Estudo técnico de nossa organização, gestora de créditos inadimplentes de pessoas físicas, indica que as famílias brasileiras estão severamente comprometidas com dívidas com o cartão de crédito. Os números são eloquentes: 67,8% dos devedores têm metade de sua renda mensal comprometida com o cartão de crédito e os 32,2% restantes não conseguiriam quitar as faturas ainda que destinassem toda sua renda a essa finalidade.
Esses números foram expostos em levantamento feito junto a uma amostragem de 144.000 devedores de nossa base de dados. O levantamento teve o objetivo de colher informações para a definição de estratégias de abordagem e formulação de acordos em condições acessíveis a esse público.
O peso do cartão de crédito e de seus juros rotativos no endividamento das pessoas, sobretudo entre as de renda mais baixa, explica a recente decisão do Governo Federal de estimular a portabilidade das dívidas dessa modalidade. Fica a dúvida quanto à eficácia da medida quando se consideram as condições de acesso desse público às negociações sobre a portabilidade junto a diferentes instituições financeiras e, mais do que isso, sua efetiva realidade financeira.
O fato é que o mercado de cartões de crédito mudou significativamente com o advento dos canais de distribuição fora do ambiente dos grandes bancos. Cada vez mais, é frequente a oferta do produto nas fintechs, em balcões de empresas do segmento varejista, companhias aéreas, pequenas financeiras e/ou na simples contratação de um seguro.
Para conquistar espaços e market share, essas entidades praticaram temerário afrouxamento no regramento tradicional de avaliação de riscos, a tal ponto que -- como mero exemplo – o beneficiário de auxílios governamentais e pessoas consideradas abaixo da linha de pobreza chegam a ter acesso a três ou mais cartões de forma simultânea, ficando expostos à ilusão do fácil acesso ao crédito, sem orientação suficiente para entender a repercussão de taxas de rotativos exorbitantes em seu já combalido orçamento mensal.
Em processos competitivos para aquisição de carteiras de cartões inadimplentes no último ano, não raramente nos deparamos com a frequência do mesmo trabalhador informal ou beneficiário de auxílios governamentais nas listas de devedores de seis ou mais emissores de cartões.
Não se pode ignorar a boa intenção do mecanismo de portabilidade de dívidas. Mas, diferentemente do que ocorre em outros segmentos de financiamento, como crédito imobiliário, aquisição de veículos e outras modalidades específicas, a pluralidade de dívidas de cartões sobre um mesmo devedor não contribui para qualquer disputa para angariar o detentor padrão dos cartões: famílias severamente endividadas com encargos rotativos proibitivos, que superam qualquer capacidade de pagamento do devedor.
Ao final, a portabilidade desenvolvida para cartões de crédito deverá privilegiar apenas reduzida parcela da população, de média e alta renda, mais consciente dos nefastos efeitos da fácil oferta de créditos via cartões e que ainda não ingressou nas tristes estatísticas de alto endividamento da família brasileira.
Lamentavelmente, a situação pode se agravar ainda mais. Em breve, o Superior Tribunal de Justiça irá definir se os credores poderão manter cobrança amigável de dívidas de pessoas físicas vencidas há mais de cinco anos. Hoje, a despeito dos elevados estoques de carteiras de cartões inadimplentes, não é praxe dos credores abrir processos judiciais de cobrança.
Todavia, se mantido o entendimento de alguns julgamentos monocráticos de impossibilidade de cobrança de dívidas vencidas há mais de cinco anos, será inevitável que os credores passem, de forma inédita, a levar maciça quantidade de endividados com cartões de crédito às cortes judiciais, de forma a interromper o processo de prescrição dos créditos. Não é difícil concluir que a materialização desse cenário poderá colapsar o sistema judiciário brasileiro, além de conduzir o cidadão simples e comum a buscar suporte de já assoberbadas defensorias públicas, na desesperada intenção de proteger seu parco patrimônio/rendimento.
O que se espera é que o Banco Central, Governo e o Legislativo se debrucem sobre a dura realidade do endividamento das famílias com o cartão de crédito, de forma a estabelecer políticas públicas que primem, por exemplo, pela incidência de tetos razoáveis para juros de rotativo e, ainda, exijam que os emissores pratiquem o bom conceito da educação financeira de seus clientes, ainda que -exageradamente - às custas de advertências similares às tarjas condenatórias do uso do cigarro: “a utilização não moderada do cartão pode levar à morte (financeira) do usuário”.