Nesta semana serão votadas 17 novas propostas para enunciados de súmula no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Ficais (CARF).
Dentre estas, chama especial atenção a proposta nº 16, a ser votada pela 3ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) e que trata do dilema entre a fiscalização no curso do despacho aduaneiro e a possibilidade de posterior sujeição da operação à revisão aduaneira.
A proposta possui o seguinte enunciado: “O desembaraço aduaneiro não é instituto homologatório do lançamento e a realização do procedimento de ‘revisão aduaneira’, com fundamento no art. 54 do Decreto-Lei nº 37/1966, não implica ‘mudança de critério jurídico’ vedada pelo art. 146 do CTN, qualquer que seja o canal de conferência aduaneira”.
A nosso ver, a proposta é imprópria e encontra resistência em diversas searas: processuais, materiais e, até mesmo, institucionais.
Primeiramente, cabe rememorar que súmulas nada mais são do que regras vinculantes com vistas à uniformização da jurisprudência de um determinado tribunal e que resultam da existência de decisões reiteradas e consoantes em um determinado sentido.
Diante disso, cabe destacar que a questão sob escrutínio não está pacificada nem no CARF, nem nos Tribunais Superiores, situação que evidencia estarmos diante de momento equivocado para tratar do assunto como a formalização de uma pacificação. Caso seja aprovada essa súmula, restaria comprometido não apenas o necessário amadurecimento da matéria, mas também a segurança jurídica dos tutelados.
Avaliando a jurisprudência recente da CSRF, verifica-se que a prevalência do entendimento pela possibilidade de revisão aduaneira independentemente do canal de parametrização e quando da existência de fiscalização prévia durante o despacho é tênue e nunca pautada em entendimento unânime.
Nos quatro precedentes citados para, procedimentalmente, justificar a proposta de súmula, verifica-se que, nos casos dos Acórdãos nº 9303-006.839 e 9303-013.346, a possibilidade de revisão aduaneira foi validada por 5 votos a 3. Já nos Acórdãos nº 9303-014.438 e 9303-014.439, chama a atenção não apenas o fato de os julgamentos terem ocorrido sequencialmente e na mesma data, mas também a falsa impressão de concordância plena que o resultado por unanimidade pode passar. É que houve relevante ressalva de dois dos julgadores destacando que o entendimento se deu em razão do caso concreto, apesar de não ratificarem o critério de forma geral.
Não obstante os precedentes citados darem legitimidade formal à proposta de súmula, a inexistência de unanimidade é sintomática e revela a incômoda realidade de um debate que ainda está vivo. Portanto, a eventual aprovação da súmula – a nosso ver precipitada – teria o condão de enterrar um importante assunto que ainda necessita de estudo e desenvolvimento.
As decisões do Judiciário reforçam esse atual momento de debate e incipiência, vista a existência de precedentes recentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em sentidos diversos.
Em dezembro de 2021, ocorreu o julgamento do REsp nº 1.826.124/SC pela Primeira Turma do STJ. Nele, restou o entendimento, por unanimidade, sobre a possibilidade de revisão aduaneira independente do canal de parametrização.
Não obstante, esta mesma Primeira Turma, em maio de 2023 e com composição praticamente idêntica, manifestou entendimento oposto. Ainda que a matéria central do REsp nº 1.999.532/RJ fosse a prescrição intercorrente, nesta oportunidade concluiu-se que “o desembaraço registra a conclusão da conferência alfandegária e, por conseguinte, atesta o adimplemento das obrigações tributárias relativas à operação de exportação, constituindo elemento essencial ao posterior translado das mercadorias ao exterior pelo transportador”.
Esta declaração, taxativamente expressa no acórdão, implica o reconhecimento do STJ de que o despacho aduaneiro – quando há fiscalização – fixa critério jurídico nos termos do art. 146 do CTN e, assim, tem caráter homologatório.
A propósito, a despeito de precedentes mais recentes do STJ afirmarem (sem muito debate, frise-se) que o preenchimento da DI, a partir de 2002, passou a representar lançamento por homologação e que, portanto, não há falar-se em lançamento do Fisco, é fato que o entendimento pacificado anterior do mesmo STJ era pela total impossibilidade de revisão aduaneira quando houvesse erro de direito das autoridades (um enorme número de decisões nesse sentido foi proferido ao longo do tempo, com base inclusive na Súmula nº 227 do extinto TFR).
Portanto, é de se questionar se faz sentido o CARF sumular entendimento que tem, historicamente, gerado entendimento diverso no STJ.
Além disso, a redação da súmula é categórica demais em um tema em que as particularidades são cruciais na análise da existência ou não de um critério jurídico. Ao afirmar que “o desembaraço aduaneiro não é instituto homologatório do lançamento”, a súmula convida o intérprete a ignorar os detalhes envolvidos no desembaraço aduaneiro e a tratá-lo, para sempre, como um evento que não configura adoção de um critério jurídico.
Ora, há casos e casos. Existem várias situações em que o desembaraço é acompanhado de fiscalização absolutamente exaustiva, muitas vezes com a elaboração de laudos por profissionais credenciados da própria Receita Federal e que trazem até mesmo a imposição de multas que acabam sendo recolhidas pelos contribuintes a contragosto para acelerar o desembaraço.
É certo tratar esse tipo de situação como evento que não configura a adoção de um critério jurídico, equiparando-a a uma importação rápida sem qualquer análise, como ocorre no canal verde? A resposta nos parece bastante óbvia.
Reforçando ainda mais esse receio, é de se ressaltar conclusão do próprio STJ que, avaliando a aplicação do art. 146 do CTN, afirmou que o dispositivo se aplica quando houver, no desembaraço aduaneiro, orientação expressa das autoridades (REsp n. 1.576.199/SC, relator Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 13/4/2021, DJe de 19/4/2021):
“Não ocorrendo esse lançamento, as retificações de informações constantes da Declaração de Importação - DI são atos praticados pelo próprio contribuinte na condição de “autolançamento”, dentro da sistemática de lançamento por homologação, apenas se cogitando da incidência do art. 146, do CTN (modificação de “critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa”), se esses atos se deram em razão de orientação expressa dada pelo fisco no momento de sua feitura que há de ser comprovada nos autos.”
Por fim, tem-se ainda problemas sob o viés institucional. Afinal, parece contraditório que o CARF, poucos meses após a publicação da Portaria CARF/MF Nº 627 de 23 de abril de 2024 que criou as Turmas Especializadas Aduaneiras, utilize de paradigmas julgados antes da especialização para fixar um entendimento.
A necessidade de fixar, sem um conjunto seguro de entendimentos em um mesmo sentido, limites de interpretação sobre uma das matérias mais relevantes do universo aduaneiro passa uma mensagem de descrença com o recém iniciado trabalho das novas turmas especializadas.
Por todas estas razões, nos parece que nenhuma súmula aduaneira deveria ser votada neste ano, muito menos sobre matéria que sequer possui entendimento consolidado e pacífico entre os julgadores do órgão – especialistas ou não.
Como dito, as súmulas são instrumentos relevantes de uniformização, mas devem derivar de um movimento natural de consolidação. Caso contrário, passam a ser instrumentos frágeis, que trazem insegurança e desvirtuam o propósito.
Neste contexto, relevante que o setor privado esteja atento às discussões sobre o tema e que exerça seu direito de fala perante o CARF em prol da rejeição da Proposta de Súmula n. 16 e, principalmente, para que as Turmas Aduaneiras sejam tratadas como um efetivo movimento pró-especialização e não apenas um artifício fazendário para a mitigação da segurança jurídica.