Final de 2022. Dos acampamentos em frente aos quartéis Brasil afora, vozes se levantam, clamando por uma “intervenção militar constitucional”, (supostamente) respaldada pelo artigo 142 da Carta Magna. O movimento culmina com a invasão e quebra-quebra na Praça dos Três Poderes, em 08 de janeiro de 2023, contida, horas depois, pelas forças de segurança.
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Passados dois anos, descobrimos (estarrecidos) que isso era apenas a ponta do iceberg, com supostas camadas mais profundas da orquestração de um novo golpe militar para a tomada do poder, que incluía até o assassinato de autoridades. Felizmente, pela inépcia dos conspiradores, falta de apoio interno e externo, e resiliência das instituições democráticas, o golpe naufragou. Algumas questões, contudo, carecem de debate.
A primeira é entender o que são e qual o papel das Forças Armadas. Apesar de estarem subordinadas à “autoridade suprema do Presidente da República”, Marinha, Exército e Aeronáutica não servem a governos de ocasião. São “instituições nacionais permanentes e regulares”. Isso quer dizer que os militares, no desempenho de suas funções, são apartidários. Podem sim votar e ser votados (observando as normas pertinentes), mas como cidadãos. A missão das Forças Armadas é a “defesa da Pátria”, bem como a “garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
A (equivocada) interpretação do artigo 142, que equipararia as Forças Armadas a um quarto poder, dito “Moderador”, já foi por demais comentada. Queremos nos debruçar sobre outra questão. Por que um grupo de militares, entre eles os altamente treinados forças especiais (“kids pretos”), estaria envolvido numa tentativa de golpe de estado? É importante revisitar a história para responder.
Em 1964, os militares instauram a Ditadura no Brasil. Direitos são suprimidos. Opositores do regime desaparecem, torturados e assassinados durante interrogatórios. Perto do final dos anos de chumbo, Figueiredo (o último dos ditadores daquele período) sanciona a Lei da Anistia (1979), para esquecer o passado, sem rancores. Em 1985, os militares finalmente voltam para os quartéis com a redemocratização do país.
Mas, se o combinado era olhar para o futuro, os militares continuaram a enxergar o país pelo retrovisor. A “Revolução Democrática de 1964″ (como ainda a chamam) continuou a ser comemorada nos quartéis. Ordens do Dia rivalizavam com a imprensa (”revanchista”) todo ano na infame data de 31 de março. Nas academias, jovens cadetes continuaram aprendendo as “antigas lições”.
Na década de 1990, algumas adaptações foram feitas. Com a Queda do Muro de Berlim (1989) e a derrocada da União Soviética (1991), a ameaça do Movimento Comunista Internacional cedeu lugar aos “perigosos” pensamentos do filósofo marxista italiano Antonio Gramsci. A tomada do poder não viria mais pela luta armada, mas por um processo sub-reptício da hegemonia cultural, com a degradação de valores da sociedade, corroendo suas instituições, como a “família tradicional”, seja o que quer que isso queira dizer. O risco de o Brasil virar uma Cuba foi substituído pelo de se tornar uma Venezuela, com a política chavista implantada no país vizinho na virada do século.
Pois foi a mistura explosiva “Impunidade + Doutrinação” que redundou na nova intentona. Anistiar quem trama golpe de estado e homicídios para atingir seus objetivos realmente não passa uma boa mensagem. Mas é preciso ir além. As esferas judicial e administrativa são independentes. Quando o Exército responde que vai esperar as conclusões da Justiça para só então instaurar, ou não, os processos administrativos disciplinares em desfavor dos militares envolvidos, nos parece, à primeira vista, que novamente a instituição dá guarida a malfeitores, como fez no passado (ex. bomba do Rio Centro, torturadores etc.). Usar viatura do quartel para se deslocar de Goiânia a Brasília em missão não oficial já é motivo mais do que suficiente para a instauração de sindicância, quiçá abertura de inquérito policial militar. Poderíamos listar outros. O Exército e demais Forças Armadas precisam instituir corregedorias com as funções que lhe são inerentes. Os currículos das escolas militares também precisam ser urgentemente revistos.
No livro de autoficção “Diários da Caserna / Dossiê Smart: a história que o exército quer riscar”, o protagonista Battaglia narra a jornalistas improbidades administrativas e crimes que teriam sido cometidos por militares de alta patente. Lá (no Brasil isso parece não ser spoiler), ninguém é punido. Pelo contrário, é o herói denunciante quem sofre com as agruras de perseguições, enquanto os vilões são premiados. Num país onde a maioria não lê nem um livro por ano, corremos o sério risco de repetir os erros do passado. Ler é o mais efetivo plano antigolpe!