O ministro Gilmar Mendes, decano do Supremo Tribunal Federal (STF), considera que o poder que o Ministério Público obteve ao assumir a costura de acordos de leniência com empresários investigados na Operação Lava Jato “produziu, na verdade, um monstro”. O ministro afirma que a lei prevê que tais ajustes seriam de responsabilidade da Controladoria Geral da União (CGU) e da Advocacia Geral da União (AGU), mas que durante a Lava Jato, o MP entendeu que também teria essa atribuição.
“Isso dá ao MP uma posição super privilegiada. Se o empresário faz acordo de leniência lá em Curitiba, sede da Lava Jato, ele o faz com medo, inclusive, da prisão”, disse Gilmar, em entrevista ao portal Brazil Journal.
O argumento de que os empresários investigados na Lava Jato por corrupção na Petrobras, entre 2003 e 2014, fecharam acordos de leniência com o Ministério Público por “coação” está na base dos pedidos das empresas por revisão dos processos.
Entre o fim de 2023 e o início deste ano, o ministro Dias Toffoli acolheu pedidos dessa ordem e, sob o argumento de que houve “falta de voluntariedade” dos investigados, suspendeu um total de R$ 14,1 bilhões em multas dos ajustes firmados pelas empresas Novonor (antiga Odebrecht) e J&F. Em recursos ao STF, a Procuradoria-Geral da República (PGR) discorda desse argumento (leia mais abaixo).
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A primeira paralisação de pagamentos foi em dezembro de 2023, quando Toffoli suspendeu a multa de R$ 10,3 bilhões do grupo J&F. Esse valor ainda deveria ser corrigido no decorrer do pagamento de acordo com o índice IPCA. A empresa pediu a suspensão de “todas as obrigações pecuniárias” enquanto analisa os documentos da Operação Spoofing, que envolvem mensagens entre envolvidos na força-tarefa da Lava Jato que criaram suspeitas sobre a lisura da operação. O grupo pretende usar o material para pedir a revisão da leniência e defende que é preciso “corrigir abusos”.
Já em 1º de fevereiro, o ministro atendeu a um pedido da Novonor, que afirma ter sido pressionada a fechar o acordo para garantir sua sobrevivência financeira e institucional. “A declaração de vontade no acordo de leniência deve ser produto de uma escolha com liberdade”, escreveu o ministro, e suspendeu o pagamento da multa estipulada originalmente em R$ 3,8 bilhões.
Gilmar é o primeiro ministro do STF depois de Toffoli a se manifestar positivamente sobre a suspensão dos acordos. Na entrevista, diz que o colega de STF, André Mendonça relatou à Corte que, quando atuava na CGU, foi a Curitiba para tentar saber quais eram os critérios adotados para calcular as indenizações. “A resposta que ele ouviu foi: ‘O critério é o seguinte: a gente pede um valor e eles (empresários) aceitam’. Quer dizer, eles aceitam com medo da prisão. Acho que é isso que está levando a debate hoje a racionalidade de tudo isso.”
O ministro diz ainda que “muito provavelmente, mantidos os valores, as empresas não poderão pagar” as multas previstas.
PGR diz não haver provas de coação nos acordos de leniência
A Procuradoria-Geral da República se coloca em oposição à análise de Gilmar. Em recursos contra as decisões de Toffoli, o procurador-geral Paulo Gonet afirma não haver provas de coação nos casos, apenas “ilações e conjecturas abstratas”.
“A presunção de que goza todo o negócio jurídico é o da sua validade”, reforça Gonet, no recurso sobre a suspensão da multa da Odebrecht. “É óbvio que o particular estará sempre numa posição de pressão. Seria ingênuo supor que alguma grande empresa se apresentaria ao Ministério Público Federal para fechar um acordo de leniência se não percebesse a probabilidade de sofrer danos intensos aos seus interesses se optasse por não colaborar.”
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Outro argumento apontado no recurso da PGR sobre a suspensão da multa bilionária da J&F é que a decisão pode causar um “grave risco ao sistema previdenciário complementar brasileiro”.
Gonet afirma que os fundos de pensão Funcef, da Caixa Econômica Federal, e Petros, da Petrobras, receberiam, cada um, cerca de R$ 2 bilhões do total de R$ 10,3 bilhões da multa. A paralisação dos pagamentos, então, representa um “vultoso prejuízo”, como definiu o procurador-geral.
Em entrevista ao Estadão, o jurista Conrado Hubner Mendes, professor de Direito Constitucional na Universidade de São Paulo (USP), considera que a justificativa de que há dúvida sobre a voluntariedade das empresas nos acordos de leniência é “forçado”.
“Quando a pessoa está sob tortura, seja física, seja moral, é possível questionar a voluntariedade daquilo que ela aceita fazer. É diferente a situação dos maiores empresários do País, com os advogados mais caros, sentando à mesa para negociar”, pondera.
Audiência de conciliação vai discutir interrupção de acordos de leniência da Lava Jato
A questão de quem poderia, de fato, celebrar acordos de leniência foi pacificada em agosto de 2020, quando órgãos do poder público firmaram um Acordo de Cooperação Técnica (ACT) que padroniza o modelo, com a CGU e a AGU como responsáveis por conduzir tanto a negociação quanto a assinatura dos atos.
Os acordos da Lava Jato fechados pelo Ministério Público, no entanto, ocorreram antes desse marco.
Na próxima segunda, 26, o ministro André Mendonça receberá empresários, representantes de órgãos públicos e de partidos para uma audiência de conciliação, com o objetivo de discutir uma ação proposta pelo Solidariedade, PSOL e PCdoB que pede a suspensão liminar de todos os acordos de leniência da Operação Lava Jato firmados antes do ACT de 2020.
Os partidos argumentam que durante a Operação Lava Jato, órgãos de persecução penal promoveram ‘a instalação de um Estado de Coisas Inconstitucional”. Dizem ainda que os acordos foram firmados sob coação e que eles violam preceitos fundamentais.