As cidades brasileiras estão se uniformizando nas suas periferias: uma farmácia, um bar e um templo. As três unidades são abundantes. Só que a visita à farmácia é compulsória, ao contrário das outras duas. E o preço dos remédios é um abuso. Como é que algo que existe para curar ou aliviar o sofrimento pode custar tão caro?
Uma das mais poderosas do planeta, a indústria farmacêutica não tem primado pela ética. Por isso é que surgem tantas teorias de que já existe cura para o câncer, mas a mega empresa dos medicamentos não deixa que isso chegue a domínio público. E outras más companheiras que nos seguem, como a hipertensão, a diabetes, as "n" moléstias que nos atormentam enquanto não chega o fim.
Recorrer a remédios é um hábito arraigado no brasileiro. Quando precisa e quando não precisa. Aliás, o receituário a cargo de amigos e colegas é outra praxe. E o consumo depois da consulta ao Dr. Google.
Pois é interessante a leitura do livro "Império da dor", de Pagrick Radden Keefe, publicado pela Editora Intrínseca. Narra o episódio verídico da família Sackler, dona da Purdue Pharma, fabricante do analgésico OxyContin, cujo efeito é análogo ao da morfina.
Começa com a trajetória de Arthur Sackler, o mais velho dos três irmãos nascidos no início do século XX, cujos pais eram imigrantes judeus. Formou-se em psiquiatria e fez a fortuna familiar criando Librium e Valium. Convenceu os médicos a receitarem os sedativos, sem falar no risco de dependência. O Valium surgiu em 1960 e só veio a ser controlado treze anos depois.
Arthur foi o formulador do manual de marketing depois usado para vender OxyContin. Como funcionava? Mediante pagamento a médicos e profissionais da saúde para promover o medicamento, propaganda agressiva e não tomar conhecimento das denúncias sobre as sequelas advindas do uso prolongado.
O sobrinho Richard Sackler, presidente da Purdue Pharma entre 1999 e 2003, pressionou os cientistas para desenvolverem o OxyContin na década de 1990 e propagou o seu uso para atenuar dores rotineiras. Conclamava os vendedores a desencadearem uma "nevasca de prescrições".
Não se desconhecia que os analgésicos mais eficazes causariam dependência. Mas havia uma tática: sustentar que o OxyContin, pílula de casca bem consistente, só liberaria a medicação de forma lenta e gradual. Com isso, evitaria a oscilação do alívio da dor que conduziria ao vício.
Só que os usuários descobriram rapidamente que a substância opioide seria potencializada mediante esmagamento da parte mais sólida da pílula. Com o pó obtido, eles o ingeriam ou cheiravam. E logo ficavam chapados.
Com o aumento das denúncias, um executivo da empresa pediu a um assistente jurídico participasse das salas de chat online sob pseudônimo, para descobrir se havia ou não abuso da droga. Tomou contato com a tática do esmagamento e das fungadas. Relatou num memorando que foi ignorado e cuja existência foi até negada pela Purdue, como relata Cláudia Collucci num artigo que contempla o caso e resenha o livro de Patrick Radden Keefe.
Afirmando que menos de um por cento dos pacientes se viciavam, a OxyContin lucrou mais de trinta e cinco bilhões de dólares nos Estados Unidos! Tornou-se uma das empresas mais rentáveis do mundo.
Em lugar de assumir sua responsabilidade, a família continuou com lobby corporativo, para enfraquecer normas, fez acordos fora dos tribunais, subornou e perpetrou fraudes. Criou teoria da pseudodependência, exatamente como fazem alguns antiambientalistas que contratam sumidades de estatais criadas para desenvolver projetos saudáveis e defender, por exemplo, que a fauna do canavial é superior à da Mata Atlântica. Acusou os médicos de opiofobia. Contratou os melhores advogados. Conseguiu arquivamento de ações judiciais.
Em 2020, a empresa acabou se declarando culpada, mas os Sackler permaneceram silentes. Como se a corporação tivesse vida própria, fosse movida por Inteligência Artificial e não sob comando de seus proprietários.
Assim como ocorre com o dano ambiental, o prejuízo causado a milhões de vítimas e de familiares, o baque na economia, o custo para os sistema de saúde, tudo é incalculável. Mas a fortuna da família permanece intacta. Às custas da fabricação de um remédio que mata. Para essa gente, não interessa a reputação moral, desde que os bolsos - e as bolsas, e os bancos, e as instituições financeiras - continuem a responder aos seus anseios.
*José Renato Nalini é diretor-geral da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e secretário-geral da Academia Paulista de Letras