No fim da semana passada, o presidente Lula assinou uma série de decretos que estabelecem novas regras para o controle de armas no país. A medida, parte do recém-lançado Programa de Ação na Segurança (PAS), visa reverter o aumento significativo do número de armas em circulação promovido pelo governo Bolsonaro. Entre 2018 e 2022, o Brasil viu o número de armas registradas legalmente subir de 350 mil para mais de 1 milhão.
A oposição ao atual mandatário já vem discutindo estratégias para derrubar as restrições ao acesso a armas por parte de caçadores, atiradores esportivos e colecionadores (popularizados pela sigla CACs). O argumento dos parlamentares é essencialmente ideológico: o Estado não deveria interferir na prerrogativa básica de legítima defesa dos cidadãos. Reagindo aos decretos, o próprio ex-presidente Jair Bolsonaro postou em suas redes uma foto de 2004, em que aparece ao lado de uma faixa com os dizeres "entregue sua arma, os vagabundos agradecem".
Mas a defesa das armas vai além da dimensão da segurança pública. Bradando a frase "um povo armado jamais será escravizado", Bolsonaro diversas vezes sugeriu, durante a presidência, que as pessoas de bem deveriam se armar contra a tirania dos governantes. Paradoxalmente, a máxima é atribuída ao pai do fascismo, Benito Mussolini, transformado em liberal de ocasião pela extrema direita brasileira. E o contexto, vejam só, era o das medidas de isolamento diante da pandemia de Covid-19.
O acesso a armas aumentou nos últimos anos, mas a verdade é que o Brasil nunca se definiu por uma cultura armamentista. Em dezembro de 2018, uma pesquisa do instituto Datafolha mostrou que 61% dos brasileiros apoiavam a proibição de posse de armas, mesmo diante de aumentos sucessivos nas taxas de homicídio no país. No levantamento de julho de 2023, contudo, o número daqueles que se opõem à posse de armas para se defender caiu para 48%.
Hoje, os que apoiam as armas na sociedade são muito mais numerosos do que quatro anos atrás. Isso, claro, é mais reflexo da polarização ideológica do que de uma mudança significativa nos índices de violência. Mas também reflete um projeto construído ao longo dos anos Bolsonaro, que envolve a apropriação das ideias, da gramática e dos métodos da extrema direita norte-americana. Lá, o culto às armas é um dos principais marcadores ideológicos de um país também profundamente dividido.
A importação do modus operandi de grupos ultraconservadores nos EUA é o que venho chamando de americanização da política brasileira. Esse é um dos principais desafios que Lula - e qualquer outro presidente que o suceda - terá que enfrentar nos próximos anos. Com o advento das redes sociais, ficou muito mais simples mimetizar, articular e legitimar pautas ideológicas vindas do exterior. Além disso, redes de financiamento a essas agendas também ganham força.
Ao tropicalizar a Segunda Emenda da Constituição americana, amplamente interpretada por conservadores como garantidora do direito inalienável à posse de armas, o lobby armamentista brasileiro adquiriu novos contornos. A família Bolsonaro, em particular, costurou relações com poderosos grupos norte-americanos que veem o Brasil não só como mercado promissor, mas também como um dos bastiões do armamentismo em nível global, associado a outros movimentos de extrema direita.
Desde pelo menos 2016, ciceroneados por influenciadores brasileiros que moram nos EUA, Carlos e Eduardo Bolsonaro passaram a frequentar maior feira de armas dos EUA, a Las Vegas Shot Show. Nessas oportunidades, reforçaram laços com a National Rifle Association (NRA), lobby pró-armas norte-americano de alcance mundial. Há indícios de que a NRA, aliada um fundo de investimentos norte-americano, a MFS Investment Management, ajudou a financiar a campanha presidencial de Bolsonaro em 2018.
A NRA já atuava discretamente no Brasil desde os debates sobre o Estatuto do Desarmamento, trazida ao Brasil pelos ultracatólicos do Tradição, Família e Propriedade (TFP), ligada ao movimento monarquista. Em 2005, o porta-voz da associação, Andrew Arulanandam, chegou a dizer que as iniciativas desarmamentistas no Brasil representavam o "salvo de abertura" do movimento global de controle de armas - e que, caso fosse bem-sucedido, os Estados Unidos seriam o próximo alvo.
Naturalmente, essas previsões apocalípticas não se cumpriram, dada a força persistente da NRA na política dos EUA, potencializada pela eleição de um aliado incondicional, Donald Trump, em 2016. O engajamento do trumpismo com o tema, aliás, foi a janela de oportunidade para o estabelecimento de relações próximas com a extrema direita brasileira. O ápice desse processo foi a criação da edição nacional da Conservative Political Action Conference, o CPAC Brasil, com amplo envolvimento de porta-vozes locais da NRA.
Não surpreende, portanto, que a defesa das armas tenha desembocado, em 2019, na criação de uma versão brasileira da NRA: o Pró-Armas, grupo criado pelo advogado Marcos Pollón, que se define como "pró-Deus, pró-vida e pró-armas". Com o slogan "não é sobre armas, é sobre liberdade", Pollón e mais 22 deputados abertamente ligados ao movimento foram eleitos ao parlamento em 2022 e seguem lutando para ampliar o acesso a armas no país, em oposição aberta ao governo Lula.
Na esteira da desregulamentação do acesso de armas, o Brasil se viu vítima de uma outra mazela da política americana, o ataque armado a escolas. Entre 2022 e 2023, atentados dessa natureza superaram o total registrado nos últimos 20 anos. Embora armamentistas tentem dissociar essas incontáveis tragédias do aumento do número de armas em circulação, vários estudos mostram que ataques a escolas guardam relação com um pacote ideológico extremista, entre cujos componentes está a glorificação das armas e da violência.
Por isso mesmo, o combate às armas não se resolverá somente com um pacote de decretos. O passo é correto, mas terá que ser complementado por outras políticas e estratégias de comunicação que ajudem a desmobilizar a ideologia armamentista semeada pelo bolsonarismo ao longo dos últimos anos - e que fincou raízes profundas na política e na sociedade brasileiras.
*Guilherme Casarões, professor da FGV EAESP e coordenador do Observatório da Extrema Direita