Sem adentrar nos aspectos formais que afetam o caso, decerto que o Inquérito n.º 4.781/DF, em trâmite no Supremo Tribunal Federal sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes, reacendeu o debate a respeito dos limites constitucionais do direito à liberdade de expressão, avançando, inclusive, no tocante à possibilidade de criminalização de fake news e discursos de ódio (hate speech), nas hipóteses de transgressões às normas jurídicas de conduta.
Em que pese o consenso em relação à sua natureza fundamental, a discussão é sensível quando há uma colisão com outros direitos igualmente subjetivos (imagem, honra, intimidade etc.). Assim, se a questão é judicializada, via de regra, a decisão é pautada no juízo de proporcionalidade caso a caso. A exceção parece ocorrer no hate speech quanto às expressões de intolerância racial, em virtude de entendimento jurisprudencial consolidado contrário à proteção constitucional da liberdade de manifestação nos casos de racismo[1]. Logo, os discursos preconceituosos provavelmente estarão sujeitos à resposta penal sem maiores questionamentos.
Sucede que a publicização da supracitada investigação em curso no STF tem impulsionado divergências relativas ao espectro de atuação do Poder Judiciário nestas situações. Aqui, não se trata mais de uma analise sobre o conteúdo das manifestações e a sua relação de proporcionalidade com princípios da convivência social e da dignidade humana. O caso tem fomentado um crescente inconformismo de parcela da população face à possibilidade de responsabilização criminal daqueles que criam ou divulgam notícias falsas, até mesmo quando ultrajam valores tutelados pela Constituição Federal. Consoante esta corrente de pensamento, a propagação de quaisquer opiniões deveria ser salvaguardada pelo direito à liberdade de expressão, afastando-se, por completo, a hipótese de controle de legalidade judicial.
No aspecto, o vertente artigo chama atenção para o desvirtuamento deste debate, por razões que não correspondem às expectativas do Direito. Credita-se, em alguma medida, que o avanço desta postura decorra do atual paradigma teórico-filosófico de aviltamento da noção de verdade e o primado da interpretação sobre fatos. O que se observa nesta atmosfera de múltiplas verdades, onde não há mais o certo e o errado, é que tudo passa a ser relativo a partir de um ponto de vista, a despeito da realidade.
Esta percepção de que "se pode falar qualquer coisa sobre qualquer coisa" é preocupante e deve ser rechaçada com veemência, porquanto, neste particular, tem levado o cidadão equivocadamente a raciocinar que inexiste um parâmetro objetivo que permita ao Estado criminalizar determinadas manifestações, já que todo discurso é reduzido a uma mera questão de opinião. E, assim, alega-se que a matéria não deveria sequer ser levada à apreciação do Judiciário.
.Eis um conhecido fenômeno que historicamente afeta a sociedade em diversos aspectos da vida: a pós-verdade.
Sobre o tema, a ausência de compromisso com a facticidade não é assunto dos dias atuais. O desprezo pela realidade dos fatos foi instrumento de destaque na ascensão e consolidação dos regimes totalitários. Inclusive, este fenômeno político que marcou o século XX veio à tona em um cenário caracterizado pela fragilidade das democracias liberais europeias à época, sob o pálio da necessidade de centralização dos poderes e a pretexto da urgência na tomada de decisões importantes em tempos de guerra. Para tanto, a propaganda política foi utilizada em grande escala nos movimentos totalitários, vez que era preciso convencer os cidadãos das ideias que norteavam o regime para fins de justificar e legitimar as autoritárias condutas do Estado. Assim, por diversas oportunidades aqueles governos se valeram sabidamente de informações falsas, propaladas em veículos de massa para manipular o pensamento, amoldando aos interesses da ideologia perseguida. Muitas dos acontecimentos divulgados hoje são vistos como absurdamente incompreensíveis, a exemplo da crença da supremacia intelectual dos arianos em relação aos judeus, que ocasionou no holocausto. Esta página obscura da história, entretanto, teve o apoio massivo dos cidadãos alemães à época devido a uma campanha capitaneada pelo líder político Adolf Hitler.
A preponderância das crenças e ideologias sobre a objetividade dos fatos, malgrado surja como instrumento a favor do Estado centralizador, ganhou lugar de destaque ao final do século XX quando passou a ser conceituado e compreendido como um fenômeno político e social. Em 1992, o dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich, no ensaio "A Government of Lies" publicado na revista "The Nation"[2], utilizou o termo pós-verdade pela primeira vez ao refletir sobre o episódio do Irã-Contras na Guerra do Golfo. Substancialmente, este caso foi marcado por um escândalo político revelado pela mídia em 1986, no qual os Estados Unidos facilitaram o tráfico ilegal de armas para o Irã que estava sujeito a um embargo internacional de armamento, em troca da libertação de reféns no Líbano, utilizando-se destes lucros para o financiamento dos rebeldes anticomunistas (Contras) e ações terroristas na Nicarágua. Na ocasião, o governo de Ronald Reagan negou por várias vezes antes de admitir a sua participação no caso. Diante da situação, Tesich registou em sua obra o fato de a população americana ter se voltado contra a verdade (esquema "armas por reféns") e começado a construir novas verdades e teorias conspiratórias. O autor afirmou então que os estadunidenses como um povo livre teriam livremente optado por não aceitar a verdade, mas preferir a pós-verdade em seu lugar.
O sentido atribuído ao "pós", neste caso, demonstra a falta de importância que a concepção da palavra verdade passou a ter[3]. Neste sentido, ao eleger a "pós-verdade" (post-truth) como vocábulo do ano em 2016, o Oxford Dictionary conceituou, em tradução livre, como "adjetivo definido como relativo ou referente a circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que as emoções e as crenças pessoais". A toda evidência, a escolha por este termo naquele ano decorreu especialmente de dois acontecimentos que marcaram a plenitude da pós-verdade: o referendo do Brexit (British exit), e as eleições de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos.
Inobstante tenha nominado um fenômeno social antigo, a pós-verdade é um neologismo recente, impulsionado fruto da singular confluência entre uma corrente filosófica, uma época histórica e uma inovação tecnológica[4]. Pode-se dizer, primeiramente, que representa a popularização dos ideais sustentados no pós-modernismo, por muitos considerado o movimento filosófico de maior influência no século XX. A visão nietzschiana de que não existem fatos, mas somente interpretações, foi terreno fértil para alteração dos conceitos tradicionais de verdade e mentira, certo e errado. Por uma perspectiva histórica, se depreende que este fenômeno é instrumento de fortalecimento do populismo em política. O descompromisso e a desonestidade com a realidade representam o triunfo da democracia sem verdade, ao constituir a absolutização da máxima segundo a qual a razão do mais forte é sempre a melhor[5]. O último aspecto que favoreceu a consolidação da pós-verdade foi à denominada revolução tecnológica. O empoderamento das pessoas na busca pela informação desejada passou a gerar uma falsa sensação de liberdade, ao representar uma análise estritamente emocional por vezes despida de senso crítico. Decerto, a liberdade de expressão e o relativismo das informações são lados da mesma moeda, pois na proporção em que as manifestações nas redes sociais se tornam cada vez mais estimuladas, diversas opiniões, defendidas inclusive sob o pálio do argumento de autoridade, podem ser facilmente encontradas, o que não seria preocupante se o grande volume produzido tivesse o compromisso com a verdade; o que, diga-se, não há!
Neste particular, visualizamos com maior facilidade as consequências da pós-verdade com a crescente propagação de fake news, maior exemplo de como a verdade de uma proposição tem derivado mais da credibilidade do interlocutor e das crenças pessoais, do que da própria aproximação com a realidade.
De igual modo, os impactos deste fenômeno têm refletido no sistema de Justiça Criminal. Com aporte no delírio de que não há fatos, somente opiniões, tem se produzido uma preocupante confusão acerca dos limites constitucionais à liberdade de expressão. Partindo-se da equivocada premissa de que "se pode falar qualquer coisa sobre qualquer coisa" a partir de infinitas e subjetivas interpretações sem embargo da verdade - que historicamente experimentou efeitos nocivos à sociedade - há uma crescente corrente de intelecção em prol da legalidade irrestrita de manifestações, ainda que potencialmente criminosas.
Ora, é evidente que divergências e críticas acirradas devem, ao máximo, serem encaradas como corolário da liberdade de opinião, especialmente quando dirigidas a figuras públicas. Porém, isto não autoriza a percepção de que o direito de expressão é absoluto, ou seja, imune a consequências jurídicas. Inclusive, a resposta penal poderá ocorrer se houver violação a bem jurídico tutelado no ordenamento pátrio.
A nossa ótica, ecoa urgente uma mudança de orientação cognitiva com a retomada da noção de objetividade, pois a despeito das nossas preferências existe uma realidade que não permite toda e qualquer manifestação sobre ela, na medida em que foi construída democraticamente pela comunidade política e sempre estará sob a proteção do Judiciário: as normas jurídicas.
*Gabriel Andrade de Santana, mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público-IDP. Especialista em Ciências Criminais e Direito Penal Econômico. Graduado pela Universidade Federal da Bahia-UFBA. Advogado e professor
[1] Precedente "Ellwanger": HC n, 82.424/RS, Plenário do STF, Rel. Min. Maurício Corrêa, 19 de setembro de 2003.
[2] Em 2004, o termo foi consagrado no livro The Post-Truth Era: Dishonesty and Deception in Contemporary Life, de Ralph Keyes.
[3] Assim como "pós-guerra", "pós-nacional", "pós-positivismo", etc.
[5] FERRARIS, Maurizio. Manifesto del nuevo realismo. Roma: Editori Latierza, 2012.