O inquérito da Polícia Federal sobre um suposto esquema de compra de votos no Ceará, que seria abastecido com dinheiro desviado de emendas parlamentares, teve início com o relato de uma série de ameaças que vinham sendo feitas, indiretamente, contra Rozário Ximenes, ex-prefeita de Canindé, uma pequena cidade do sertão cearense.
Em outubro do ano passado, em pleno período eleitoral, Rozário foi espontaneamente ao Ministério Público denunciar o candidato à prefeito de Choró, município vizinho de Canindé. Segunda ela, as ameaças que vinha recebendo partiam de Carlos Alberto de Queiroz, mais conhecido como ‘Bebeto do Choró', que acabou eleito prefeito da cidade com 12 mil habitantes a 185 quilômetros de Fortaleza. Bebeto está foragido desde dezembro. Ele é investigado por suspeita de abuso de poder econômico durante as eleições municipais.
No depoimento, Rozário contou que Bebeto vinha fazendo diversas ligações para vereadores de Canindé e outras cidades do sertão cearense oferecendo dinheiro em troca de apoio para emplacar aliados nas prefeituras da região, inclusive em Canindé. De acordo com o relato, Bebeto prometia aos vereadores botar Rozário “para correr” e que “vestiria saia” caso não ganhasse as eleições.
Três meses depois, a investigação foi parar no gabinete do ministro Gilmar Mendes, decano do Supremo Tribunal Federal (STF), depois que os investigadores viram um elo claro de Bebeto com um deputado federal: Júnior Mano, que era do PL, mas acabou expulso do partido após organizar um encontro de prefeitos cearenses para sinalizar apoio ao nome que o PT apoiava na corrida pela prefeitura de Fortaleza. O Estadão tenta contato com o parlamentar desde o dia 1 de janeiro, mas não obteve resposta.
A PF suspeita que, em meio aos preparativos para a reunião dos prefeitos, ‘Bebeto do Choró’ operacionalizava o esquema para corromper eleitores de ao menos 51 municípios cearenses. Júnior Mano teria “papel central na manipulação dos pleitos eleitorais, tanto por meio da compra de votos, quanto pelo direcionamento de recursos públicos desviados” de empresas controladas pelo grupo criminoso, diz a PF. Ao longo das investigações, a PF encontrou uma série de diálogos com tratativas explícitas de compra de votos.
Veja os principais personagens e pontos do inquérito, que agora ganha novos contornos ao se debruçar sobre suposto desvio de dinheiro público.
Como o inquérito começou?
O Ministério Público Eleitoral e a Polícia Federal passaram a investigar a suposta compra de votos no Ceará a partir do depoimento espontâneo da ex-prefeita de Canindé Rozário Ximenes (Republicanos). Ela apoiava, em Canindé, seu antigo território eleitoral, a campanha de Kledeon Paulino, adversário de Professor Jardel na corrida pela prefeitura. Jardel era o candidato de ‘Bebeto de Choró’, que, em paralelo, concorria à prefeitura da cidade vizinha, Choró.
Rozário narrou ao Ministério Público que estava recebendo ameaças de ‘Bebeto’ - ligações em que o então candidato a prefeito de Choró oferecia dinheiro a vereadores e alegava que iria ‘vestir saia’ se não ganhasse as eleições.
Ela explicou ainda que o apoio de Bebeto ao Professor Jardel consistia em “vender a prefeitura toda” e que os recursos do político vinham de “licitações e emendas parlamentares que ele negocia”.
A ex-prefeita implicou Júnior Mano. Ela afirmou que ‘Bebeto do Choró’ mantém elo, via empresas contratadas e laranjas, com 51 prefeituras, juntamente com o deputado. Disse que Júnior Mano ‘concede emendas, manda pra ele e ele lava’. “Que a lavagem consiste em contatar o gestor, oferecendo como exemplo um milhão com retorno de 15% para ele.”
Ao Estadão, Rozário afirmou: “Não tenho medo, eu vou até o fim. Vai cair muita gente.”
Quem é investigado?
Inicialmente, foram listados como principais investigados do inquérito de corrupção eleitoral o prefeito foragido e mais dois suspeitos - sua irmã Cleidiane Queiroz, a ‘Cleide’, e um vigia de empresa citado por Rozário. A ex-prefeita de Canindé entregou ao MP uma lista de 10 empresas que fariam parte do esquema supostamente chefiado pelo prefeito foragido.
‘Bebeto do Choró’, sua irmã e o vigia foram alvos de uma primeira fase ostensiva da investigação em outubro, em pleno período eleitoral. Na ocasião, o então candidato à prefeitura de Choró protagonizou uma situação “furtiva”. Ao ser abordado pela Polícia Federal, na orla de Fortaleza, quando fazia atividades físicas, o prefeito arremessou seu celular, por cima de uma cerca, direto no espelho d’água de um edifício.
A PF viu no gesto de Bebeto “tentativa evidente de ocultar provas e dificultar o acesso a informações potencialmente comprometedores à investigação”. A artimanha, no entanto, acabou frustrada - os investigadores recuperaram o celular e os peritos federais acessaram mensagens e áudios via WatsApp.
‘Bebeto’ ainda foi alvo das operações ‘Ad Manus’, da Promotoria, e ‘Vis Occulta’, da Polícia Federal.
O que a PF encontrou antes de enviar o inquérito para o STF?
Antes mesmo de abrir a primeira operação sobre o caso, a PF recebeu informações sobre os investigados. Os investigadores resgataram uma notícia crime lavrada após a apreensão, no dia 25 de setembro, de R$ 600 mil em espécie, que havia sido sacado por um sargento da Polícia Militar, Emanuel Elanyo Lemos Barroso, segundo ele, “no interesse” do vigia, apontado como ‘laranja’ de Bebeto.
Maurício Gomes Coelho, o vigia, também já havia chamado a atenção dos investigadores quando a PF fez o levantamento de dados sobre as empresas citadas por Rozário. A PF constatou que o vigia recebe salário mensal de R$ 2,4 mil e abriu uma empresa com capital social de R$ 8,5 milhões.
Segundo a Polícia Federal, não foram encontrados, durante diligências, “elementos que justifiquem” o fato de Maurício, de 37 anos, ter constituído a MK Serviços em Construção e Transporte Escolar Ltda, contratada por administrações municipais a peso de ouro. O valor global dos contratos da MK com prefeituras do sertão ceraense vai a R$ 318,9 milhões.
O que fez o caso ser levado para o Supremo?
As citações mais robustas sobre emendas parlamentares e ao deputado Júnior Mano foram encontradas em diálogos de ‘Bebeto do Choró’.
Ao analisar o conteúdo do aparelho, os investigadores pegaram diálogos recheados de frases como “Você pode mandar em quem eu votar”, “diga ao padre aí que comece a pedir voto”. Interlocutores de Bebeto o chamam de ‘grande líder’ e ‘macho’.
Os peritos da PF acessaram diálogos que indicam compra de votos e promessas de Bebeto de apoio financeiro a aliados. Nas conversas, que contêm inclusive áudios do prefeito foragido, os analistas encontraram comprovantes de transferências supostamente realizadas pelo político a partir de contas de laranjas.
Esses diálogos registram compromissos assumidos por eleitores de votarem em ‘Bebeto do Choró’ ou em nomes por ele indicados. “Tava precisando de uma ajuda tua [...] aí a família tudinho vota no senhor”, disse um eleitor.
Já há desdobramentos da investigação?
Enquanto a investigação sobre o desvio de emendas avança no STF, os achados da PF já surtem efeitos para ‘Bebeto do Choró’. O Ministério Público do Ceará pediu a cassação do prefeito eleito em razão dos diálogos atribuídos ao político - entre eles um áudio em que ele “reclama do preço a pagar pelos votos, indicando que estava muito caro”.
A Promotoria atribui a Bebeto abuso de poder econômico nas eleições de Choró e em de outras cidades próximas. Segundo o MP, as conversas interceptadas pela PF, com uma “variedade de pessoas beneficiadas e dos municípios atingidos”, mostram a “complexidade da teia de interesses” do prefeito eleito e seus aliados “e o espectro de sua influência eleitoral, a compor a abrangência do abuso de poder econômico relacionado ao aspecto eleitoral”.
“O que se constata é a arrecadação de valores por meio de transferências de receitas de pessoas jurídicas sob o controle direto do promovido Carlos Alberto Queiroz Pereira e de sua irmã Cleidiane de Queiroz Pereira, utilizando-se de “laranjas”, como forma de evitar a identificação direta de um grande esquema de captação ilícita de sufrágio, doações eleitorais irregulares, e ilícitos não eleitorais, com ramificações que ainda estão sob a investigação da Polícia Federal”, assinala a Promotoria.
Em uma primeira decisão judicial nesta ação, a Justiça Eleitoral suspendeu a posse do prefeito eleito, que está foragido. O despacho também barrou a posse do vice Bruno Juca Bandeira (PRD). ‘Bebeto’ chegou a ser diplomado por procuração no último dia 14. Um filho dele foi à cerimônia no Tribunal Regional Eleitoral para que Bebeto não fosse capturado pela PF.
Com a suspensão decretada pela Justiça Eleitoral, quem assumiu a prefeitura de Choró, interinamente, foi o vereador Paulo George Saraiva (PSB).