A desinformação foi um dos elementos propulsores da ofensiva antidemocrática e criminosa contra o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal, no dia 8 de janeiro. A disseminação de inverdades e de teorias da conspiração ajudaram a mobilizar milhares de pessoas em uma espécie de catarse social, dessas que algumas seitas chegam a provocar. Mentiras muitas vezes disfarçadas de notícia influenciaram e mobilizaram, inclusive por meio de discursos de ódio. E os discursos têm um potencial que, se mal utilizado, deturpam o sadio e republicano pluralismo político, podendo resultar em vandalismo e destruição, como ocorrido em Brasília.
Isso porque cada palavra carrega consigo um valor simbólico. Termos são instrumentos que traduzem realidades e reproduzem valores. Ao serem utilizados, naturalizam comportamentos e ações, aumentando as chances de se darem na prática. Vemos crescer discursos alimentados por redes organizadas que disseminam desinformação. E o mais grave: isso pode estar sendo financiado por recursos públicos.
Uma análise realizada pelo Tribunal de Contas da União constatou indícios de transferência de verbas públicas para plataformas, canais ou mídias que estão sob suspeita de realizar atividades ilegais. Esses repasses ocorreram no financiamento de campanhas publicitárias examinadas pelo TCU. A mesma inspeção apontou falhas no direcionamento das peças a determinados públicos-alvos. Uma campanha relacionada à reforma da Previdência, por exemplo, poderia ser dirigida à população infantojuvenil, sem se indicar a razão dessa escolha?
Além de decidir pelo fim dos repasses a essas atividades, o TCU determinou que o Ministério das Comunicações orientasse os órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta para que, nos contratos celebrados com agências de publicidade, sejam previstas cláusulas que incentivem a identificação e o combate à veiculação de campanhas publicitárias em mídias digitais associadas a fake news.
Outra questão a ser levada em consideração é a ampliação da transparência sobre os recursos destinados pelos entes governamentais à publicidade. O que ocorre, inúmeras vezes, nos portais de transparência, é o mero registro dos valores, sem o detalhamento do seu emprego, a plataforma de comunicação contemplada, a peça publicitária desenvolvida e o objetivo da campanha - dados essenciais para a atuação do controle externo e da sociedade (problema, aliás, que não se limita a um determinado período ou gestor, já que detectado ao longo de muitos anos, em diferentes estruturas de poder). Oferecidos de forma global e sem descrições, não atingem a finalidade pública pretendida: dar visibilidade a um conjunto de gastos relacionados a tema maior para a cidadania.
Consciente dessa necessidade, no mesmo expediente em que tratou do enfrentamento às fake news, o TCU determinou à Secretaria Especial de Comunicação Social que inclua no Manual de Procedimentos de Ações de Publicidade a obrigatoriedade de se registrar e dar publicidade aos documentos relativos às campanhas publicitárias que contratar.
A propósito, neste 17 de janeiro, Dia dos Tribunais de Contas, bem se pode referir da relevância dos órgãos de controle em defesa do regime democrático e do princípio republicano, para cuja concretização a informação é instrumento basilar. E, para tal, o país pode contar com a vigilância ativa e altiva desse (nas palavras de Rui Barbosa) "mediador independente" entre quem autoriza e quem executa o gasto público; a "mão forte" em defesa da lei, mas que também orienta e previne.
A distribuição de publicidade da administração pública por meio de serviços que promovem anunciantes em plataformas de pesquisa é uma das questões que estão sendo analisadas pelo órgão. Durante a pandemia, por exemplo, um estudo do Oxford Internet Institute demonstrou que 61% dos sites de desinformação receberam anúncios e valores por meio desses mecanismos. A atenção dada pelo TCU ao tema é um exemplo da atuação dos órgãos de controle no combate à desinformação e pelo consequente fortalecimento da democracia. Sem um amplo engajamento nessa tarefa, reunindo entes públicos e sociedade, não haverá segurança de que as tristes cenas ocorridas em Brasília não se repetirão.
*Cezar Miola é presidente da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon) e conselheiro ouvidor do Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul. É bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, pós-graduado em Direito Processual Civil e em Direito, Políticas Públicas e Controle Externo