher tinha seu destino traçado para o casamento, no cuidado da prole e família, na vocação religiosa e nas pouquíssimas atividades remuneratórias, mediante prévia aquiescência do patriarca -marido ou pai-, sem considerar o longo período em que não se incluía no sufrágio popular.
A Constituição Imperial brasileira, em 1824, expressamente vedou o voto feminino e a Constituição seguinte, a primeira republicana, ignorou a existência das mulheres, apesar de integrarem a maioria populacional, em absoluto desrespeito à sua dignidade e autonomia enquanto integrantes da mesma sociedade, outrora não inclusiva e patriarcal. Na imposição autoritária de fundo conservador, o texto constitucional republicano não só ignorou a existência das mulheres, como revelou nítida a intenção de ofuscar opressões retratadas por uma parcela de mulheres, o que anos depois fez eclodir o primeiro partido político feminino, o Partido Republicano Feminino, em 1910. Na tentativa de alcançar a mínima inclusão social na sociedade patriarcal excludente, o partido político feminino foi um importe avanço, apesar do direito ao voto só ter sido conquistado em 1932 com a publicação do Código Eleitoral Brasileiro.
Desde o Brasil colonial, tal qual sua metrópole, o patriarcado era dominante em todos os estratos sociais onde os homens apresentavam as regras, o modo de cumpri-las e indicavam a forma de sua execução. Portanto, a tridimensionalidade do modelo girava em torno dos interesses do patriarcado. Quanto mais se propagassem falsas ideologias, a exemplo da compleição física feminina frágil, pouca inteligência, dentre outras condições biológicas que coincidissem com os interesses unilaterais do dominador, seriam em larga escala fomentados. Afinal, a opressão era a forma de se manter a hegemonia masculina nas sociedades patriarcais.
Nesse contexto, o movimento feminista brasileiro passou a ser percebido nessa condição na década de 70 do século XX paralelamente a movimentos da mesma natureza em diversos países. O Estatuto da Mulher Casada e a Lei do Divórcio foram importantes conquistas desse período como forma de limitar o poder do patriarca. Na seara política, importantes conquistas relacionadas ao respeito à igualdade de gênero nas disputas políticas e nas relações de trabalho, além da tipificação de todas as condutas inerentes ao menosprezo das mulheres, se apresentaram como medidas importantes rumo à emancipação da sociedade brasileira.
Entretanto, nos crimes de aborto e de infanticídio algumas questões devem ser registradas. Por primeiro, no crime de aborto, tal qual previsto pela lei penal de 1940, admite-se nas seguintes hipóteses, segundo o artigo 128: “aborto necessário, se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro- se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.” Somadas a essas hipóteses, consta a admitida por força de determinação judicial, pelo STF, na ADPF 54 para admitir o aborto nos casos de fetos sem mínima massa encefálica, impedindo o nascimento com vida, a denominada “anencefalia”.
Causa espécie que as hipóteses acima mencionadas em lei, as duas expostas admitindo o aborto, sobreviveram a regimes antidemocráticos- o Estado Novo e a Ditadura Militar, sem que qualquer movimento contrário surgisse para restringir o direito assegurado a todas as mulheres que se encontrassem nas condições ali elencadas. Maior indignação surge porque nesses momentos políticos a pauta emancipatória feminina era absolutamente incipiente quando comparada às conquistas do momento atual. Rediscutir, duvidar e obstaculizar o direito ao aborto nas hipóteses acima legisladas corresponderia a um retrocesso de várias gerações, de intensas lutas feministas em prol de maior igualdade na sociedade patriarcal.
Quanto ao crime de infanticídio, previsto no artigo 123 do Código Penal, extrai-se: “Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após: Pena: detenção, de dois a seis anos.” Ora, à primeira vista referido crime soa como medida justa porque clama para o apelo, e horror, de uma mãe cometer um ato abominável, que é o homicídio de um filho. No entanto, não é bem isso que a sociedade brasileira, ainda patriarcal, proclama, como será adiante exposto.
Nessa linha, ainda que existam diversos ordenamentos jurídicos que punam de forma muito semelhante ao Direito Penal brasileiro, alguns países adotam o mesmo modelo de punição imposto a mãe que mata o filho em estado puerperal, o infanticídio, ao alvedrio dos elementos imprescindíveis à configuração da conduta em matéria penal: consciência e vontade livre.
Saliente-se, no entanto, que embora o critério vigente para aferir a prática do crime seja a ocorrência do estado puerperal, o primeiro Código Penal brasileiro, em 1890, atribuía à desonra própria - honoris causa, o motivo para a prática do crime de infanticídio, em 1890, nos artigos 197-198 era suficiente para a tipificação da conduta, quando a mãe era incriminada por matar o próprio filho para ocultar desonra nos primeiros 07 dias de vida, ainda que não verificado o estado puerperal.
O crime de infanticídio no atual Código Penal, bem como nos anteriores, confirma a cultura de opressão e estigma no sistema penal brasileiro contra às mulheres. A sanha punitivista é clara e o discurso tendencioso para que a sociedade acredite que a suposta “malfeitora”, que “a mãe desnaturada e perversa” merece punição de 02 a 06 anos de pena reclusiva [1]por ter matado o filho, o próprio filho, em estado puerperal, durante ou logo após o parto. Percebe-se que o pleonasmo utilizado- “o próprio filho”, impõe caráter interpretativo tendencioso à sanha punitivista opressora ao gênero mulher.
As relações de poder subjacentes ao tipo penal em exame revelam o interesse em manter o mesmo modelo patriarcal e as mesmas opressões às mulheres, que por muitas décadas, foram naturalizadas na sociedade brasileira, a exemplo dessa opressão que permanece, e resiste, a todas as políticas emancipatórias femininas do século XXI.
O interesse estatal em incutir a figura materna como figura santa, ou às vias de uma suposta santificação, singela, serena e com amor infinito ao gerar uma vida humana em seu próprio ventre jamais poderia se coadunar com tamanha monstruosidade, que seria ceifar um pequeno ser, ainda que sob o denominado “estado puerperal”. O Estado utiliza seu braço repressor para expurgar da sociedade as “genitoras criminosas” que foram agraciadas com o dom de dar à luz, com o pesado fardo de uma punição criminal rígida, e seu processo criminal antecedente não menos cruel. A sociedade brasileira, ou os que elaboraram a norma, são os que não toleram a alegação do estado puerperal como motivo justificante para a não incriminação desse delito?
Seria razoável conceber, numa visão de sistema, que o mesmo diploma repressivo preveja esse crime como um dos que o Estado deve se desincumbir em processar e condenar, se confirmada a realização da conduta indesejada, quando esse mesmo diploma normativo prevê que, para todos os tipos penais, na hipótese do agente se encontrar em estado de “inconsciência fortuita”, ora por alcoolismo ou psicotrópico, desde que comprovado o motivo de força maior ou caso fortuito ( artigo 28 do Código Penal), isto é, desde que comprovado que o agente não se colocou naqueles estados anímico voluntariamente, não sofrerá qualquer reprimenda penal.
E o que dizer das mulheres que praticaram crime de infanticídio? O estado puerperal é idealizado, é controlado, é previsto? Qual distinção do estado puerperal, que acomete algumas parturientes durante ou logo após o parto, com o estado etílico ou entorpecida de pessoas que se encontram nessas condições por força de um atuar externo?
Não há distinção entre os dois casos – estado puerperal e alcoolismo-quanto aos aspectos fisiológicos, não restam dúvidas. O estado puerperal é afeto exclusivamente às mulheres parturientes, enquanto alcoolismo, na modalidade fortuita, consistindo na sua imprevisibilidade e inevitabilidade, pode ser verificado em detrimento de qualquer pessoa. De comum nas duas situações há a falta de consciência de quem pratica a conduta.
Reitere-se que na primeira hipótese- estado puerperal e morte do próprio filho-, há tipificação por crime doloso contra à vida em detrimento da mulher pelo crime de infanticídio, enquanto que na segunda hipótese- alcoolismo involuntário ( ou uso de substância psicotrópica de forma involuntária, por extensão de entendimentos dos Tribunais brasileiros), há absolvição imposta pelo próprio texto legal pelo entendimento de que nesses casos o sujeito ativo do delito não teria plena consciência para o atuar reprovável.
E o estado puerperal? O estado puerperal, que não deve ser confundido com puerpério, que é inato a qualquer gestante, acomete em torno de 10 a 15 % das puérperas [2] e os sintomas associados incluem perturbação do apetite, do sono, decréscimo de energia, sentimento de desvalia ou culpa excessiva, pensamentos recorrentes de morte, rejeição do bebê, até culminar com atos mais graves contra o neonato, o qual seria configurado o crime de infanticídio. A opressão é clara quando se percebe que não há qualquer interesse estatal, qualquer projeto de lei, qualquer movimento social feminista que critique a inversão de valores que ultrapassa as legislações, com sutileza, decorrendo décadas de novas conquistas de gênero com a abominável e cruel incriminação contra a mulher parturiente, segundo o crime de infanticídio da legislação brasileira.
O discurso feminista passa ao largo dessa abordagem e a produção dos Tribunais é completamente dissociada dos seus próprios termos, já que se reconhece o estado puerperal e se pune, com certeza de que se faz Justiça diante do direito positivo vigente no país, quando não se atenta que o requisito basilar é ter consciência e vontade para a prática de qualquer delito! Nesse caso, a mulher parturiente não tem consciência e sua vontade é completamente viciada! Punir a mulher, nessas condições, interessa a quais atores? O que se quer preservar nessa insensatez autoritária? Qual viés religioso que se oculta no discurso jurídico-legal?
Por fim, a mulher parturiente é a única eleita pelo legislador penal brasileiro, que em estado de comprometimento à vontade livre e consciente sofre reprimenda penal e tem contra si negadas medidas atenuantes de pena, sem olvidar para o estigma de ser uma criminosa pelo simples fato de ter se apresentado doente durante, ou logo após o parto. Trata-se de reminiscência do acentuado patriarcado brasileiro que resistiu, incólume, às mais variadas leis e movimentos sociais emancipatórios do século XXI rumo à inclusão das mulheres em uma sociedade plural. Merece reparo legislativo urgente!
[1] Exposição de Motivos da parte especial do Código Penal- DL 2848, de 07/12/1940: 40. O infanticídio é considerado um delictum exceptum quando praticado pela parturiente sob a influência do estado puerperal. Esta cláusula, como é óbvio, não quer significar que o puerpério acarrete sempre uma perturbação psíquica: é preciso que fique averiguado ter esta realmente sobrevindo em conseqüência daquele, de modo a diminuir a capacidade de entendimento ou de auto inibição da parturiente. Fora daí, não há por que distinguir entre infanticídio e homicídio. Ainda quando ocorra a honoris causa (considerada pela lei vigente como razão de especial abrandamento da pena), a pena aplicável é a de homicídio.
[2] American Psychiatric Association
Este texto reflete a opinião do(a) autor(a). Esta série é uma parceria entre o blog do Fausto Macedo e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica