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Opinião|O racismo estrutural e a justiça criminal


Por Thiago Turbay Freiria*
Atualização:

Há incontestável afetação da cultura nacional e das instituições ao que Frantz Fanon chama de “erosão empreendida pelo colonialismo”. O racismo é o escape civilizatório e estratégia de dominação mais aplicada. Dados da Oxfam Brasil e do Instituto Datafolha apontam que 86% dos entrevistados, de um total de 2.564 pessoas - distribuídas em 130 municípios brasileiros -, acreditam que a cor da pele influencia a decisão de uma abordagem policial. Destes, 79% concordam que a justiça é mais “dura” com negros. Os dados foram registrados em 2022, havendo uma série histórica a ser considerada.

Thiago Turbay Freiria Foto: Divulgação

Em 2021, 84% dos entrevistados disseram acreditar que a cor é determinante para a ação policial. No mesmo ano, 78% disseram que a justiça é mais rígida com pretas e pretos. O relatório Pele Alvo, da Rede de Observatórios da Segurança, um projeto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), traz dados igualmente impactantes acerca da violência letal praticada pela polícia. Vejamos:

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“É possível ver a capilaridade da violência policial com a população negra ao nos depararmos com números alarmantes de vítimas da violência armada do Estado: negros representam 94,76% na Bahia, 80,43% no Ceará, 93,90% no Pará, 89,66% em Pernambuco, 88,24% no Piauí, 86,98% no Rio de Janeiro e 63,90% em São Paulo”.

Os dados são aterradores e revelam as camadas de ação do Estado que intensificam e concretam o racismo estrutural. Sobrevém uma outra arguição: é possível justificar racionalmente uma decisão judicial mediante argumentos racistas?

Para avançar, é preciso conceituar o racismo dentro de um marco teórico capaz de atender as especificidades da análise. Adotarei o conceito de racismo estrutural, nos seguintes termos: é o mecanismo de domínio sobre o outro, preto e preta, aplicado na estruturação do poder e no balizamento das relações comunitárias e transindividuais, por meio da racionalização do agir Estatal em reforço à apropriação do outro e a fadiga de direitos e liberdades, diminuindo, sobremaneira, o estado de civilidade mediante uso da força, bem como reduzindo os espaços de emancipação individual, de raça e identidade.

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Silvio Almeida condensa esses tópicos quando aperfeiçoa o conceito de Racismo Estrutural e dispõe sobre características inerentes à formação da sociedade brasileira. É o ponto de partida. Silvio Almeida diz: “desse modo, se é possível falar de um racismo institucional, significa que a imposição de regras e padrões racistas por parte da instituição é de alguma maneira vinculada à ordem social que ela visa resguardar”. A organização social na configuração da raça por parte do judiciário é componente do Racismo Estrutural.

Adentrando o campo específico de análise, a justiça criminal sustenta o racismo estrutural à medida em que age para a conformação de espaços de asfixia e rompimento da emancipação preta. O agir da justiça criminal é sutil e se estrutura por meio de táticas jurisdicionais que reforçam o racismo. O objeto geral de análise são decisões judiciais que se servem de argumentos úteis para manter pessoas pretas dentro do sistema carcerário. Há circunstâncias estruturantes que se somam à deficiência de legitimação das decisões, à exemplo da dificuldade de acesso à defesa técnica (deficiência de assistência e acesso à justiça), de apartação pública (encarceramento provisório massivo) e expiação no processo penal (probabilidade de condenação por meio de deficiências probatórias e vieses cognitivos), marcando a população preta de caracteres estigmatizantes e cíclicos frente à justiça criminal.

O processo é histórico e permeia a produção legislativa nacional. Todavia, o objeto específico de investigação está nos fundamentos ancorados em decisões judiciais, cujos predecessores são dois argumentos: 1) a prisão em casos em que há fuga após o avistamento de agentes de segurança pública e; 2) a busca pessoal de pessoas localizadas em locais reconhecidos pelo tráfico de drogas.

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A amostra sobre a qual desenvolverei meu raciocínio é o habeas corpus n. 782742/SC, julgado em 12/09/2023, de relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior, do Superior Tribunal de Justiça. Não se trata de análise quantitativa de decisões proferidas com teor equivalente, mas de eleição do processo como paradigmático para fins de reflexão. Interessa-me a análise crítica do objeto de pesquisa.

Na ocasião, o Tribunal negou a concessão da ordem para anular busca pessoal, sob argumento de que havia suspeitas fundadas de ocorrência de delito. O relator, Ministro Sebastião Reis, apresentou voto contrário à tese, instando a Corte à avaliação de que tal fundamentação ancorava argumentos racistas, mas foi vencido. O Ministro Rogerio Schietti ponderou que as proposições, per si, não são suficientes para considerar a hipótese de ocorrência de delito. Todavia, o desfecho foi outro.

O argumento que deu sustentação ao resultado jurisdicional, que denegou a ordem, rejeitando a pretensão da defesa de anular a busca pessoal realizada por agentes policiais, pode ser deduzido da seguinte forma: é lícita a ação policial em razão de haver justificativa suficiente que legitima a abordagem, existindo causas juridicamente válidas para efetivação da medida.

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As duas proposições que descrevem os fatos condicionantes da decisão judicial são: a) o autor do delito estava em local reconhecido como ponto de traficância; b) empreendeu fuga após o avistamento da polícia. Os enunciados foram considerados verdadeiros pelo Superior Tribunal de Justiça, o que equivale a dizer que correspondem à realidade e, outrossim, foram suficientemente provados no processo judicial. Dessa maneira, justificou-se a ação policial em razão do Superior Tribunal de Justiça considerar que as proposições mencionadas são idôneas para justificar a hipótese de ocorrência de um delito, que recebe reproche em razão de conter norma jurídica que proíbe tal comportamento.

Se avaliarmos a hipótese fática deduzida, considerando as proposições acima elencadas, chegaremos à conclusão de que estar próximo a local reconhecido como ponto de traficância e empreender fuga após avistamento da política equivale a considerar suficientemente provado que há elementos informacionais que dão sustentação ao seguinte raciocínio: se as proposições fáticas “a” e “b” estiverem presentes, a hipótese de ocorrência do delito será verdadeira.

A justificação jurídica empreendida no processo judicial em análise deve ser questionada, sobretudo, se considerarmos a necessidade de aquilatar o raciocínio judicial, instituindo critérios de decisões sobre os fatos que observem exigências racionais para considerar haver razões adequadas em favor da veracidade das alegações, ou, que o desvalor da conduta está justificado pelas provas constituídas no processo.

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Os critérios de decisões, notadamente, devem ser aplicados após a filtragem das proposições fáticas. Essa filtragem é regulada pelo próprio ordenamento jurídico e pela observância de valores protegidos pelo direito, sendo vetado - no processo penal - valorar informações obtidas ilicitamente. O direito não pode incentivar conduta que o próprio determina ser proibida, exemplo óbvio são as provas obtidas mediante tortura. Outros filtros dizem respeito ao controle dos procedimentos de obtenção de dados informacionais, à confiabilidade da prova, a sua relevância e pertinência. Passados os filtros iniciais, de admissibilidade, deve-se concentrar na valoração dos fatos, na atribuição de valor de verdade aos fatos consolidados no processo. Essa atribuição de valor é indivisível à motivação da decisão judicial sobre os fatos.

Jordi Ferrer Beltrán assevera que a resolução do processo judicial deve guardar relação com o objetivo de averiguação da verdade, considerada a partir da correspondência do enunciado descritivo do fato alocado no processo judicial e o fato havido no mundo fenomênico, condição para que seja adequadamente motivada, a decisão. Vejamos: “si una de las funciones principales del derecho es la regulación de la conducta, el cumplimiento de esta función requiere que en el proceso se apliquen las consecuencias jurídicas previstas en las normas si, y sólo si, se han producido efectivamente los hechos condicionantes de esas consecuencias”.

Para estar racionalmente motivada, a decisão que estabelece valor de verdade aos fatos descritos no processo judicial deve observar critérios de decisão, que aplicados ao raciocínio probatório devem ser capazes de estipular o grau de corroboração – expressado por meio de probabilidade indutiva, não numérica - da hipótese aventada. Deve-se predicar o raciocínio probatório em decorrência do grau de confirmação da ocorrência da hipótese, considerando os fatos enunciados e o conjunto de informações relevantes obtidas, o que permite aceitar racionalmente que a proposição deduzida como premissa corresponde aos fatos havidos, legitimando a aplicação da consequência jurídica prevista pela norma.

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Para confirmar racionalmente a hipótese, todavia, é necessário aplicar regras de inferência, mediante testagem a partir de filtros racionais em favor da correção do raciocínio aplicado. As regras de inferências são as garantias de que o resultado inferencial está justificado racionalmente e pode ser reproduzido metodologicamente. Estas regras são extraídas da epistemologia, dos conhecimentos científicos afiançados por comunidades de especialistas, e devem obedecer às normas da lógica e as máximas de experiência.

Por certo, voltando ao caso paradigmático, objeto de investigação, não há boas razões para crer que há inferências legítimas que apoiam o argumento de validade das hipóteses decorrentes das proposições fáticas “a” e “b”, ou que estas estejam amparadas por regras inferenciais que se submetem ao crivo racional. É difícil sustentar epistemicamente que pessoas que foram localizadas em locais conhecidos por pontos de drogas e fogem da polícia são autores de delito. Não há qualquer justificativa plausível para crer que populações marginais são, sobretudo, concretamente associadas ao tráfico de drogas. Aqueles que se orientam por eventos meramente probabilísticos generalizantes, que servem exclusivamente para diagnosticar uma frequência, poderão argumentar que há mais pessoas envolvidas no tráfico de drogas em comunidades pobres. Todavia, esse argumento não pode ser diretor de um evento específico, em razão de estabelecer critério de decisão estigmatizante e que não oferta razões acerca do evento concreto “fulano é morador de comunidade pobre e realiza delitos, especialmente, tráfico de drogas”. Admitir esse argumento é consolidar a tese que rompe as forças de emancipação do povo preto, que Fanon nomeia de “reivindicação mínima do colonizado”. Contrariar essa ótica de dominação pelo direito corresponde a desconstruir o mundo colonial compartimentado, que exclui o povo preto.

Não há conhecimentos científicos afiançados, ainda que dentro do campo das ciências sociais e do comportamento, capazes de justificar racionalmente que pessoas que vivem em áreas dominadas pelo tráfico e que fogem da polícia estão determinadas intransigentemente a praticar delito, em especial, tráfico de drogas. Igualmente, as normas da lógica não sustentam a correção de raciocínio que relaciona as premissas fáticas “a” (localizado em local conhecido como ponto de droga) e “b” (fuga da polícia) à conclusão “c”: prática de delito, em especial aqueles contidos na Lei 11.343/06 (Lei de Drogas). Não há uma relação causal racionalmente justificada.

Por último, as máximas de experiência, que constituem generalizações atribuídas à determinada sociedade, inseridas num marco de cultura homogeneizada e operativa. Tais generalizações podem ser úteis à fim de produzir inferências racionalizáveis, apoiando conclusões acerca da ocorrência de um fato cuja generalização é racionalmente aceita. As máximas de experiência reproduzem frequências genericamente aceitas, a partir de uma observação de prevalência da ocorrência de um evento. Todavia, essas generalizações não ofertam dados concretos sobre o fato individual. Com maior gravidade, reproduzir generalizações carregadas de preconceitos reforça o racismo estrutural. Esse é o ponto central da investigação. Referendar argumentos em favor da conclusão de que as proposições fáticas “a” e “b” conduzem logicamente à conclusão em favor da hipótese de ocorrência do delito equivale a referendar um argumento preconceituoso, inquinado por concepções históricas arraigadas no colonialismo escravagista, que operam a favor de uma ordem de mantença de domínio e radicação do indivíduo inserido em comunidades carentes e que são sujeitados à violência policial, notadamente, a população preta.

Havendo inferências divergentes que possam ser confirmadas racionalmente, em contraste à hipótese fática deduzida, tampouco, há de se falar em justificação racional, em termos conceituais. A hipótese que assevera que os locais reconhecidos por tráfico de droga têm população envolvida com a traficância é racionalmente injustificável. O argumento também está inserido em uma ótica compartimentada e apresenta generalizações perigosas.

Dados compilados, em 2018, pela Diretoria de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD), do Ministério da Justiça, revelam que em 65,84% das condenações criminais relativas ao delito do artigo 33 da Lei 11.343/06, ocorridas no Rio de Janeiro, houve apreensão de droga em favelas. O argumento de que o local era reconhecido como ponto de venda foi mencionado em 42% dos processos judiciais.

Durante entrevista concedida à Conectas, organização não governamental de Direitos Humanos, a pesquisadora do coletivo Iniciativa Negra, Lays Araújo, asseverou que “esse sistema de justiça que atua com base em perfis raciais traçados e bem definidos é o principal impulsionador da necropolítica. Porque nós sabemos que esses perfis têm o endereço periférico e a pele negra”. Reproduz-se, nessa lógica, argumentos cujos critérios de decisão são baseados, não raramente, em máximas de experiência que contenham concepções racistas, devendo-se reproche institucional e esforço teórico, para impedir decisões judiciais com esse teor, concedendo artificial autorização ao agir discriminatório.

A institucionalização do racismo, no âmbito do processo criminal, outrora, foi objeto de observação por Marcelo Semer:

“Do racismo institucionalizado, com o imaginário construído pela mídia, às facilidades de abordagem aos guetos negros de população pobre, saíram consequências inquietantes: permanente exclusão de jurados negros, abordagens desproporcionais entre negros e brancos, prisões, acusações e condenações racialmente díspares [...].

O avance da análise da proposição fática “b”, fuga após avistamento da polícia, de igual maneira, reproduz o argumento acerca de haver razões suficientes para crer ser verdadeira a hipótese de ocorrência do delito, conforme depreende-se do voto vencedor no habeas corpus n. 782742/SC. Há outros argumentos logicamente dedutíveis que não foram avaliados, que apresentam hipótese alternativa à ocorrência da hipótese inculpatória deduzida, o que contradiz a inferência vencedora, no caso concreto. Segundo o relatório “A máquina de moer gente preta: a responsabilidade da branquitude”, da Rede de Observatórios da Segurança, foram registrados 21.563 eventos de violência, criminalidade e segurança, entre agosto de 2021 e julho de 2022, recebendo destaque o número de eventos relacionados às ações policiais. Foram 12.042 eventos relacionados à violência policial no período. O levantamento, cujo objetivo declarado foi identificar possíveis causas, revela o racismo estrutural e o pacto da branquitude. Vejamos:

“O processo de desumanização a que os negros são submetidos há alguns séculos nessas terras é irmão siamês de toda violência descomunal que lhe é perpetrada. Ora, se há um modelo ideal de humanidade que é uma contraposição a quem eu sou, logo minha vida é indigna e o meu corpo indesejado. Aqui mora o casamento entre as percepções simbólicas criadas pelos brancos a partir do modelo único de humanidade e a materialidade brutal do racismo diário. Nesse sentido, existe uma simbiose entre aquilo que está na ordem ideológica do sistema de dominação racial e a tangibilidade desse sistema, seja através do monopólio das instituições, dos símbolos e dos postos de maior estima social, seja em sua face mais perversa, como nos assassinatos de Marcos, Moïse, Marielle, Miguel, Ágatha e nos próximos que infelizmente ainda virão”.

O Relatório Pele Alvo, da mesma instituição, por sua vez, aponta cifras aterradoras de mortes da população preta por meio da violência armada do Estado: 94,76% na Bahia, 80,43% no Ceará, 93,90% no Pará, 89,66% em Pernambuco, 88,24% no Piauí, 86,98% no Rio de Janeiro e 63,90% em São Paulo.

É razoável crer que a população preta sofre de maneira prevalente a violência policial, havendo boas razões – dedutíveis mediante raciocínio indutivo – para crer racionalmente que a população preta ao avistar a polícia empreenda fuga, dado que é razoável crer que ninguém é obrigado a suportar a violência contra si.

Consideremos o esquema argumentativo cujas premissas fáticas (P1 e P2) e a conclusão (C) são: P1 - a população preta é vítima da violência policial; P2 - fulano é preto; C - fulano é provavelmente vítima de violência policial. O esquema argumentativo deságua na desacreditação racional do raciocínio judicial que atribui valor de verdade à hipótese em favor da ocorrência de delito em casos em que há fuga do indivíduo após o avistamento da polícia. As hipóteses contrárias à ocorrência do fato impõem uma revisão de olhar e invalidação racional de argumento judicial que considera verdadeira a hipótese formulada nesses termos, conforme o habeas corpus objeto de investigação.

Traçado o panorama geral do objeto de investigação, duas últimas anotações são necessárias. O voto do Ministro Sebastião Reis Júnior, nos autos do habeas corpus n. 782742/SC e o voto do Ministro Rogerio Schietti, no recurso em habeas corpus n. 158.580, rompem a lógica colonialista, de reprodução do racismo arraigado no desenvolvimento estrutural da sociedade, que se serve do direito criminal para operar regulação discriminatória em favor da branquitude. Vejamos o argumento do Ministro Rogerio Schietti: “c) evitar a repetição - ainda que nem sempre consciente - de práticas que reproduzem preconceitos estruturais arraigados na sociedade, como é o caso do perfilamento racial, reflexo direto do racismo estrutural”. São dois horizontes a serem consolidados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.

BELTRAN, Jordi Ferrer. Prueba y Racionalidad de las Decisiones Judiciales. Pachuca de Soto: Editorial CEJI, 2019.

________. Prueba sin convicción. Madrid: Marcial Pons, 2021.

________. A valoração racional da prova. Trad. Vitor de Paula Ramos. 3º ed. rev. e atual. São Paulo: Juspodivm, 2023.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 158.580, decisão monocrática, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, DJe, 20/03/2023.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 782742, da 6º Turma, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, DJe, 20/09/2023.

CONECTAS. Racismo nas corporações: por que pessoas negras são mais abordadas pela polícia. Disponível em: https://www.conectas.org/noticias/racismo-nas-corporacoes-por-que-pessoas-negras-sao-mais-abordadas-pela-policia/. Acesso em 17/11/2023.

RODAS, Sergio. Palavra de policiais é o que mais influencia juízes em casos de tráfico, diz pesquisa. CONJUR. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-fev-23/palavra-pm-influencia-casos-trafico-estudo/. Acesso em 17/11/2023.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. trad. Ligia Fonseca Ferreira, Regina Salgado Campos. Rio de Janeiro: ZAHAR, 2022.

Máquina de moer gente preta [livro eletrônico]: a responsabilidade da branquitude / Silvia Ramos...[et al.]. – Rio de Janeiro : CESeC, 2022.

OXFAM. um-retrato-das-desigualdades-brasileiras. Disponível em:

https://www.oxfam.org.br/um-retrato-das-desigualdades-brasileiras/pesquisa-nos-e-as-desigualdades/pesquisa-nos-e-as-desigualdades-2022/. Acesso em 03/11/2023.

Pele alvo [livro eletrônico]: a bala não erra o negro / Silvia Ramos...[et al.]. – Rio de Janeiro : CESeC, 2023.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.

SEMER, Marcelo. Sentenciando o tráfico: pânico moral e estado de negação formando o papel dos juízes no grande encarceramento. 2019. Tese de Doutorado. Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo (USP), 2019.

TARUFFO, Michele. Hacia la decisión justa. Lima: Editorial Zela, 2020.

*Thiago Turbay Freiria é mestre em Direito pela Universitat de Girona (UdG/ES), mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), especialista em raciocínio probatório pela UdG, especialista em técnicas de interpretação e motivação das decisões judiciais (UdG), especialista em Direito Probatório pela Universidad Alberto Hurtado (Chile), advogado criminal

Há incontestável afetação da cultura nacional e das instituições ao que Frantz Fanon chama de “erosão empreendida pelo colonialismo”. O racismo é o escape civilizatório e estratégia de dominação mais aplicada. Dados da Oxfam Brasil e do Instituto Datafolha apontam que 86% dos entrevistados, de um total de 2.564 pessoas - distribuídas em 130 municípios brasileiros -, acreditam que a cor da pele influencia a decisão de uma abordagem policial. Destes, 79% concordam que a justiça é mais “dura” com negros. Os dados foram registrados em 2022, havendo uma série histórica a ser considerada.

Thiago Turbay Freiria Foto: Divulgação

Em 2021, 84% dos entrevistados disseram acreditar que a cor é determinante para a ação policial. No mesmo ano, 78% disseram que a justiça é mais rígida com pretas e pretos. O relatório Pele Alvo, da Rede de Observatórios da Segurança, um projeto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), traz dados igualmente impactantes acerca da violência letal praticada pela polícia. Vejamos:

“É possível ver a capilaridade da violência policial com a população negra ao nos depararmos com números alarmantes de vítimas da violência armada do Estado: negros representam 94,76% na Bahia, 80,43% no Ceará, 93,90% no Pará, 89,66% em Pernambuco, 88,24% no Piauí, 86,98% no Rio de Janeiro e 63,90% em São Paulo”.

Os dados são aterradores e revelam as camadas de ação do Estado que intensificam e concretam o racismo estrutural. Sobrevém uma outra arguição: é possível justificar racionalmente uma decisão judicial mediante argumentos racistas?

Para avançar, é preciso conceituar o racismo dentro de um marco teórico capaz de atender as especificidades da análise. Adotarei o conceito de racismo estrutural, nos seguintes termos: é o mecanismo de domínio sobre o outro, preto e preta, aplicado na estruturação do poder e no balizamento das relações comunitárias e transindividuais, por meio da racionalização do agir Estatal em reforço à apropriação do outro e a fadiga de direitos e liberdades, diminuindo, sobremaneira, o estado de civilidade mediante uso da força, bem como reduzindo os espaços de emancipação individual, de raça e identidade.

Silvio Almeida condensa esses tópicos quando aperfeiçoa o conceito de Racismo Estrutural e dispõe sobre características inerentes à formação da sociedade brasileira. É o ponto de partida. Silvio Almeida diz: “desse modo, se é possível falar de um racismo institucional, significa que a imposição de regras e padrões racistas por parte da instituição é de alguma maneira vinculada à ordem social que ela visa resguardar”. A organização social na configuração da raça por parte do judiciário é componente do Racismo Estrutural.

Adentrando o campo específico de análise, a justiça criminal sustenta o racismo estrutural à medida em que age para a conformação de espaços de asfixia e rompimento da emancipação preta. O agir da justiça criminal é sutil e se estrutura por meio de táticas jurisdicionais que reforçam o racismo. O objeto geral de análise são decisões judiciais que se servem de argumentos úteis para manter pessoas pretas dentro do sistema carcerário. Há circunstâncias estruturantes que se somam à deficiência de legitimação das decisões, à exemplo da dificuldade de acesso à defesa técnica (deficiência de assistência e acesso à justiça), de apartação pública (encarceramento provisório massivo) e expiação no processo penal (probabilidade de condenação por meio de deficiências probatórias e vieses cognitivos), marcando a população preta de caracteres estigmatizantes e cíclicos frente à justiça criminal.

O processo é histórico e permeia a produção legislativa nacional. Todavia, o objeto específico de investigação está nos fundamentos ancorados em decisões judiciais, cujos predecessores são dois argumentos: 1) a prisão em casos em que há fuga após o avistamento de agentes de segurança pública e; 2) a busca pessoal de pessoas localizadas em locais reconhecidos pelo tráfico de drogas.

A amostra sobre a qual desenvolverei meu raciocínio é o habeas corpus n. 782742/SC, julgado em 12/09/2023, de relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior, do Superior Tribunal de Justiça. Não se trata de análise quantitativa de decisões proferidas com teor equivalente, mas de eleição do processo como paradigmático para fins de reflexão. Interessa-me a análise crítica do objeto de pesquisa.

Na ocasião, o Tribunal negou a concessão da ordem para anular busca pessoal, sob argumento de que havia suspeitas fundadas de ocorrência de delito. O relator, Ministro Sebastião Reis, apresentou voto contrário à tese, instando a Corte à avaliação de que tal fundamentação ancorava argumentos racistas, mas foi vencido. O Ministro Rogerio Schietti ponderou que as proposições, per si, não são suficientes para considerar a hipótese de ocorrência de delito. Todavia, o desfecho foi outro.

O argumento que deu sustentação ao resultado jurisdicional, que denegou a ordem, rejeitando a pretensão da defesa de anular a busca pessoal realizada por agentes policiais, pode ser deduzido da seguinte forma: é lícita a ação policial em razão de haver justificativa suficiente que legitima a abordagem, existindo causas juridicamente válidas para efetivação da medida.

As duas proposições que descrevem os fatos condicionantes da decisão judicial são: a) o autor do delito estava em local reconhecido como ponto de traficância; b) empreendeu fuga após o avistamento da polícia. Os enunciados foram considerados verdadeiros pelo Superior Tribunal de Justiça, o que equivale a dizer que correspondem à realidade e, outrossim, foram suficientemente provados no processo judicial. Dessa maneira, justificou-se a ação policial em razão do Superior Tribunal de Justiça considerar que as proposições mencionadas são idôneas para justificar a hipótese de ocorrência de um delito, que recebe reproche em razão de conter norma jurídica que proíbe tal comportamento.

Se avaliarmos a hipótese fática deduzida, considerando as proposições acima elencadas, chegaremos à conclusão de que estar próximo a local reconhecido como ponto de traficância e empreender fuga após avistamento da política equivale a considerar suficientemente provado que há elementos informacionais que dão sustentação ao seguinte raciocínio: se as proposições fáticas “a” e “b” estiverem presentes, a hipótese de ocorrência do delito será verdadeira.

A justificação jurídica empreendida no processo judicial em análise deve ser questionada, sobretudo, se considerarmos a necessidade de aquilatar o raciocínio judicial, instituindo critérios de decisões sobre os fatos que observem exigências racionais para considerar haver razões adequadas em favor da veracidade das alegações, ou, que o desvalor da conduta está justificado pelas provas constituídas no processo.

Os critérios de decisões, notadamente, devem ser aplicados após a filtragem das proposições fáticas. Essa filtragem é regulada pelo próprio ordenamento jurídico e pela observância de valores protegidos pelo direito, sendo vetado - no processo penal - valorar informações obtidas ilicitamente. O direito não pode incentivar conduta que o próprio determina ser proibida, exemplo óbvio são as provas obtidas mediante tortura. Outros filtros dizem respeito ao controle dos procedimentos de obtenção de dados informacionais, à confiabilidade da prova, a sua relevância e pertinência. Passados os filtros iniciais, de admissibilidade, deve-se concentrar na valoração dos fatos, na atribuição de valor de verdade aos fatos consolidados no processo. Essa atribuição de valor é indivisível à motivação da decisão judicial sobre os fatos.

Jordi Ferrer Beltrán assevera que a resolução do processo judicial deve guardar relação com o objetivo de averiguação da verdade, considerada a partir da correspondência do enunciado descritivo do fato alocado no processo judicial e o fato havido no mundo fenomênico, condição para que seja adequadamente motivada, a decisão. Vejamos: “si una de las funciones principales del derecho es la regulación de la conducta, el cumplimiento de esta función requiere que en el proceso se apliquen las consecuencias jurídicas previstas en las normas si, y sólo si, se han producido efectivamente los hechos condicionantes de esas consecuencias”.

Para estar racionalmente motivada, a decisão que estabelece valor de verdade aos fatos descritos no processo judicial deve observar critérios de decisão, que aplicados ao raciocínio probatório devem ser capazes de estipular o grau de corroboração – expressado por meio de probabilidade indutiva, não numérica - da hipótese aventada. Deve-se predicar o raciocínio probatório em decorrência do grau de confirmação da ocorrência da hipótese, considerando os fatos enunciados e o conjunto de informações relevantes obtidas, o que permite aceitar racionalmente que a proposição deduzida como premissa corresponde aos fatos havidos, legitimando a aplicação da consequência jurídica prevista pela norma.

Para confirmar racionalmente a hipótese, todavia, é necessário aplicar regras de inferência, mediante testagem a partir de filtros racionais em favor da correção do raciocínio aplicado. As regras de inferências são as garantias de que o resultado inferencial está justificado racionalmente e pode ser reproduzido metodologicamente. Estas regras são extraídas da epistemologia, dos conhecimentos científicos afiançados por comunidades de especialistas, e devem obedecer às normas da lógica e as máximas de experiência.

Por certo, voltando ao caso paradigmático, objeto de investigação, não há boas razões para crer que há inferências legítimas que apoiam o argumento de validade das hipóteses decorrentes das proposições fáticas “a” e “b”, ou que estas estejam amparadas por regras inferenciais que se submetem ao crivo racional. É difícil sustentar epistemicamente que pessoas que foram localizadas em locais conhecidos por pontos de drogas e fogem da polícia são autores de delito. Não há qualquer justificativa plausível para crer que populações marginais são, sobretudo, concretamente associadas ao tráfico de drogas. Aqueles que se orientam por eventos meramente probabilísticos generalizantes, que servem exclusivamente para diagnosticar uma frequência, poderão argumentar que há mais pessoas envolvidas no tráfico de drogas em comunidades pobres. Todavia, esse argumento não pode ser diretor de um evento específico, em razão de estabelecer critério de decisão estigmatizante e que não oferta razões acerca do evento concreto “fulano é morador de comunidade pobre e realiza delitos, especialmente, tráfico de drogas”. Admitir esse argumento é consolidar a tese que rompe as forças de emancipação do povo preto, que Fanon nomeia de “reivindicação mínima do colonizado”. Contrariar essa ótica de dominação pelo direito corresponde a desconstruir o mundo colonial compartimentado, que exclui o povo preto.

Não há conhecimentos científicos afiançados, ainda que dentro do campo das ciências sociais e do comportamento, capazes de justificar racionalmente que pessoas que vivem em áreas dominadas pelo tráfico e que fogem da polícia estão determinadas intransigentemente a praticar delito, em especial, tráfico de drogas. Igualmente, as normas da lógica não sustentam a correção de raciocínio que relaciona as premissas fáticas “a” (localizado em local conhecido como ponto de droga) e “b” (fuga da polícia) à conclusão “c”: prática de delito, em especial aqueles contidos na Lei 11.343/06 (Lei de Drogas). Não há uma relação causal racionalmente justificada.

Por último, as máximas de experiência, que constituem generalizações atribuídas à determinada sociedade, inseridas num marco de cultura homogeneizada e operativa. Tais generalizações podem ser úteis à fim de produzir inferências racionalizáveis, apoiando conclusões acerca da ocorrência de um fato cuja generalização é racionalmente aceita. As máximas de experiência reproduzem frequências genericamente aceitas, a partir de uma observação de prevalência da ocorrência de um evento. Todavia, essas generalizações não ofertam dados concretos sobre o fato individual. Com maior gravidade, reproduzir generalizações carregadas de preconceitos reforça o racismo estrutural. Esse é o ponto central da investigação. Referendar argumentos em favor da conclusão de que as proposições fáticas “a” e “b” conduzem logicamente à conclusão em favor da hipótese de ocorrência do delito equivale a referendar um argumento preconceituoso, inquinado por concepções históricas arraigadas no colonialismo escravagista, que operam a favor de uma ordem de mantença de domínio e radicação do indivíduo inserido em comunidades carentes e que são sujeitados à violência policial, notadamente, a população preta.

Havendo inferências divergentes que possam ser confirmadas racionalmente, em contraste à hipótese fática deduzida, tampouco, há de se falar em justificação racional, em termos conceituais. A hipótese que assevera que os locais reconhecidos por tráfico de droga têm população envolvida com a traficância é racionalmente injustificável. O argumento também está inserido em uma ótica compartimentada e apresenta generalizações perigosas.

Dados compilados, em 2018, pela Diretoria de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD), do Ministério da Justiça, revelam que em 65,84% das condenações criminais relativas ao delito do artigo 33 da Lei 11.343/06, ocorridas no Rio de Janeiro, houve apreensão de droga em favelas. O argumento de que o local era reconhecido como ponto de venda foi mencionado em 42% dos processos judiciais.

Durante entrevista concedida à Conectas, organização não governamental de Direitos Humanos, a pesquisadora do coletivo Iniciativa Negra, Lays Araújo, asseverou que “esse sistema de justiça que atua com base em perfis raciais traçados e bem definidos é o principal impulsionador da necropolítica. Porque nós sabemos que esses perfis têm o endereço periférico e a pele negra”. Reproduz-se, nessa lógica, argumentos cujos critérios de decisão são baseados, não raramente, em máximas de experiência que contenham concepções racistas, devendo-se reproche institucional e esforço teórico, para impedir decisões judiciais com esse teor, concedendo artificial autorização ao agir discriminatório.

A institucionalização do racismo, no âmbito do processo criminal, outrora, foi objeto de observação por Marcelo Semer:

“Do racismo institucionalizado, com o imaginário construído pela mídia, às facilidades de abordagem aos guetos negros de população pobre, saíram consequências inquietantes: permanente exclusão de jurados negros, abordagens desproporcionais entre negros e brancos, prisões, acusações e condenações racialmente díspares [...].

O avance da análise da proposição fática “b”, fuga após avistamento da polícia, de igual maneira, reproduz o argumento acerca de haver razões suficientes para crer ser verdadeira a hipótese de ocorrência do delito, conforme depreende-se do voto vencedor no habeas corpus n. 782742/SC. Há outros argumentos logicamente dedutíveis que não foram avaliados, que apresentam hipótese alternativa à ocorrência da hipótese inculpatória deduzida, o que contradiz a inferência vencedora, no caso concreto. Segundo o relatório “A máquina de moer gente preta: a responsabilidade da branquitude”, da Rede de Observatórios da Segurança, foram registrados 21.563 eventos de violência, criminalidade e segurança, entre agosto de 2021 e julho de 2022, recebendo destaque o número de eventos relacionados às ações policiais. Foram 12.042 eventos relacionados à violência policial no período. O levantamento, cujo objetivo declarado foi identificar possíveis causas, revela o racismo estrutural e o pacto da branquitude. Vejamos:

“O processo de desumanização a que os negros são submetidos há alguns séculos nessas terras é irmão siamês de toda violência descomunal que lhe é perpetrada. Ora, se há um modelo ideal de humanidade que é uma contraposição a quem eu sou, logo minha vida é indigna e o meu corpo indesejado. Aqui mora o casamento entre as percepções simbólicas criadas pelos brancos a partir do modelo único de humanidade e a materialidade brutal do racismo diário. Nesse sentido, existe uma simbiose entre aquilo que está na ordem ideológica do sistema de dominação racial e a tangibilidade desse sistema, seja através do monopólio das instituições, dos símbolos e dos postos de maior estima social, seja em sua face mais perversa, como nos assassinatos de Marcos, Moïse, Marielle, Miguel, Ágatha e nos próximos que infelizmente ainda virão”.

O Relatório Pele Alvo, da mesma instituição, por sua vez, aponta cifras aterradoras de mortes da população preta por meio da violência armada do Estado: 94,76% na Bahia, 80,43% no Ceará, 93,90% no Pará, 89,66% em Pernambuco, 88,24% no Piauí, 86,98% no Rio de Janeiro e 63,90% em São Paulo.

É razoável crer que a população preta sofre de maneira prevalente a violência policial, havendo boas razões – dedutíveis mediante raciocínio indutivo – para crer racionalmente que a população preta ao avistar a polícia empreenda fuga, dado que é razoável crer que ninguém é obrigado a suportar a violência contra si.

Consideremos o esquema argumentativo cujas premissas fáticas (P1 e P2) e a conclusão (C) são: P1 - a população preta é vítima da violência policial; P2 - fulano é preto; C - fulano é provavelmente vítima de violência policial. O esquema argumentativo deságua na desacreditação racional do raciocínio judicial que atribui valor de verdade à hipótese em favor da ocorrência de delito em casos em que há fuga do indivíduo após o avistamento da polícia. As hipóteses contrárias à ocorrência do fato impõem uma revisão de olhar e invalidação racional de argumento judicial que considera verdadeira a hipótese formulada nesses termos, conforme o habeas corpus objeto de investigação.

Traçado o panorama geral do objeto de investigação, duas últimas anotações são necessárias. O voto do Ministro Sebastião Reis Júnior, nos autos do habeas corpus n. 782742/SC e o voto do Ministro Rogerio Schietti, no recurso em habeas corpus n. 158.580, rompem a lógica colonialista, de reprodução do racismo arraigado no desenvolvimento estrutural da sociedade, que se serve do direito criminal para operar regulação discriminatória em favor da branquitude. Vejamos o argumento do Ministro Rogerio Schietti: “c) evitar a repetição - ainda que nem sempre consciente - de práticas que reproduzem preconceitos estruturais arraigados na sociedade, como é o caso do perfilamento racial, reflexo direto do racismo estrutural”. São dois horizontes a serem consolidados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BELTRAN, Jordi Ferrer. Prueba y Racionalidad de las Decisiones Judiciales. Pachuca de Soto: Editorial CEJI, 2019.

________. Prueba sin convicción. Madrid: Marcial Pons, 2021.

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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 158.580, decisão monocrática, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, DJe, 20/03/2023.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 782742, da 6º Turma, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, DJe, 20/09/2023.

CONECTAS. Racismo nas corporações: por que pessoas negras são mais abordadas pela polícia. Disponível em: https://www.conectas.org/noticias/racismo-nas-corporacoes-por-que-pessoas-negras-sao-mais-abordadas-pela-policia/. Acesso em 17/11/2023.

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FANON, Frantz. Os condenados da terra. trad. Ligia Fonseca Ferreira, Regina Salgado Campos. Rio de Janeiro: ZAHAR, 2022.

Máquina de moer gente preta [livro eletrônico]: a responsabilidade da branquitude / Silvia Ramos...[et al.]. – Rio de Janeiro : CESeC, 2022.

OXFAM. um-retrato-das-desigualdades-brasileiras. Disponível em:

https://www.oxfam.org.br/um-retrato-das-desigualdades-brasileiras/pesquisa-nos-e-as-desigualdades/pesquisa-nos-e-as-desigualdades-2022/. Acesso em 03/11/2023.

Pele alvo [livro eletrônico]: a bala não erra o negro / Silvia Ramos...[et al.]. – Rio de Janeiro : CESeC, 2023.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.

SEMER, Marcelo. Sentenciando o tráfico: pânico moral e estado de negação formando o papel dos juízes no grande encarceramento. 2019. Tese de Doutorado. Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo (USP), 2019.

TARUFFO, Michele. Hacia la decisión justa. Lima: Editorial Zela, 2020.

*Thiago Turbay Freiria é mestre em Direito pela Universitat de Girona (UdG/ES), mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), especialista em raciocínio probatório pela UdG, especialista em técnicas de interpretação e motivação das decisões judiciais (UdG), especialista em Direito Probatório pela Universidad Alberto Hurtado (Chile), advogado criminal

Há incontestável afetação da cultura nacional e das instituições ao que Frantz Fanon chama de “erosão empreendida pelo colonialismo”. O racismo é o escape civilizatório e estratégia de dominação mais aplicada. Dados da Oxfam Brasil e do Instituto Datafolha apontam que 86% dos entrevistados, de um total de 2.564 pessoas - distribuídas em 130 municípios brasileiros -, acreditam que a cor da pele influencia a decisão de uma abordagem policial. Destes, 79% concordam que a justiça é mais “dura” com negros. Os dados foram registrados em 2022, havendo uma série histórica a ser considerada.

Thiago Turbay Freiria Foto: Divulgação

Em 2021, 84% dos entrevistados disseram acreditar que a cor é determinante para a ação policial. No mesmo ano, 78% disseram que a justiça é mais rígida com pretas e pretos. O relatório Pele Alvo, da Rede de Observatórios da Segurança, um projeto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), traz dados igualmente impactantes acerca da violência letal praticada pela polícia. Vejamos:

“É possível ver a capilaridade da violência policial com a população negra ao nos depararmos com números alarmantes de vítimas da violência armada do Estado: negros representam 94,76% na Bahia, 80,43% no Ceará, 93,90% no Pará, 89,66% em Pernambuco, 88,24% no Piauí, 86,98% no Rio de Janeiro e 63,90% em São Paulo”.

Os dados são aterradores e revelam as camadas de ação do Estado que intensificam e concretam o racismo estrutural. Sobrevém uma outra arguição: é possível justificar racionalmente uma decisão judicial mediante argumentos racistas?

Para avançar, é preciso conceituar o racismo dentro de um marco teórico capaz de atender as especificidades da análise. Adotarei o conceito de racismo estrutural, nos seguintes termos: é o mecanismo de domínio sobre o outro, preto e preta, aplicado na estruturação do poder e no balizamento das relações comunitárias e transindividuais, por meio da racionalização do agir Estatal em reforço à apropriação do outro e a fadiga de direitos e liberdades, diminuindo, sobremaneira, o estado de civilidade mediante uso da força, bem como reduzindo os espaços de emancipação individual, de raça e identidade.

Silvio Almeida condensa esses tópicos quando aperfeiçoa o conceito de Racismo Estrutural e dispõe sobre características inerentes à formação da sociedade brasileira. É o ponto de partida. Silvio Almeida diz: “desse modo, se é possível falar de um racismo institucional, significa que a imposição de regras e padrões racistas por parte da instituição é de alguma maneira vinculada à ordem social que ela visa resguardar”. A organização social na configuração da raça por parte do judiciário é componente do Racismo Estrutural.

Adentrando o campo específico de análise, a justiça criminal sustenta o racismo estrutural à medida em que age para a conformação de espaços de asfixia e rompimento da emancipação preta. O agir da justiça criminal é sutil e se estrutura por meio de táticas jurisdicionais que reforçam o racismo. O objeto geral de análise são decisões judiciais que se servem de argumentos úteis para manter pessoas pretas dentro do sistema carcerário. Há circunstâncias estruturantes que se somam à deficiência de legitimação das decisões, à exemplo da dificuldade de acesso à defesa técnica (deficiência de assistência e acesso à justiça), de apartação pública (encarceramento provisório massivo) e expiação no processo penal (probabilidade de condenação por meio de deficiências probatórias e vieses cognitivos), marcando a população preta de caracteres estigmatizantes e cíclicos frente à justiça criminal.

O processo é histórico e permeia a produção legislativa nacional. Todavia, o objeto específico de investigação está nos fundamentos ancorados em decisões judiciais, cujos predecessores são dois argumentos: 1) a prisão em casos em que há fuga após o avistamento de agentes de segurança pública e; 2) a busca pessoal de pessoas localizadas em locais reconhecidos pelo tráfico de drogas.

A amostra sobre a qual desenvolverei meu raciocínio é o habeas corpus n. 782742/SC, julgado em 12/09/2023, de relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior, do Superior Tribunal de Justiça. Não se trata de análise quantitativa de decisões proferidas com teor equivalente, mas de eleição do processo como paradigmático para fins de reflexão. Interessa-me a análise crítica do objeto de pesquisa.

Na ocasião, o Tribunal negou a concessão da ordem para anular busca pessoal, sob argumento de que havia suspeitas fundadas de ocorrência de delito. O relator, Ministro Sebastião Reis, apresentou voto contrário à tese, instando a Corte à avaliação de que tal fundamentação ancorava argumentos racistas, mas foi vencido. O Ministro Rogerio Schietti ponderou que as proposições, per si, não são suficientes para considerar a hipótese de ocorrência de delito. Todavia, o desfecho foi outro.

O argumento que deu sustentação ao resultado jurisdicional, que denegou a ordem, rejeitando a pretensão da defesa de anular a busca pessoal realizada por agentes policiais, pode ser deduzido da seguinte forma: é lícita a ação policial em razão de haver justificativa suficiente que legitima a abordagem, existindo causas juridicamente válidas para efetivação da medida.

As duas proposições que descrevem os fatos condicionantes da decisão judicial são: a) o autor do delito estava em local reconhecido como ponto de traficância; b) empreendeu fuga após o avistamento da polícia. Os enunciados foram considerados verdadeiros pelo Superior Tribunal de Justiça, o que equivale a dizer que correspondem à realidade e, outrossim, foram suficientemente provados no processo judicial. Dessa maneira, justificou-se a ação policial em razão do Superior Tribunal de Justiça considerar que as proposições mencionadas são idôneas para justificar a hipótese de ocorrência de um delito, que recebe reproche em razão de conter norma jurídica que proíbe tal comportamento.

Se avaliarmos a hipótese fática deduzida, considerando as proposições acima elencadas, chegaremos à conclusão de que estar próximo a local reconhecido como ponto de traficância e empreender fuga após avistamento da política equivale a considerar suficientemente provado que há elementos informacionais que dão sustentação ao seguinte raciocínio: se as proposições fáticas “a” e “b” estiverem presentes, a hipótese de ocorrência do delito será verdadeira.

A justificação jurídica empreendida no processo judicial em análise deve ser questionada, sobretudo, se considerarmos a necessidade de aquilatar o raciocínio judicial, instituindo critérios de decisões sobre os fatos que observem exigências racionais para considerar haver razões adequadas em favor da veracidade das alegações, ou, que o desvalor da conduta está justificado pelas provas constituídas no processo.

Os critérios de decisões, notadamente, devem ser aplicados após a filtragem das proposições fáticas. Essa filtragem é regulada pelo próprio ordenamento jurídico e pela observância de valores protegidos pelo direito, sendo vetado - no processo penal - valorar informações obtidas ilicitamente. O direito não pode incentivar conduta que o próprio determina ser proibida, exemplo óbvio são as provas obtidas mediante tortura. Outros filtros dizem respeito ao controle dos procedimentos de obtenção de dados informacionais, à confiabilidade da prova, a sua relevância e pertinência. Passados os filtros iniciais, de admissibilidade, deve-se concentrar na valoração dos fatos, na atribuição de valor de verdade aos fatos consolidados no processo. Essa atribuição de valor é indivisível à motivação da decisão judicial sobre os fatos.

Jordi Ferrer Beltrán assevera que a resolução do processo judicial deve guardar relação com o objetivo de averiguação da verdade, considerada a partir da correspondência do enunciado descritivo do fato alocado no processo judicial e o fato havido no mundo fenomênico, condição para que seja adequadamente motivada, a decisão. Vejamos: “si una de las funciones principales del derecho es la regulación de la conducta, el cumplimiento de esta función requiere que en el proceso se apliquen las consecuencias jurídicas previstas en las normas si, y sólo si, se han producido efectivamente los hechos condicionantes de esas consecuencias”.

Para estar racionalmente motivada, a decisão que estabelece valor de verdade aos fatos descritos no processo judicial deve observar critérios de decisão, que aplicados ao raciocínio probatório devem ser capazes de estipular o grau de corroboração – expressado por meio de probabilidade indutiva, não numérica - da hipótese aventada. Deve-se predicar o raciocínio probatório em decorrência do grau de confirmação da ocorrência da hipótese, considerando os fatos enunciados e o conjunto de informações relevantes obtidas, o que permite aceitar racionalmente que a proposição deduzida como premissa corresponde aos fatos havidos, legitimando a aplicação da consequência jurídica prevista pela norma.

Para confirmar racionalmente a hipótese, todavia, é necessário aplicar regras de inferência, mediante testagem a partir de filtros racionais em favor da correção do raciocínio aplicado. As regras de inferências são as garantias de que o resultado inferencial está justificado racionalmente e pode ser reproduzido metodologicamente. Estas regras são extraídas da epistemologia, dos conhecimentos científicos afiançados por comunidades de especialistas, e devem obedecer às normas da lógica e as máximas de experiência.

Por certo, voltando ao caso paradigmático, objeto de investigação, não há boas razões para crer que há inferências legítimas que apoiam o argumento de validade das hipóteses decorrentes das proposições fáticas “a” e “b”, ou que estas estejam amparadas por regras inferenciais que se submetem ao crivo racional. É difícil sustentar epistemicamente que pessoas que foram localizadas em locais conhecidos por pontos de drogas e fogem da polícia são autores de delito. Não há qualquer justificativa plausível para crer que populações marginais são, sobretudo, concretamente associadas ao tráfico de drogas. Aqueles que se orientam por eventos meramente probabilísticos generalizantes, que servem exclusivamente para diagnosticar uma frequência, poderão argumentar que há mais pessoas envolvidas no tráfico de drogas em comunidades pobres. Todavia, esse argumento não pode ser diretor de um evento específico, em razão de estabelecer critério de decisão estigmatizante e que não oferta razões acerca do evento concreto “fulano é morador de comunidade pobre e realiza delitos, especialmente, tráfico de drogas”. Admitir esse argumento é consolidar a tese que rompe as forças de emancipação do povo preto, que Fanon nomeia de “reivindicação mínima do colonizado”. Contrariar essa ótica de dominação pelo direito corresponde a desconstruir o mundo colonial compartimentado, que exclui o povo preto.

Não há conhecimentos científicos afiançados, ainda que dentro do campo das ciências sociais e do comportamento, capazes de justificar racionalmente que pessoas que vivem em áreas dominadas pelo tráfico e que fogem da polícia estão determinadas intransigentemente a praticar delito, em especial, tráfico de drogas. Igualmente, as normas da lógica não sustentam a correção de raciocínio que relaciona as premissas fáticas “a” (localizado em local conhecido como ponto de droga) e “b” (fuga da polícia) à conclusão “c”: prática de delito, em especial aqueles contidos na Lei 11.343/06 (Lei de Drogas). Não há uma relação causal racionalmente justificada.

Por último, as máximas de experiência, que constituem generalizações atribuídas à determinada sociedade, inseridas num marco de cultura homogeneizada e operativa. Tais generalizações podem ser úteis à fim de produzir inferências racionalizáveis, apoiando conclusões acerca da ocorrência de um fato cuja generalização é racionalmente aceita. As máximas de experiência reproduzem frequências genericamente aceitas, a partir de uma observação de prevalência da ocorrência de um evento. Todavia, essas generalizações não ofertam dados concretos sobre o fato individual. Com maior gravidade, reproduzir generalizações carregadas de preconceitos reforça o racismo estrutural. Esse é o ponto central da investigação. Referendar argumentos em favor da conclusão de que as proposições fáticas “a” e “b” conduzem logicamente à conclusão em favor da hipótese de ocorrência do delito equivale a referendar um argumento preconceituoso, inquinado por concepções históricas arraigadas no colonialismo escravagista, que operam a favor de uma ordem de mantença de domínio e radicação do indivíduo inserido em comunidades carentes e que são sujeitados à violência policial, notadamente, a população preta.

Havendo inferências divergentes que possam ser confirmadas racionalmente, em contraste à hipótese fática deduzida, tampouco, há de se falar em justificação racional, em termos conceituais. A hipótese que assevera que os locais reconhecidos por tráfico de droga têm população envolvida com a traficância é racionalmente injustificável. O argumento também está inserido em uma ótica compartimentada e apresenta generalizações perigosas.

Dados compilados, em 2018, pela Diretoria de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD), do Ministério da Justiça, revelam que em 65,84% das condenações criminais relativas ao delito do artigo 33 da Lei 11.343/06, ocorridas no Rio de Janeiro, houve apreensão de droga em favelas. O argumento de que o local era reconhecido como ponto de venda foi mencionado em 42% dos processos judiciais.

Durante entrevista concedida à Conectas, organização não governamental de Direitos Humanos, a pesquisadora do coletivo Iniciativa Negra, Lays Araújo, asseverou que “esse sistema de justiça que atua com base em perfis raciais traçados e bem definidos é o principal impulsionador da necropolítica. Porque nós sabemos que esses perfis têm o endereço periférico e a pele negra”. Reproduz-se, nessa lógica, argumentos cujos critérios de decisão são baseados, não raramente, em máximas de experiência que contenham concepções racistas, devendo-se reproche institucional e esforço teórico, para impedir decisões judiciais com esse teor, concedendo artificial autorização ao agir discriminatório.

A institucionalização do racismo, no âmbito do processo criminal, outrora, foi objeto de observação por Marcelo Semer:

“Do racismo institucionalizado, com o imaginário construído pela mídia, às facilidades de abordagem aos guetos negros de população pobre, saíram consequências inquietantes: permanente exclusão de jurados negros, abordagens desproporcionais entre negros e brancos, prisões, acusações e condenações racialmente díspares [...].

O avance da análise da proposição fática “b”, fuga após avistamento da polícia, de igual maneira, reproduz o argumento acerca de haver razões suficientes para crer ser verdadeira a hipótese de ocorrência do delito, conforme depreende-se do voto vencedor no habeas corpus n. 782742/SC. Há outros argumentos logicamente dedutíveis que não foram avaliados, que apresentam hipótese alternativa à ocorrência da hipótese inculpatória deduzida, o que contradiz a inferência vencedora, no caso concreto. Segundo o relatório “A máquina de moer gente preta: a responsabilidade da branquitude”, da Rede de Observatórios da Segurança, foram registrados 21.563 eventos de violência, criminalidade e segurança, entre agosto de 2021 e julho de 2022, recebendo destaque o número de eventos relacionados às ações policiais. Foram 12.042 eventos relacionados à violência policial no período. O levantamento, cujo objetivo declarado foi identificar possíveis causas, revela o racismo estrutural e o pacto da branquitude. Vejamos:

“O processo de desumanização a que os negros são submetidos há alguns séculos nessas terras é irmão siamês de toda violência descomunal que lhe é perpetrada. Ora, se há um modelo ideal de humanidade que é uma contraposição a quem eu sou, logo minha vida é indigna e o meu corpo indesejado. Aqui mora o casamento entre as percepções simbólicas criadas pelos brancos a partir do modelo único de humanidade e a materialidade brutal do racismo diário. Nesse sentido, existe uma simbiose entre aquilo que está na ordem ideológica do sistema de dominação racial e a tangibilidade desse sistema, seja através do monopólio das instituições, dos símbolos e dos postos de maior estima social, seja em sua face mais perversa, como nos assassinatos de Marcos, Moïse, Marielle, Miguel, Ágatha e nos próximos que infelizmente ainda virão”.

O Relatório Pele Alvo, da mesma instituição, por sua vez, aponta cifras aterradoras de mortes da população preta por meio da violência armada do Estado: 94,76% na Bahia, 80,43% no Ceará, 93,90% no Pará, 89,66% em Pernambuco, 88,24% no Piauí, 86,98% no Rio de Janeiro e 63,90% em São Paulo.

É razoável crer que a população preta sofre de maneira prevalente a violência policial, havendo boas razões – dedutíveis mediante raciocínio indutivo – para crer racionalmente que a população preta ao avistar a polícia empreenda fuga, dado que é razoável crer que ninguém é obrigado a suportar a violência contra si.

Consideremos o esquema argumentativo cujas premissas fáticas (P1 e P2) e a conclusão (C) são: P1 - a população preta é vítima da violência policial; P2 - fulano é preto; C - fulano é provavelmente vítima de violência policial. O esquema argumentativo deságua na desacreditação racional do raciocínio judicial que atribui valor de verdade à hipótese em favor da ocorrência de delito em casos em que há fuga do indivíduo após o avistamento da polícia. As hipóteses contrárias à ocorrência do fato impõem uma revisão de olhar e invalidação racional de argumento judicial que considera verdadeira a hipótese formulada nesses termos, conforme o habeas corpus objeto de investigação.

Traçado o panorama geral do objeto de investigação, duas últimas anotações são necessárias. O voto do Ministro Sebastião Reis Júnior, nos autos do habeas corpus n. 782742/SC e o voto do Ministro Rogerio Schietti, no recurso em habeas corpus n. 158.580, rompem a lógica colonialista, de reprodução do racismo arraigado no desenvolvimento estrutural da sociedade, que se serve do direito criminal para operar regulação discriminatória em favor da branquitude. Vejamos o argumento do Ministro Rogerio Schietti: “c) evitar a repetição - ainda que nem sempre consciente - de práticas que reproduzem preconceitos estruturais arraigados na sociedade, como é o caso do perfilamento racial, reflexo direto do racismo estrutural”. São dois horizontes a serem consolidados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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FANON, Frantz. Os condenados da terra. trad. Ligia Fonseca Ferreira, Regina Salgado Campos. Rio de Janeiro: ZAHAR, 2022.

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*Thiago Turbay Freiria é mestre em Direito pela Universitat de Girona (UdG/ES), mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), especialista em raciocínio probatório pela UdG, especialista em técnicas de interpretação e motivação das decisões judiciais (UdG), especialista em Direito Probatório pela Universidad Alberto Hurtado (Chile), advogado criminal

Há incontestável afetação da cultura nacional e das instituições ao que Frantz Fanon chama de “erosão empreendida pelo colonialismo”. O racismo é o escape civilizatório e estratégia de dominação mais aplicada. Dados da Oxfam Brasil e do Instituto Datafolha apontam que 86% dos entrevistados, de um total de 2.564 pessoas - distribuídas em 130 municípios brasileiros -, acreditam que a cor da pele influencia a decisão de uma abordagem policial. Destes, 79% concordam que a justiça é mais “dura” com negros. Os dados foram registrados em 2022, havendo uma série histórica a ser considerada.

Thiago Turbay Freiria Foto: Divulgação

Em 2021, 84% dos entrevistados disseram acreditar que a cor é determinante para a ação policial. No mesmo ano, 78% disseram que a justiça é mais rígida com pretas e pretos. O relatório Pele Alvo, da Rede de Observatórios da Segurança, um projeto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), traz dados igualmente impactantes acerca da violência letal praticada pela polícia. Vejamos:

“É possível ver a capilaridade da violência policial com a população negra ao nos depararmos com números alarmantes de vítimas da violência armada do Estado: negros representam 94,76% na Bahia, 80,43% no Ceará, 93,90% no Pará, 89,66% em Pernambuco, 88,24% no Piauí, 86,98% no Rio de Janeiro e 63,90% em São Paulo”.

Os dados são aterradores e revelam as camadas de ação do Estado que intensificam e concretam o racismo estrutural. Sobrevém uma outra arguição: é possível justificar racionalmente uma decisão judicial mediante argumentos racistas?

Para avançar, é preciso conceituar o racismo dentro de um marco teórico capaz de atender as especificidades da análise. Adotarei o conceito de racismo estrutural, nos seguintes termos: é o mecanismo de domínio sobre o outro, preto e preta, aplicado na estruturação do poder e no balizamento das relações comunitárias e transindividuais, por meio da racionalização do agir Estatal em reforço à apropriação do outro e a fadiga de direitos e liberdades, diminuindo, sobremaneira, o estado de civilidade mediante uso da força, bem como reduzindo os espaços de emancipação individual, de raça e identidade.

Silvio Almeida condensa esses tópicos quando aperfeiçoa o conceito de Racismo Estrutural e dispõe sobre características inerentes à formação da sociedade brasileira. É o ponto de partida. Silvio Almeida diz: “desse modo, se é possível falar de um racismo institucional, significa que a imposição de regras e padrões racistas por parte da instituição é de alguma maneira vinculada à ordem social que ela visa resguardar”. A organização social na configuração da raça por parte do judiciário é componente do Racismo Estrutural.

Adentrando o campo específico de análise, a justiça criminal sustenta o racismo estrutural à medida em que age para a conformação de espaços de asfixia e rompimento da emancipação preta. O agir da justiça criminal é sutil e se estrutura por meio de táticas jurisdicionais que reforçam o racismo. O objeto geral de análise são decisões judiciais que se servem de argumentos úteis para manter pessoas pretas dentro do sistema carcerário. Há circunstâncias estruturantes que se somam à deficiência de legitimação das decisões, à exemplo da dificuldade de acesso à defesa técnica (deficiência de assistência e acesso à justiça), de apartação pública (encarceramento provisório massivo) e expiação no processo penal (probabilidade de condenação por meio de deficiências probatórias e vieses cognitivos), marcando a população preta de caracteres estigmatizantes e cíclicos frente à justiça criminal.

O processo é histórico e permeia a produção legislativa nacional. Todavia, o objeto específico de investigação está nos fundamentos ancorados em decisões judiciais, cujos predecessores são dois argumentos: 1) a prisão em casos em que há fuga após o avistamento de agentes de segurança pública e; 2) a busca pessoal de pessoas localizadas em locais reconhecidos pelo tráfico de drogas.

A amostra sobre a qual desenvolverei meu raciocínio é o habeas corpus n. 782742/SC, julgado em 12/09/2023, de relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior, do Superior Tribunal de Justiça. Não se trata de análise quantitativa de decisões proferidas com teor equivalente, mas de eleição do processo como paradigmático para fins de reflexão. Interessa-me a análise crítica do objeto de pesquisa.

Na ocasião, o Tribunal negou a concessão da ordem para anular busca pessoal, sob argumento de que havia suspeitas fundadas de ocorrência de delito. O relator, Ministro Sebastião Reis, apresentou voto contrário à tese, instando a Corte à avaliação de que tal fundamentação ancorava argumentos racistas, mas foi vencido. O Ministro Rogerio Schietti ponderou que as proposições, per si, não são suficientes para considerar a hipótese de ocorrência de delito. Todavia, o desfecho foi outro.

O argumento que deu sustentação ao resultado jurisdicional, que denegou a ordem, rejeitando a pretensão da defesa de anular a busca pessoal realizada por agentes policiais, pode ser deduzido da seguinte forma: é lícita a ação policial em razão de haver justificativa suficiente que legitima a abordagem, existindo causas juridicamente válidas para efetivação da medida.

As duas proposições que descrevem os fatos condicionantes da decisão judicial são: a) o autor do delito estava em local reconhecido como ponto de traficância; b) empreendeu fuga após o avistamento da polícia. Os enunciados foram considerados verdadeiros pelo Superior Tribunal de Justiça, o que equivale a dizer que correspondem à realidade e, outrossim, foram suficientemente provados no processo judicial. Dessa maneira, justificou-se a ação policial em razão do Superior Tribunal de Justiça considerar que as proposições mencionadas são idôneas para justificar a hipótese de ocorrência de um delito, que recebe reproche em razão de conter norma jurídica que proíbe tal comportamento.

Se avaliarmos a hipótese fática deduzida, considerando as proposições acima elencadas, chegaremos à conclusão de que estar próximo a local reconhecido como ponto de traficância e empreender fuga após avistamento da política equivale a considerar suficientemente provado que há elementos informacionais que dão sustentação ao seguinte raciocínio: se as proposições fáticas “a” e “b” estiverem presentes, a hipótese de ocorrência do delito será verdadeira.

A justificação jurídica empreendida no processo judicial em análise deve ser questionada, sobretudo, se considerarmos a necessidade de aquilatar o raciocínio judicial, instituindo critérios de decisões sobre os fatos que observem exigências racionais para considerar haver razões adequadas em favor da veracidade das alegações, ou, que o desvalor da conduta está justificado pelas provas constituídas no processo.

Os critérios de decisões, notadamente, devem ser aplicados após a filtragem das proposições fáticas. Essa filtragem é regulada pelo próprio ordenamento jurídico e pela observância de valores protegidos pelo direito, sendo vetado - no processo penal - valorar informações obtidas ilicitamente. O direito não pode incentivar conduta que o próprio determina ser proibida, exemplo óbvio são as provas obtidas mediante tortura. Outros filtros dizem respeito ao controle dos procedimentos de obtenção de dados informacionais, à confiabilidade da prova, a sua relevância e pertinência. Passados os filtros iniciais, de admissibilidade, deve-se concentrar na valoração dos fatos, na atribuição de valor de verdade aos fatos consolidados no processo. Essa atribuição de valor é indivisível à motivação da decisão judicial sobre os fatos.

Jordi Ferrer Beltrán assevera que a resolução do processo judicial deve guardar relação com o objetivo de averiguação da verdade, considerada a partir da correspondência do enunciado descritivo do fato alocado no processo judicial e o fato havido no mundo fenomênico, condição para que seja adequadamente motivada, a decisão. Vejamos: “si una de las funciones principales del derecho es la regulación de la conducta, el cumplimiento de esta función requiere que en el proceso se apliquen las consecuencias jurídicas previstas en las normas si, y sólo si, se han producido efectivamente los hechos condicionantes de esas consecuencias”.

Para estar racionalmente motivada, a decisão que estabelece valor de verdade aos fatos descritos no processo judicial deve observar critérios de decisão, que aplicados ao raciocínio probatório devem ser capazes de estipular o grau de corroboração – expressado por meio de probabilidade indutiva, não numérica - da hipótese aventada. Deve-se predicar o raciocínio probatório em decorrência do grau de confirmação da ocorrência da hipótese, considerando os fatos enunciados e o conjunto de informações relevantes obtidas, o que permite aceitar racionalmente que a proposição deduzida como premissa corresponde aos fatos havidos, legitimando a aplicação da consequência jurídica prevista pela norma.

Para confirmar racionalmente a hipótese, todavia, é necessário aplicar regras de inferência, mediante testagem a partir de filtros racionais em favor da correção do raciocínio aplicado. As regras de inferências são as garantias de que o resultado inferencial está justificado racionalmente e pode ser reproduzido metodologicamente. Estas regras são extraídas da epistemologia, dos conhecimentos científicos afiançados por comunidades de especialistas, e devem obedecer às normas da lógica e as máximas de experiência.

Por certo, voltando ao caso paradigmático, objeto de investigação, não há boas razões para crer que há inferências legítimas que apoiam o argumento de validade das hipóteses decorrentes das proposições fáticas “a” e “b”, ou que estas estejam amparadas por regras inferenciais que se submetem ao crivo racional. É difícil sustentar epistemicamente que pessoas que foram localizadas em locais conhecidos por pontos de drogas e fogem da polícia são autores de delito. Não há qualquer justificativa plausível para crer que populações marginais são, sobretudo, concretamente associadas ao tráfico de drogas. Aqueles que se orientam por eventos meramente probabilísticos generalizantes, que servem exclusivamente para diagnosticar uma frequência, poderão argumentar que há mais pessoas envolvidas no tráfico de drogas em comunidades pobres. Todavia, esse argumento não pode ser diretor de um evento específico, em razão de estabelecer critério de decisão estigmatizante e que não oferta razões acerca do evento concreto “fulano é morador de comunidade pobre e realiza delitos, especialmente, tráfico de drogas”. Admitir esse argumento é consolidar a tese que rompe as forças de emancipação do povo preto, que Fanon nomeia de “reivindicação mínima do colonizado”. Contrariar essa ótica de dominação pelo direito corresponde a desconstruir o mundo colonial compartimentado, que exclui o povo preto.

Não há conhecimentos científicos afiançados, ainda que dentro do campo das ciências sociais e do comportamento, capazes de justificar racionalmente que pessoas que vivem em áreas dominadas pelo tráfico e que fogem da polícia estão determinadas intransigentemente a praticar delito, em especial, tráfico de drogas. Igualmente, as normas da lógica não sustentam a correção de raciocínio que relaciona as premissas fáticas “a” (localizado em local conhecido como ponto de droga) e “b” (fuga da polícia) à conclusão “c”: prática de delito, em especial aqueles contidos na Lei 11.343/06 (Lei de Drogas). Não há uma relação causal racionalmente justificada.

Por último, as máximas de experiência, que constituem generalizações atribuídas à determinada sociedade, inseridas num marco de cultura homogeneizada e operativa. Tais generalizações podem ser úteis à fim de produzir inferências racionalizáveis, apoiando conclusões acerca da ocorrência de um fato cuja generalização é racionalmente aceita. As máximas de experiência reproduzem frequências genericamente aceitas, a partir de uma observação de prevalência da ocorrência de um evento. Todavia, essas generalizações não ofertam dados concretos sobre o fato individual. Com maior gravidade, reproduzir generalizações carregadas de preconceitos reforça o racismo estrutural. Esse é o ponto central da investigação. Referendar argumentos em favor da conclusão de que as proposições fáticas “a” e “b” conduzem logicamente à conclusão em favor da hipótese de ocorrência do delito equivale a referendar um argumento preconceituoso, inquinado por concepções históricas arraigadas no colonialismo escravagista, que operam a favor de uma ordem de mantença de domínio e radicação do indivíduo inserido em comunidades carentes e que são sujeitados à violência policial, notadamente, a população preta.

Havendo inferências divergentes que possam ser confirmadas racionalmente, em contraste à hipótese fática deduzida, tampouco, há de se falar em justificação racional, em termos conceituais. A hipótese que assevera que os locais reconhecidos por tráfico de droga têm população envolvida com a traficância é racionalmente injustificável. O argumento também está inserido em uma ótica compartimentada e apresenta generalizações perigosas.

Dados compilados, em 2018, pela Diretoria de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD), do Ministério da Justiça, revelam que em 65,84% das condenações criminais relativas ao delito do artigo 33 da Lei 11.343/06, ocorridas no Rio de Janeiro, houve apreensão de droga em favelas. O argumento de que o local era reconhecido como ponto de venda foi mencionado em 42% dos processos judiciais.

Durante entrevista concedida à Conectas, organização não governamental de Direitos Humanos, a pesquisadora do coletivo Iniciativa Negra, Lays Araújo, asseverou que “esse sistema de justiça que atua com base em perfis raciais traçados e bem definidos é o principal impulsionador da necropolítica. Porque nós sabemos que esses perfis têm o endereço periférico e a pele negra”. Reproduz-se, nessa lógica, argumentos cujos critérios de decisão são baseados, não raramente, em máximas de experiência que contenham concepções racistas, devendo-se reproche institucional e esforço teórico, para impedir decisões judiciais com esse teor, concedendo artificial autorização ao agir discriminatório.

A institucionalização do racismo, no âmbito do processo criminal, outrora, foi objeto de observação por Marcelo Semer:

“Do racismo institucionalizado, com o imaginário construído pela mídia, às facilidades de abordagem aos guetos negros de população pobre, saíram consequências inquietantes: permanente exclusão de jurados negros, abordagens desproporcionais entre negros e brancos, prisões, acusações e condenações racialmente díspares [...].

O avance da análise da proposição fática “b”, fuga após avistamento da polícia, de igual maneira, reproduz o argumento acerca de haver razões suficientes para crer ser verdadeira a hipótese de ocorrência do delito, conforme depreende-se do voto vencedor no habeas corpus n. 782742/SC. Há outros argumentos logicamente dedutíveis que não foram avaliados, que apresentam hipótese alternativa à ocorrência da hipótese inculpatória deduzida, o que contradiz a inferência vencedora, no caso concreto. Segundo o relatório “A máquina de moer gente preta: a responsabilidade da branquitude”, da Rede de Observatórios da Segurança, foram registrados 21.563 eventos de violência, criminalidade e segurança, entre agosto de 2021 e julho de 2022, recebendo destaque o número de eventos relacionados às ações policiais. Foram 12.042 eventos relacionados à violência policial no período. O levantamento, cujo objetivo declarado foi identificar possíveis causas, revela o racismo estrutural e o pacto da branquitude. Vejamos:

“O processo de desumanização a que os negros são submetidos há alguns séculos nessas terras é irmão siamês de toda violência descomunal que lhe é perpetrada. Ora, se há um modelo ideal de humanidade que é uma contraposição a quem eu sou, logo minha vida é indigna e o meu corpo indesejado. Aqui mora o casamento entre as percepções simbólicas criadas pelos brancos a partir do modelo único de humanidade e a materialidade brutal do racismo diário. Nesse sentido, existe uma simbiose entre aquilo que está na ordem ideológica do sistema de dominação racial e a tangibilidade desse sistema, seja através do monopólio das instituições, dos símbolos e dos postos de maior estima social, seja em sua face mais perversa, como nos assassinatos de Marcos, Moïse, Marielle, Miguel, Ágatha e nos próximos que infelizmente ainda virão”.

O Relatório Pele Alvo, da mesma instituição, por sua vez, aponta cifras aterradoras de mortes da população preta por meio da violência armada do Estado: 94,76% na Bahia, 80,43% no Ceará, 93,90% no Pará, 89,66% em Pernambuco, 88,24% no Piauí, 86,98% no Rio de Janeiro e 63,90% em São Paulo.

É razoável crer que a população preta sofre de maneira prevalente a violência policial, havendo boas razões – dedutíveis mediante raciocínio indutivo – para crer racionalmente que a população preta ao avistar a polícia empreenda fuga, dado que é razoável crer que ninguém é obrigado a suportar a violência contra si.

Consideremos o esquema argumentativo cujas premissas fáticas (P1 e P2) e a conclusão (C) são: P1 - a população preta é vítima da violência policial; P2 - fulano é preto; C - fulano é provavelmente vítima de violência policial. O esquema argumentativo deságua na desacreditação racional do raciocínio judicial que atribui valor de verdade à hipótese em favor da ocorrência de delito em casos em que há fuga do indivíduo após o avistamento da polícia. As hipóteses contrárias à ocorrência do fato impõem uma revisão de olhar e invalidação racional de argumento judicial que considera verdadeira a hipótese formulada nesses termos, conforme o habeas corpus objeto de investigação.

Traçado o panorama geral do objeto de investigação, duas últimas anotações são necessárias. O voto do Ministro Sebastião Reis Júnior, nos autos do habeas corpus n. 782742/SC e o voto do Ministro Rogerio Schietti, no recurso em habeas corpus n. 158.580, rompem a lógica colonialista, de reprodução do racismo arraigado no desenvolvimento estrutural da sociedade, que se serve do direito criminal para operar regulação discriminatória em favor da branquitude. Vejamos o argumento do Ministro Rogerio Schietti: “c) evitar a repetição - ainda que nem sempre consciente - de práticas que reproduzem preconceitos estruturais arraigados na sociedade, como é o caso do perfilamento racial, reflexo direto do racismo estrutural”. São dois horizontes a serem consolidados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.

BELTRAN, Jordi Ferrer. Prueba y Racionalidad de las Decisiones Judiciales. Pachuca de Soto: Editorial CEJI, 2019.

________. Prueba sin convicción. Madrid: Marcial Pons, 2021.

________. A valoração racional da prova. Trad. Vitor de Paula Ramos. 3º ed. rev. e atual. São Paulo: Juspodivm, 2023.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 158.580, decisão monocrática, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, DJe, 20/03/2023.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 782742, da 6º Turma, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, DJe, 20/09/2023.

CONECTAS. Racismo nas corporações: por que pessoas negras são mais abordadas pela polícia. Disponível em: https://www.conectas.org/noticias/racismo-nas-corporacoes-por-que-pessoas-negras-sao-mais-abordadas-pela-policia/. Acesso em 17/11/2023.

RODAS, Sergio. Palavra de policiais é o que mais influencia juízes em casos de tráfico, diz pesquisa. CONJUR. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-fev-23/palavra-pm-influencia-casos-trafico-estudo/. Acesso em 17/11/2023.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. trad. Ligia Fonseca Ferreira, Regina Salgado Campos. Rio de Janeiro: ZAHAR, 2022.

Máquina de moer gente preta [livro eletrônico]: a responsabilidade da branquitude / Silvia Ramos...[et al.]. – Rio de Janeiro : CESeC, 2022.

OXFAM. um-retrato-das-desigualdades-brasileiras. Disponível em:

https://www.oxfam.org.br/um-retrato-das-desigualdades-brasileiras/pesquisa-nos-e-as-desigualdades/pesquisa-nos-e-as-desigualdades-2022/. Acesso em 03/11/2023.

Pele alvo [livro eletrônico]: a bala não erra o negro / Silvia Ramos...[et al.]. – Rio de Janeiro : CESeC, 2023.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.

SEMER, Marcelo. Sentenciando o tráfico: pânico moral e estado de negação formando o papel dos juízes no grande encarceramento. 2019. Tese de Doutorado. Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo (USP), 2019.

TARUFFO, Michele. Hacia la decisión justa. Lima: Editorial Zela, 2020.

*Thiago Turbay Freiria é mestre em Direito pela Universitat de Girona (UdG/ES), mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), especialista em raciocínio probatório pela UdG, especialista em técnicas de interpretação e motivação das decisões judiciais (UdG), especialista em Direito Probatório pela Universidad Alberto Hurtado (Chile), advogado criminal

Há incontestável afetação da cultura nacional e das instituições ao que Frantz Fanon chama de “erosão empreendida pelo colonialismo”. O racismo é o escape civilizatório e estratégia de dominação mais aplicada. Dados da Oxfam Brasil e do Instituto Datafolha apontam que 86% dos entrevistados, de um total de 2.564 pessoas - distribuídas em 130 municípios brasileiros -, acreditam que a cor da pele influencia a decisão de uma abordagem policial. Destes, 79% concordam que a justiça é mais “dura” com negros. Os dados foram registrados em 2022, havendo uma série histórica a ser considerada.

Thiago Turbay Freiria Foto: Divulgação

Em 2021, 84% dos entrevistados disseram acreditar que a cor é determinante para a ação policial. No mesmo ano, 78% disseram que a justiça é mais rígida com pretas e pretos. O relatório Pele Alvo, da Rede de Observatórios da Segurança, um projeto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), traz dados igualmente impactantes acerca da violência letal praticada pela polícia. Vejamos:

“É possível ver a capilaridade da violência policial com a população negra ao nos depararmos com números alarmantes de vítimas da violência armada do Estado: negros representam 94,76% na Bahia, 80,43% no Ceará, 93,90% no Pará, 89,66% em Pernambuco, 88,24% no Piauí, 86,98% no Rio de Janeiro e 63,90% em São Paulo”.

Os dados são aterradores e revelam as camadas de ação do Estado que intensificam e concretam o racismo estrutural. Sobrevém uma outra arguição: é possível justificar racionalmente uma decisão judicial mediante argumentos racistas?

Para avançar, é preciso conceituar o racismo dentro de um marco teórico capaz de atender as especificidades da análise. Adotarei o conceito de racismo estrutural, nos seguintes termos: é o mecanismo de domínio sobre o outro, preto e preta, aplicado na estruturação do poder e no balizamento das relações comunitárias e transindividuais, por meio da racionalização do agir Estatal em reforço à apropriação do outro e a fadiga de direitos e liberdades, diminuindo, sobremaneira, o estado de civilidade mediante uso da força, bem como reduzindo os espaços de emancipação individual, de raça e identidade.

Silvio Almeida condensa esses tópicos quando aperfeiçoa o conceito de Racismo Estrutural e dispõe sobre características inerentes à formação da sociedade brasileira. É o ponto de partida. Silvio Almeida diz: “desse modo, se é possível falar de um racismo institucional, significa que a imposição de regras e padrões racistas por parte da instituição é de alguma maneira vinculada à ordem social que ela visa resguardar”. A organização social na configuração da raça por parte do judiciário é componente do Racismo Estrutural.

Adentrando o campo específico de análise, a justiça criminal sustenta o racismo estrutural à medida em que age para a conformação de espaços de asfixia e rompimento da emancipação preta. O agir da justiça criminal é sutil e se estrutura por meio de táticas jurisdicionais que reforçam o racismo. O objeto geral de análise são decisões judiciais que se servem de argumentos úteis para manter pessoas pretas dentro do sistema carcerário. Há circunstâncias estruturantes que se somam à deficiência de legitimação das decisões, à exemplo da dificuldade de acesso à defesa técnica (deficiência de assistência e acesso à justiça), de apartação pública (encarceramento provisório massivo) e expiação no processo penal (probabilidade de condenação por meio de deficiências probatórias e vieses cognitivos), marcando a população preta de caracteres estigmatizantes e cíclicos frente à justiça criminal.

O processo é histórico e permeia a produção legislativa nacional. Todavia, o objeto específico de investigação está nos fundamentos ancorados em decisões judiciais, cujos predecessores são dois argumentos: 1) a prisão em casos em que há fuga após o avistamento de agentes de segurança pública e; 2) a busca pessoal de pessoas localizadas em locais reconhecidos pelo tráfico de drogas.

A amostra sobre a qual desenvolverei meu raciocínio é o habeas corpus n. 782742/SC, julgado em 12/09/2023, de relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior, do Superior Tribunal de Justiça. Não se trata de análise quantitativa de decisões proferidas com teor equivalente, mas de eleição do processo como paradigmático para fins de reflexão. Interessa-me a análise crítica do objeto de pesquisa.

Na ocasião, o Tribunal negou a concessão da ordem para anular busca pessoal, sob argumento de que havia suspeitas fundadas de ocorrência de delito. O relator, Ministro Sebastião Reis, apresentou voto contrário à tese, instando a Corte à avaliação de que tal fundamentação ancorava argumentos racistas, mas foi vencido. O Ministro Rogerio Schietti ponderou que as proposições, per si, não são suficientes para considerar a hipótese de ocorrência de delito. Todavia, o desfecho foi outro.

O argumento que deu sustentação ao resultado jurisdicional, que denegou a ordem, rejeitando a pretensão da defesa de anular a busca pessoal realizada por agentes policiais, pode ser deduzido da seguinte forma: é lícita a ação policial em razão de haver justificativa suficiente que legitima a abordagem, existindo causas juridicamente válidas para efetivação da medida.

As duas proposições que descrevem os fatos condicionantes da decisão judicial são: a) o autor do delito estava em local reconhecido como ponto de traficância; b) empreendeu fuga após o avistamento da polícia. Os enunciados foram considerados verdadeiros pelo Superior Tribunal de Justiça, o que equivale a dizer que correspondem à realidade e, outrossim, foram suficientemente provados no processo judicial. Dessa maneira, justificou-se a ação policial em razão do Superior Tribunal de Justiça considerar que as proposições mencionadas são idôneas para justificar a hipótese de ocorrência de um delito, que recebe reproche em razão de conter norma jurídica que proíbe tal comportamento.

Se avaliarmos a hipótese fática deduzida, considerando as proposições acima elencadas, chegaremos à conclusão de que estar próximo a local reconhecido como ponto de traficância e empreender fuga após avistamento da política equivale a considerar suficientemente provado que há elementos informacionais que dão sustentação ao seguinte raciocínio: se as proposições fáticas “a” e “b” estiverem presentes, a hipótese de ocorrência do delito será verdadeira.

A justificação jurídica empreendida no processo judicial em análise deve ser questionada, sobretudo, se considerarmos a necessidade de aquilatar o raciocínio judicial, instituindo critérios de decisões sobre os fatos que observem exigências racionais para considerar haver razões adequadas em favor da veracidade das alegações, ou, que o desvalor da conduta está justificado pelas provas constituídas no processo.

Os critérios de decisões, notadamente, devem ser aplicados após a filtragem das proposições fáticas. Essa filtragem é regulada pelo próprio ordenamento jurídico e pela observância de valores protegidos pelo direito, sendo vetado - no processo penal - valorar informações obtidas ilicitamente. O direito não pode incentivar conduta que o próprio determina ser proibida, exemplo óbvio são as provas obtidas mediante tortura. Outros filtros dizem respeito ao controle dos procedimentos de obtenção de dados informacionais, à confiabilidade da prova, a sua relevância e pertinência. Passados os filtros iniciais, de admissibilidade, deve-se concentrar na valoração dos fatos, na atribuição de valor de verdade aos fatos consolidados no processo. Essa atribuição de valor é indivisível à motivação da decisão judicial sobre os fatos.

Jordi Ferrer Beltrán assevera que a resolução do processo judicial deve guardar relação com o objetivo de averiguação da verdade, considerada a partir da correspondência do enunciado descritivo do fato alocado no processo judicial e o fato havido no mundo fenomênico, condição para que seja adequadamente motivada, a decisão. Vejamos: “si una de las funciones principales del derecho es la regulación de la conducta, el cumplimiento de esta función requiere que en el proceso se apliquen las consecuencias jurídicas previstas en las normas si, y sólo si, se han producido efectivamente los hechos condicionantes de esas consecuencias”.

Para estar racionalmente motivada, a decisão que estabelece valor de verdade aos fatos descritos no processo judicial deve observar critérios de decisão, que aplicados ao raciocínio probatório devem ser capazes de estipular o grau de corroboração – expressado por meio de probabilidade indutiva, não numérica - da hipótese aventada. Deve-se predicar o raciocínio probatório em decorrência do grau de confirmação da ocorrência da hipótese, considerando os fatos enunciados e o conjunto de informações relevantes obtidas, o que permite aceitar racionalmente que a proposição deduzida como premissa corresponde aos fatos havidos, legitimando a aplicação da consequência jurídica prevista pela norma.

Para confirmar racionalmente a hipótese, todavia, é necessário aplicar regras de inferência, mediante testagem a partir de filtros racionais em favor da correção do raciocínio aplicado. As regras de inferências são as garantias de que o resultado inferencial está justificado racionalmente e pode ser reproduzido metodologicamente. Estas regras são extraídas da epistemologia, dos conhecimentos científicos afiançados por comunidades de especialistas, e devem obedecer às normas da lógica e as máximas de experiência.

Por certo, voltando ao caso paradigmático, objeto de investigação, não há boas razões para crer que há inferências legítimas que apoiam o argumento de validade das hipóteses decorrentes das proposições fáticas “a” e “b”, ou que estas estejam amparadas por regras inferenciais que se submetem ao crivo racional. É difícil sustentar epistemicamente que pessoas que foram localizadas em locais conhecidos por pontos de drogas e fogem da polícia são autores de delito. Não há qualquer justificativa plausível para crer que populações marginais são, sobretudo, concretamente associadas ao tráfico de drogas. Aqueles que se orientam por eventos meramente probabilísticos generalizantes, que servem exclusivamente para diagnosticar uma frequência, poderão argumentar que há mais pessoas envolvidas no tráfico de drogas em comunidades pobres. Todavia, esse argumento não pode ser diretor de um evento específico, em razão de estabelecer critério de decisão estigmatizante e que não oferta razões acerca do evento concreto “fulano é morador de comunidade pobre e realiza delitos, especialmente, tráfico de drogas”. Admitir esse argumento é consolidar a tese que rompe as forças de emancipação do povo preto, que Fanon nomeia de “reivindicação mínima do colonizado”. Contrariar essa ótica de dominação pelo direito corresponde a desconstruir o mundo colonial compartimentado, que exclui o povo preto.

Não há conhecimentos científicos afiançados, ainda que dentro do campo das ciências sociais e do comportamento, capazes de justificar racionalmente que pessoas que vivem em áreas dominadas pelo tráfico e que fogem da polícia estão determinadas intransigentemente a praticar delito, em especial, tráfico de drogas. Igualmente, as normas da lógica não sustentam a correção de raciocínio que relaciona as premissas fáticas “a” (localizado em local conhecido como ponto de droga) e “b” (fuga da polícia) à conclusão “c”: prática de delito, em especial aqueles contidos na Lei 11.343/06 (Lei de Drogas). Não há uma relação causal racionalmente justificada.

Por último, as máximas de experiência, que constituem generalizações atribuídas à determinada sociedade, inseridas num marco de cultura homogeneizada e operativa. Tais generalizações podem ser úteis à fim de produzir inferências racionalizáveis, apoiando conclusões acerca da ocorrência de um fato cuja generalização é racionalmente aceita. As máximas de experiência reproduzem frequências genericamente aceitas, a partir de uma observação de prevalência da ocorrência de um evento. Todavia, essas generalizações não ofertam dados concretos sobre o fato individual. Com maior gravidade, reproduzir generalizações carregadas de preconceitos reforça o racismo estrutural. Esse é o ponto central da investigação. Referendar argumentos em favor da conclusão de que as proposições fáticas “a” e “b” conduzem logicamente à conclusão em favor da hipótese de ocorrência do delito equivale a referendar um argumento preconceituoso, inquinado por concepções históricas arraigadas no colonialismo escravagista, que operam a favor de uma ordem de mantença de domínio e radicação do indivíduo inserido em comunidades carentes e que são sujeitados à violência policial, notadamente, a população preta.

Havendo inferências divergentes que possam ser confirmadas racionalmente, em contraste à hipótese fática deduzida, tampouco, há de se falar em justificação racional, em termos conceituais. A hipótese que assevera que os locais reconhecidos por tráfico de droga têm população envolvida com a traficância é racionalmente injustificável. O argumento também está inserido em uma ótica compartimentada e apresenta generalizações perigosas.

Dados compilados, em 2018, pela Diretoria de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD), do Ministério da Justiça, revelam que em 65,84% das condenações criminais relativas ao delito do artigo 33 da Lei 11.343/06, ocorridas no Rio de Janeiro, houve apreensão de droga em favelas. O argumento de que o local era reconhecido como ponto de venda foi mencionado em 42% dos processos judiciais.

Durante entrevista concedida à Conectas, organização não governamental de Direitos Humanos, a pesquisadora do coletivo Iniciativa Negra, Lays Araújo, asseverou que “esse sistema de justiça que atua com base em perfis raciais traçados e bem definidos é o principal impulsionador da necropolítica. Porque nós sabemos que esses perfis têm o endereço periférico e a pele negra”. Reproduz-se, nessa lógica, argumentos cujos critérios de decisão são baseados, não raramente, em máximas de experiência que contenham concepções racistas, devendo-se reproche institucional e esforço teórico, para impedir decisões judiciais com esse teor, concedendo artificial autorização ao agir discriminatório.

A institucionalização do racismo, no âmbito do processo criminal, outrora, foi objeto de observação por Marcelo Semer:

“Do racismo institucionalizado, com o imaginário construído pela mídia, às facilidades de abordagem aos guetos negros de população pobre, saíram consequências inquietantes: permanente exclusão de jurados negros, abordagens desproporcionais entre negros e brancos, prisões, acusações e condenações racialmente díspares [...].

O avance da análise da proposição fática “b”, fuga após avistamento da polícia, de igual maneira, reproduz o argumento acerca de haver razões suficientes para crer ser verdadeira a hipótese de ocorrência do delito, conforme depreende-se do voto vencedor no habeas corpus n. 782742/SC. Há outros argumentos logicamente dedutíveis que não foram avaliados, que apresentam hipótese alternativa à ocorrência da hipótese inculpatória deduzida, o que contradiz a inferência vencedora, no caso concreto. Segundo o relatório “A máquina de moer gente preta: a responsabilidade da branquitude”, da Rede de Observatórios da Segurança, foram registrados 21.563 eventos de violência, criminalidade e segurança, entre agosto de 2021 e julho de 2022, recebendo destaque o número de eventos relacionados às ações policiais. Foram 12.042 eventos relacionados à violência policial no período. O levantamento, cujo objetivo declarado foi identificar possíveis causas, revela o racismo estrutural e o pacto da branquitude. Vejamos:

“O processo de desumanização a que os negros são submetidos há alguns séculos nessas terras é irmão siamês de toda violência descomunal que lhe é perpetrada. Ora, se há um modelo ideal de humanidade que é uma contraposição a quem eu sou, logo minha vida é indigna e o meu corpo indesejado. Aqui mora o casamento entre as percepções simbólicas criadas pelos brancos a partir do modelo único de humanidade e a materialidade brutal do racismo diário. Nesse sentido, existe uma simbiose entre aquilo que está na ordem ideológica do sistema de dominação racial e a tangibilidade desse sistema, seja através do monopólio das instituições, dos símbolos e dos postos de maior estima social, seja em sua face mais perversa, como nos assassinatos de Marcos, Moïse, Marielle, Miguel, Ágatha e nos próximos que infelizmente ainda virão”.

O Relatório Pele Alvo, da mesma instituição, por sua vez, aponta cifras aterradoras de mortes da população preta por meio da violência armada do Estado: 94,76% na Bahia, 80,43% no Ceará, 93,90% no Pará, 89,66% em Pernambuco, 88,24% no Piauí, 86,98% no Rio de Janeiro e 63,90% em São Paulo.

É razoável crer que a população preta sofre de maneira prevalente a violência policial, havendo boas razões – dedutíveis mediante raciocínio indutivo – para crer racionalmente que a população preta ao avistar a polícia empreenda fuga, dado que é razoável crer que ninguém é obrigado a suportar a violência contra si.

Consideremos o esquema argumentativo cujas premissas fáticas (P1 e P2) e a conclusão (C) são: P1 - a população preta é vítima da violência policial; P2 - fulano é preto; C - fulano é provavelmente vítima de violência policial. O esquema argumentativo deságua na desacreditação racional do raciocínio judicial que atribui valor de verdade à hipótese em favor da ocorrência de delito em casos em que há fuga do indivíduo após o avistamento da polícia. As hipóteses contrárias à ocorrência do fato impõem uma revisão de olhar e invalidação racional de argumento judicial que considera verdadeira a hipótese formulada nesses termos, conforme o habeas corpus objeto de investigação.

Traçado o panorama geral do objeto de investigação, duas últimas anotações são necessárias. O voto do Ministro Sebastião Reis Júnior, nos autos do habeas corpus n. 782742/SC e o voto do Ministro Rogerio Schietti, no recurso em habeas corpus n. 158.580, rompem a lógica colonialista, de reprodução do racismo arraigado no desenvolvimento estrutural da sociedade, que se serve do direito criminal para operar regulação discriminatória em favor da branquitude. Vejamos o argumento do Ministro Rogerio Schietti: “c) evitar a repetição - ainda que nem sempre consciente - de práticas que reproduzem preconceitos estruturais arraigados na sociedade, como é o caso do perfilamento racial, reflexo direto do racismo estrutural”. São dois horizontes a serem consolidados.

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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 158.580, decisão monocrática, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, DJe, 20/03/2023.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 782742, da 6º Turma, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, DJe, 20/09/2023.

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Máquina de moer gente preta [livro eletrônico]: a responsabilidade da branquitude / Silvia Ramos...[et al.]. – Rio de Janeiro : CESeC, 2022.

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Pele alvo [livro eletrônico]: a bala não erra o negro / Silvia Ramos...[et al.]. – Rio de Janeiro : CESeC, 2023.

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SEMER, Marcelo. Sentenciando o tráfico: pânico moral e estado de negação formando o papel dos juízes no grande encarceramento. 2019. Tese de Doutorado. Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo (USP), 2019.

TARUFFO, Michele. Hacia la decisión justa. Lima: Editorial Zela, 2020.

*Thiago Turbay Freiria é mestre em Direito pela Universitat de Girona (UdG/ES), mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), especialista em raciocínio probatório pela UdG, especialista em técnicas de interpretação e motivação das decisões judiciais (UdG), especialista em Direito Probatório pela Universidad Alberto Hurtado (Chile), advogado criminal

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Opinião por Thiago Turbay Freiria*

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