Desde de sua criação, o Coaf - Conselho de Controle de Atividades Financeiras - tornou-se o protagonista da política de combate à lavagem de dinheiro no Brasil. Informações prestadas por bancos e outras empresas obrigadas a reportar atividades suspeitas alimentaram, ano após ano, relatórios de inteligência emitidos pelo Coaf e compartilhados, principalmente, com o Ministério Público. Boa parte das investigações que tiveram grande repercussão nacional teve a contribuição dos relatórios emitidos pelo Coaf.
Entretanto, enquanto o país aguardava o desfecho da disputa pelo controle do Coaf entre o Ministério da Economia e o Ministério da Justiça e da Segurança Pública, outro ator entrou em cena para, sem muito alarde, dividir o protagonismo até então inveterado pelo Coaf. Fala-se da Receita Federal, cuja incumbência destina-se à fiscalização e à cobrança de tributos federais. E várias são as evidências de que a luta contra a lavagem de dinheiro já tem a Receita Federal como um dos principais aliados.
No dia 1.º de agosto, entrará em vigor a instrução normativa da Receita Federal n.º 1.888 de 2019, que estabelece, dentre outras medidas, a obrigação de corretoras de criptoativos (exchanges) domiciliadas no Brasil de informar à Receita Federal as operações realizadas, detalhando, dentre outras informações, os titulares da operação, o identificador único de carteira (endereço de wallet), tanto do remetente quanto do destinatário, o valor da operação e a quantidade de criptoativos utilizados.
Quando estiver em vigor, tal normativa estenderá às corretoras de criptoativos obrigação semelhante da que os bancos têm de reportar ao Coaf informações detalhadas sobre as movimentações financeiras de seus correntistas. Com efeito, a colheita de dados prevista na Instrução Normativa parece extrapolar a competência da Receita Federal, pois exige das corretoras de criptomoedas informações que extravasam o propósito de fiscalização tributária.
A Receita Federal também editou a Instrução Normativa n. 1863 de 27 de dezembro de 2018, que exige que entidades domiciliadas no exterior e detentoras de bens no Brasil declarem suas estruturas societárias, indicando os beneficiários finais, pessoas físicas ou jurídicas. Trata-se de outra medida que não aparenta ter o único viés de investigação de fraude tributária, principalmente por buscar identificar as pessoas físicas no Brasil beneficiárias de empresas no exterior.
Nesse mesmo sentido, a partir de janeiro de 2018, foi implementada a obrigação de se declarar, à Receita Federal, valores recebidos em espécie acima de R$ 30.000,00, medida que se aplica não apenas às pessoas jurídicas, mas, também, às pessoas físicas. Até então, somente empresas de determinadas atividades tinham obrigação semelhante, com a diferença de que se reportam ao Coaf.
Mas não é só. Outro fato que chamou recentemente a atenção foi a divulgação da Nota Técnica n.º 48/2018, que aponta que a Equipe Especial de Programação de Combate a Fraudes Tributárias da Receita Federal foi instituída para a investigação de diversos crimes, dentre os quais está a lavagem de dinheiro.
O fato é que, como não há limites externos muito delineados à atividade da Receita Federal no âmbito das investigações, apurações que extrapolem crimes tributários e aduaneiros tendem a se perpetuar sem claros instrumentos de freios e contrapesos.
Pode-se argumentar que a coleta de dados pela Receita Federal costuma ser mais abrangente, quando comparada às ferramentas utilizas em investigações presididas pelo Ministério Público ou pela Polícia, o que traria mais eficiência à apuração de crimes. De fato, a Receita Federal tem acesso direto - ou seja, sem autorização judicial - a dados de movimentação bancária de qualquer contribuinte; já tem acesso aos beneficiários finais de offshores e empresas no exterior e, em breve, ainda terá acesso às movimentações de criptomoedas.
Por outro lado, dada a sensibilidade e o sigilo dos dados bancários dos cidadãos, o Ministério Público e a Polícia só podem obtê-los por meio de autorização judicial e, no caso de beneficiário final de offshores ou trusts, por meio da cooperação jurídica internacional.
A colheita de dados pela Receita Federal, ao contrário do que ocorreria com o Ministério Público ou com a Polícia, não passa pelo crivo de legalidade pelo judiciário. Logo, a atuação da Receita Federal para a investigação de ilícitos não tributários, embora mais ágil, pode acarretar em violação aos direitos de intimidade e privacidade dos cidadãos, sem qualquer crivo de legalidade.
Mais grave ainda. Com o fim de burlar o controle judicial, investigações que seriam originalmente presididas pelo Ministério Público ou pela Polícia podem ser delegadas à Receita Federal, justamente pelo livre acesso que tal órgão tem a dados fiscais e bancários dos contribuintes.
Definitivamente, o cerco está se fechando para a lavagem de dinheiro, mesmo que às duras penas para os direitos e garantias previstos na Constituição Federal. Ainda é cedo para saber se o Coaf perderá seu protagonismo nessa luta, mas parece certo que, a depender do desfecho dessa história, o contribuinte estará cada vez mais no olho do furacão.
*Filipe Magliarelli e Thais Pinheiro são especialistas da área Penal Empresarial do KLA Advogados