A voz tensa de Powell veio pelo rádio, soando aos ouvidos de Donovan:
Bem, escute: vamos começar pelas três leis fundamentais das Regras da Robótica, as três regras que estão mais profundamente incutidas no cérebro positrônico de um robô.
No escuro, seus dedos enluvados enumeravam cada uma delas.
Temos: Um: um robô não pode ferir um ser humano, ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal.
Certo!
Dois: um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens contrariem a Primeira Lei.
Certo!
...e três: um robô deve proteger sua própria existência enquanto tal proteção não entrar em conflito com a Primeira ou Segunda Leis.
INTRODUÇÃO
Parecia ficção, mas agora chegamos na realidade, e 2023 nos mostra o quanto regras e leis tornaram-se essenciais para algo que só víamos nos livros e filmes de ficção cientifica. Chegamos à era da Inteligência Artificial.
A citação acima é de Isaac Asimov, renomado autor de ficção científica, que descreveu em sua obra “Eu, Robô” as três leis fundamentais da robótica. Embora escritas em uma era muito anterior à concepção da IA, essas leis passam a ressoar com inegável importância no cenário atual. E somente elas não são mais suficientes!
Em 2023, vivenciamos um avanço significativo na regulação da IA em todo o mundo, à medida que a IA se torna uma parte integrante da vida cotidiana e sua exploração comercial chegou a patamares sem precedentes!
DA GÊNESE AO USO COMERCIAL
Apesar da história da IA remontar décadas, quando pioneiros como Alan Turing e Ada Lovelace começaram a explorar as possibilidades da criação de máquinas inteligentes, apenas recentemente a IA evoluiu exponencialmente, transformando-se em uma ferramenta poderosa e ubíqua em nosso mundo moderno, como uma adoção cada vez mais doméstica.
O uso comercial da IA tem inundado o mercado com soluções inovadoras em diversos setores, desde assistentes virtuais a carros autônomos, perpassando por criação de conteúdo, automatização de processos, criação de medicamentos e análise e tratamento de pacientes. Com o avanço constante da computação, os impactos da IA só tendem a se acentuar, moldando nossas vidas e a economia de mercado de maneira profunda.
IMPACTOS LEGISLATIVOS DA IA
A IA afeta juridicamente diversos aspectos do cotidiano e impacta diversas questões legais, como a propriedade intelectual e o direito autoral, por meio da criação de obras artísticas e literárias pela IA e eventuais “violações” ou aparentes violações, que reforçam novos desafios para definir quem detém os direitos autorais, em uma ausência de legislação aplicável.
A IA também passou a gerar uma grande discussão sobre responsabilidade civil, levantando o ponto da responsabilidade por danos causados pela IA sendo eles dos desenvolvedores, dos operadores ou da IA per si. As leis ainda precisam ser adaptadas e claras nesse aspecto.
Muitas discussões também surgiram sobre o uso de dados para treinamento dos sistemas de IA, que dependem de grandes conjuntos de informações, levantando pontos sobre a coleta, uso e privacidade dos mesmos.
E falando de privacidade de dados, o uso da IA pode afetar a privacidade das pessoas, exigindo regulamentações específicas para proteger informações pessoais em um contexto em que anonimização e dados inidentificáveis são colocados em xeque.
Além disto, temos os dados sintéticos, que são dados gerados pelos próprios sistemas, levantando preocupações sobre veracidade, autenticidade e seu uso legal.
Desta forma, a regulação vem evoluindo para tentar acompanhar os desdobramentos tecnológicos, muitas vezes sem sucesso. O mundo todo tomou frente em projetos de leis e leis promulgadas para tentar restringir os impactos do uso da IA e proteger seus cidadãos dos desdobramentos negativos.
REGULAÇÃO DE IA PELO MUNDO
Diversos países e regiões tomaram frente neste processo como:
- União Europeia: A UE foi uma das pioneiras na regulação da IA. Em abril de 2023, a Comissão Europeia aprovou o Regulamento sobre Sistemas de IA (AI Act), que estabelece princípios e regras para o desenvolvimento e uso de sistemas de IA na UE. O AI Act proíbe a discriminação e a manipulação em sistemas de IA e exige que os sistemas sejam transparentes e rastreáveis.
- Estados Unidos: Os EUA também avançaram em 2023. Em junho de 2023, o Departamento de Comércio dos EUA lançou um guia para empresas que desenvolvem e usam sistemas de IA. O guia fornece orientação sobre como evitar a discriminação e a manipulação em sistemas de IA e como promover a equidade e a inclusão.
- China: A China aprovou a Lei de Promoção do Desenvolvimento da Inteligência Artificial (Artificial Intelligence Promotion Law) que entrou em vigor em julho de 2023. A lei estabelece princípios para o desenvolvimento e uso de sistemas de IA no país, como a promoção da inovação e a proteção da segurança nacional.
- Outros: Além destes, diversos outros também em 2023: por exemplo, o Japão aprovou sua lei de IA em maio de 2023, que estabelece princípios para o desenvolvimento e uso de sistemas de IA; a Índia também aprovou em junho de 2023 lei que estabelece princípios para o desenvolvimento e uso de sistemas de IA.
CENÁRIO BRASILEIRO
O Brasil não ficou para trás na regulação da IA. O Projeto de Lei 5.589/2021, aprovado pelo Senado em dezembro de 2023, estabelece princípios e regras para o desenvolvimento e uso de sistemas de IA no País, porém, ainda aguarda aprovação da Câmara dos Deputados, mas deve ser impactado (positivamente) pela Comissão Especial de Direito Digital da Câmara, vez que a regulação atual ainda precisa evoluir considerando os diferentes tipos de IA e as obrigações plausíveis.
Fato é que alguns temas – certos ou não – tornaram-se centrais e pontos comum na crescente da IA, como:
- Discriminação e manipulação: as leis e diretrizes aprovadas em 2023 proíbem a discriminação e a manipulação em sistemas de IA.
- Transparência e rastreabilidade: as leis e diretrizes aprovadas em 2023 exigem que os sistemas de IA sejam transparentes e rastreáveis.
- Equidade e inclusão: as leis e diretrizes aprovadas em 2023 promovem a equidade e a inclusão no desenvolvimento e uso de sistemas de IA.
A AUTORREGULAÇÃO REGULADA COMO CAMINHO
Regular novas tecnologias é um grande desafio. Não pode ser rápido demais, caso contrário temos insegurança jurídica, nem morosos demais, ou teremos leis defasadas no nascimento.
Mas há uma solução. Uma abordagem promissora para regulamentar a IA (e bem-sucedida como, por exemplo, as leis de proteção de dados no mundo), é a autorregulação regulada.
Tal forma de regulação envolve a colaboração entre a indústria, especialistas em IA e autoridades governamentais para criar padrões éticos e legais que permitam a inovação enquanto protegem os direitos e interesses de todas as partes envolvidas, exigindo obrigações de compliance técnico e jurídico, com eventuais sanções pelo descumprimento.
Nesse contexto, a Comissão de Direito Digital da Câmara dos Deputados tem um papel crucial. Como um expert técnico convidado, estive envolvido nesse esforço para atualizar o direito e criar normas que se conectem com a IA, proteção de dados, direitos autorais e outras questões da era digital, que devem inevitavelmente estarem lincados, posto que as tecnológicas são confluentes e precisam de regulações que dialoguem entre si.
Não devemos temer os avanços da tecnologia, que, muitas vezes, geram desconforto pelo desconhecimento. Devemos regular de maneira contundente pois a IA não busca feriar ninguém, mas sim as pessoas que buscam utilizá-la indevidamente, e aí está o problema.
*Matheus Puppe, advogado especializado em Direito Digital, sócio da área de TMT, Privacidade e Proteção de Dados do Maneira Advogados