"Ponha os olhos em mim", pediu Esperança Garcia em carta destinada ao Governador do Piauí no ano de 1770. Mulher negra escravizada, Esperança é a primeira advogada do Brasil, a primeira mulher a peticionar, aos 19 anos, solicitando a proteção do Estado em relação às violências sofridas em virtude da escravidão. Começamos esta escrita com Esperança, porque acreditamos que precisamos olhar para o futuro da advocacia brasileira sem esquecermos do passado.
A intelectual feminista Simone de Beauvoir afirmou que "querer ser livre é também querer livre os outros". É nessa perspectiva que atuamos na defesa dos direitos das mulheres advogadas do Brasil. A luta incansável se dá em virtude de uma realidade assombrosa. Segundo a maior pesquisa sobre denúncias corporativas da América Latina, realizada pela empresa Aliant, os casos de assédio sexual e moral contra trabalhadoras e trabalhadores cresceram 13% em relação ao ano de 2022.
O estudo analisou o ambiente de trabalho de 630 companhias no Brasil, sendo a maioria de grande porte, incluindo os setores de serviços e de indústria. Os dados disponibilizados revelam duas questões essenciais para o debate: a permanência de uma cultura institucional violenta e abusiva e o avanço dos canais de denúncia instituídos pelas empresas brasileiras.
Em artigo publicado pela Conjur, a presidente da Comissão Nacional da Mulher Advogada (CNMA), Cristiane Damasceno, ressaltou que "articulado às dimensões de raça, classe, gênero, orientação sexual, identidade de gênero e outros marcadores sociais da diferença, o assédio no ambiente laboral é ainda mais intenso" - portanto, pessoas negras, pobres, mulheres, LGBTQIA+, indígenas, pessoas com deficiência, entre outras, são mais suscetíveis a sofrerem com os impactos do assédio moral, do assédio sexual e das discriminações no ambiente de trabalho.
Essa constatação, muitas vezes não tão óbvia para alguns setores da sociedade, é relevante para compreendermos a importância histórica da Lei 14.162/2023, que inclui como infração ético-disciplinar o assédio moral, o assédio sexual e a discriminação, alterando a Lei 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia). Ao permitir até a suspensão do exercício profissional de advogados que cometam essas infrações, avançamos rumo à construção de uma sociedade mais equitativa.
Aqui, também falamos com esteio na experiência de uma mulher, advogada militante há mais de vinte e cinco anos, Secretária-Geral Adjunta da CNMA e ativista dos direitos femininos. Ora, se somos essenciais à administração da Justiça no país, como invisibilizar, silenciar e calar as mais de 686 mil advogadas que cotidianamente enfrentam abusos no exercício de sua profissão? Nós, mulheres advogadas, constituímos mais de 50% da categoria; não podemos admitir que sejamos desrespeitadas tão somente por sermos mulheres.
A nossa experiência como mulheres advogadas revela particularidades que nos diferenciam na prática profissional. Desse modo, entendemos que a Lei 14.162/2023 é uma conquista histórica para toda a sociedade civil. A alteração do artigo 34 e a introdução do parágrafo 2° são dispositivos de ordem jurídica, mas também pedagógica. Afinal, a nomeação das violências é essencial para o enfrentamento das mesmas.
A OAB, por meio do Presidente Nacional, Beto Simonetti, mais uma vez, atua de forma vanguardista. Com a lei em pleno vigor, acompanharemos vigilantes todos os casos denunciados e garantiremos o acolhimento necessário a todas as vítimas. Sabemos que o novo dispositivo trará mais segurança e possibilitará condições objetivas para atuarmos em prol da sociedade civil com mais empenho. Junto a ele, continuaremos criando mecanismos de fiscalização e de combate a qualquer tipo de violência que impacta o cotidiano profissional das mulheres advogadas. Prova disso é a publicação da segunda edição da Cartilha de Prerrogativas da Mulher Advogada, a qual tivemos a honra de organizar. Trata-se de um instrumento educativo cujo fim é divulgar as prerrogativas específicas para as mulheres advogadas, a exemplo das destinadas às mulheres advogadas que são mães.
Somando-se a isso, estamos propondo a adoção imediata pela Ordem dos Advogados Seccional do Amapá do julgamento com perspectiva de gênero no âmbito do processo administrativo em trâmite no Tribunal de Ética e Disciplina (TED) e, também, trabalhando na construção de um protocolo para ser utilizado por todos os TEDs do Brasil, em atividade conjunta com a corregedoria do CFOAB, através da nossa Secretária-Geral adjunta e Corregedora Milena Gama, dos Tribunais de Ética das Seccionais e da CNMA.
A professora e filósofa francesa Gisèle Szczyglak, em recente palestra proferida no Tribunal Superior Eleitoral sobre liderança feminina, destaca a importância de as mulheres, enquanto principais vítimas dessas violências, terem suas vozes visibilizadas, escutadas, acolhidas. Precisamos falar sobre as violências que nos acometem, precisamos publicizar e criar condições para que as soluções coletivas gerem impactos positivos não só para nós, mulheres advogadas, mas também para outras profissões, considerando que esta problemática não ocorre de forma isolada. Ao contrário, é reflexo de uma sociedade que ainda não aprendeu a cuidar de suas mulheres.
Sigamos os passos de Esperança Garcia e renovemos as nossas esperanças na luta por uma advocacia brasileira cada vez mais justa e igualitária!
*Sinya Simone Gurgel Juarez, advogada. Especialista em Direito Civil e Processo Civil. Conselheira Federal da OAB/AP. Secretária-geral adjunta da Comissão Nacional da Mulher Advogada do Conselho Federal da OAB. Fundadora da Associação das Mulheres Advogadas do Amapá (AMADAP). Conselheira do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher do Amapá
*José Raimundo Rodrigues da Costa, bacharel em direito. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Técnico judiciário do Tribunal de Justiça do Estado do Amapá