Um paciente de 61 anos e sua esposa foram contaminados no início de 2021 na segunda onda da Covid-19. Na esposa o vírus teve baixo impacto, mas ele ficou internado por 2 meses, entubado em boa parte do tempo. Em maio, teve alta hospitalar, continuando a convalescência em casa. Num sábado de maio ele aniversariou. Fatigados pela reclusão, o casal resolveu romper a mesmice do isolamento promovendo um "lanche-amigo" de aniversário.
Mesmo movendo-se com ajuda de andador, ele convidou um grande amigo (professor, com pouco mais de 50 anos) para a breve comemoração. O amigo manifestou preocupação quanto aos riscos (ainda não havia sido vacinado), mas acabou por concordar diante dos apelos do casal. Seria o único convidado, mas ainda assim consultou seu médico, que deu parecer favorável desde que preservasse os devidos cuidados. Chegou ao apartamento usando máscara, sentou-se à sala de visitas e ouviu a campainha tocar. Logo entraram três vizinhos do mesmo prédio (pai, mãe e filha), todos com máscaras. Conversaram um pouco e seguiram todos para o quarto do convalescente.
Enquanto o professor se recuperava da surpresa (que 'furava' o combinado), a campainha tocou novamente. Dessa vez era um sobrinho da esposa acompanhado da filha, ambos com máscara. Minutos depois, chegou também uma tia da esposa (80 anos) em companhia da filha (ao redor dos 50 anos), que não haviam sido convidadas, mas "quando souberam pelo WhatsApp da comemoração resolveram dar uma passadinha". Por último, entrou um irmão do aniversariante, que, sem máscara, cumprimentou a todos com singelos apertos de mão. Ao chegar perto do professor, este logo manifestou sua preocupação e desconsiderou a cumprimento ("o ambiente está tenso!", brincou o último a chegar). Pouco depois, a esposa convocou todos a se servirem de uma torta de morango. O professor percebeu o acúmulo de pessoas sem o esperado distanciamento e decidiu se retirar.
Pouco mais de um mês do ocorrido, o aniversariante voltou a ser internado, o professor acusou positivo no PCR (sem maiores problemas), a tia da esposa (80 anos) esteve na UTI por uma semana (sem intubação), sendo que o sobrinho esteve internado por duas semanas. Outros desdobramentos, não se conhece. O caso descrito é real, ocorreu no Brasil, sendo que nomes e demais detalhes foram excluídos por preservação de privacidade.
Essa é uma narrativa cotidiana, que por incrível que pareça cresceu em proporção ao crescimento dos casos de Covid-19 no país. Uma mistura de relaxamento, cansaço mental, ignorância ou até mesmo uma provocação formal ao isolamento imposto pelas orientações científicas. Ocorre que a mesma ciência, tantas vezes negada nos últimos meses, começa a avaliar tecnicamente o impacto dessa 'provocação' no contexto pandêmico.
A pesquisa"Assessing the Association Between Social Gatherings and COVID-19 Risk Using Birthdays", publicada em 21 de junho de 2021 (JAMA Internal Medicine), liderada pela Rand Corporation e por pesquisadores da Harvard Medical School, deu 'tração' a uma tese sempre alardeada na pandemia mas pouco demonstrada: festas de aniversário familiares aumentam os casos de Covid-19. Liderada pelo médico e pesquisador Anupam Jena (Harvard Medical School), a pesquisa examinou dados da seguradora de saúde Castlight Health,constando quase 3 milhões de domicílios e alcançando as primeiras 45 semanas de 2020. Um alto número de infectados foi encontrado, numa média de 8,6 casos de Covid-19 por 10.000 indivíduos. Ou seja, nesses eventos a probabilidade de contágio cresce 31% em comparação as situações em que não há convívio como o descrito no primeiro parágrafo. O estudo transversal é devastador: aqueles que participaram de aniversários infantis tiveram um aumento nos diagnósticos de Covid-19 de 15,8 por 10.000 pessoas, e aqueles que estiveram em aniversários de adultos tiveram um aumento da doença de 5,8 por 10.000 indivíduos.
"Nossos resultados destacam o papel que os encontros sociais informais desempenham na disseminação do Covid-19. Esses encontros, envolvendo pessoas que conhecemos, podem não ser tão de baixo risco quanto pensávamos. Essas reuniões provavelmente acontecem em torno de muitos outros eventos semelhantes aos aniversários", explicou Christopher M. Whaley, pesquisador da Rand que participou da pesquisa. Assim, as "festas familiares", principalmente em ambientes fechados, são definitivamente um dos motores da pandemia.
O CDC (Centers for Disease Control and Prevention), agência norte-americana de controle epidemiológico, já havia publicado um estudo em novembro/2020 mostrando o desastre de uma festa de casamento ("Multiple COVID-19 Outbreaks Linked to a Wedding Reception in Rural Maine"): a comemoração foi a fonte de surtos da Covid-19 na comunidade local, levando a 177 casos, sete hospitalizações e sete mortes. Na Europa, outra análise ("Infektionsumfeld von Covid-19-Ausbrüchen in Deutschland"), publicada pelo consagrado Robert Koch-Institut em setembro de 2020, alertou que a maioria dos surtos do coronavírus na Alemanha ocorriam em 'residências privadas', em pequenas comemorações informais.
Ocorre que qualquer estrutura midiática prefere enaltecer o perigo das celebrações em grande escala (multidões), que levaram a fama de serem as formas mais comuns de 'contágio'. Os estudos, assim, começam a revelar que encontros festivos em espaços confinados geram cargas de hospedeiros potenciais, que, por sua vez, se 'cruzam' com patógenos, como o profícuo coronavírus. "As reuniões de aniversário são uma parte importante do tecido social que une as famílias e a sociedade como um todo, mas, como mostramos, elas podem expor as famílias a risco elevado da Covid-19", explicou o Dr. Jena. Também é certo que em comunidades com baixa taxa contaminação a probabilidade de a doença não aumentar após os eventos de aniversário é real, relatam os especialistas: onde as incidências gerais são baixas, o risco de uma pessoa trazer o vírus para uma festa também é menor. "Nossos resultados podem servir de base para medidas futuras. Eles ressaltam a importância de conhecer os tipos de atividades que promovem a disseminação do vírus durante uma pandemia", também esclareceu Jena.
"Crianças geralmente não usam máscara, ficam correndo, se juntam a outras pessoas, e com elas estão os adultos que ficam por perto para os cuidados; então a probabilidade é maior. Nos encontros de adultos, já é possível ter mais consciência quanto a necessidade do uso de máscara e do álcool em gel", explica o professor titular do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Dr. Mario Roberto Dal Poz. No estudo da Rand & Harvard Medical School, os pesquisadores encontraram outro motivo para a alta de casos em festas infantis: as famílias são menos propensas a cancelar os planos do aniversário. Deixar os 'pequenuchos' frustrados com o cancelamento ou adiamento tem apelo direto nas famílias, que normalmente evitam contrariá-los. Outro ponto importante foi descrito pelo Dr. Timothy Brewer, professor de medicina e epidemiologia da University of California: "Enquanto as pessoas estão fazendo um trabalho árduo para manter o distanciamento social, ou usando máscaras quando vão ao supermercado, quando chegam em casa têm mais probabilidade de relaxar. Houve muito esforço em torno de momentos formais juntos, e menos atenção aos tipos informais de reuniões, mas, na verdade, essa é uma fonte muito forte de transmissão".
Em junho, simultaneamente a publicação da pesquisa da Rand, uma mãe norte-americana compartilhou seu desgosto nas redes sociais depois que ninguém apareceu na festa de sexto aniversário de seu filho. O vídeo-tik-tok atraiu 4 milhões de visualizações e mais de 25 mil comentários. A mãe explica no clip como nenhum dos 22 amigos de escola convidados compareceu à festa. Desolada, ela relata: "Estamos aqui sentados para a festa do JJ, temos tudo pronto, a festa dele começou há meia hora, mas ninguém apareceu. Meu pobre homenzinho. Ele merece o melhor, ele é incrível". Mesmo realizando o evento ao ar livre, nenhuma mãe liberou seu filho para a comemoração. No vídeo, a mãe de JJ chora e recebe mensagens de consolo e palavras de ânimo.
Mais tarde, a mãe realizou uma comemoração on-line para seu filho, no mesmo Tik-Tok. Nessa festa, porém, JJ não estava mais sozinho: incríveis 30 mil espectadores estavam sintonizados. Não sabemos se daqui a duas décadas o garoto lembrará de suas 'festas normais de aniversário'. Mas com certeza jamais esquecerá daqueles milhares de "cyber-convidados" cantando 'Happy Birthday!' em sua anormal festa de 6 anos. No Brasil, as festas e outras comemorações informais ocorrem em grande parte pela falta de uma comunicação clara das autoridades em todas as esferas de Poder. O uso de expressões subjetivas por parte das lideranças, como, por exemplo, "é necessário usar o bom senso nas comemorações familiares" refletem muito pouco sobre a real gravidade desses encontros, sendo em geral mensagens inúteis e confusas. Talvez falte mais ousadia, como: "nossas UTIs não suportam o seu desejo de realizar um aniversário com familiares e amigos".
A pandemia talvez nos remeta de volta aos tempos dos palimpsestos, um pergaminho cujo texto original era apagado para dar lugar a outro texto. Na Idade Média, as cópias eram feitas à mão em papiros. Devido à escassez de pergaminho, muitas vezes as 'regras' escritas eram apagadas e os manuscritos eram reutilizados para novas cópias de obras. Assim, o que podia ser lembrado continuava a ser executado, o resto deveria ser reescrito, quase sempre considerando novos hábitos e ideias. Uma das boas reflexões em tempos de pandemia é identificar se a nossa 'velha normalidade' é realmente interessante. Antes da Covid, sempre fomos considerados desajustados por pensar "fora da caixa". Despois dela, talvez tenhamos que criar palimpsestos, reinventando nossas cerimônias e deixando no passado os antigos modelos cerimoniais.
*Guilherme Hummel, coordenador científico do Hub Hospitalar e do Digital Journey by Hospitalar e head mentor do eHealth Mentor Institute (EMI)