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Retrospectiva dos Direitos Humanos -- 2022


Por Belisário dos Santos Jr.
Belisário dos Santos Jr. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

"Apesar de avanços significativos, persiste a noção arraigada de que, para o brasileiro comum, não há direitos: há posições sociais que asseguram maiores ou menores chances de se obter a satisfação daquilo que a Constituição e as leis definem como direitos!"

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Esse texto da socióloga Maria Victória de Mesquita Benevides é de 2009 ("Fé na Luta") e reconhecia que grande parte dos direitos - notadamente os econômicos, sociais e culturais - dependia da vontade política dos governantes e da pressão popular da sociedade civil organizada.

Saltamos para 2022 e, horrorizados, constatamos que, em muitas partes do Brasil, a luta principal é pela vida, pela sobrevivência, para não se morrer de fome, de violência policial ou de crime de ódio. Em maio de 2022, Genivaldo de Jesus Santos foi fechado no porta-malas de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal, onde agentes soltaram jatos de gás até ele morrer por asfixia, agonia que foi filmada para todo Brasil.

Ainda que o número de mortes em decorrência de ação policial tenha caído em 2021, essa redução ocorreu apenas em 16 estados da Federação. Mas elevadas taxas de mortalidade permanecem no restante do Brasil, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública para 2022, sendo que no estado do Amapá a polícia mata quase seis vezes a média nacional. O estado de Sergipe, onde morreu Genivaldo, é o segundo estado de maior letalidade no Brasil. Com base nos números da letalidade policial de 2020, 78,9% eram de pessoas negras. Assim, ninguém se espante que no sistema penitenciário, dois em cada três presos sejam negros. Isto para não falar das abordagens policiais, ou da noção de "suspeito", em relação a pessoas negras. Há uma opção preferencial do sistema de segurança pública pela população negra. Aqui já se esboça um quadro terrível do nosso racismo estrutural.

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Em junho de 2022, na região amazônica do Vale do Javari, foram mortos o indigenista Bruno Pereira, servidor licenciado da Funai e o jornalista Don Philips, por disparos de arma de caça, sendo seus corpos escondidos por vários dias. A falta de demarcação de reservas indígenas, o esvaziamento da Funai, as constantes invasões das terras demarcadas, o garimpo, a pesca e a caça ilegais, o desmonte da política ambiental e dos órgãos de controle e combate a esses crimes pelo governo Bolsonaro têm parcela significativa da responsabilidade por esse fato e outros semelhantes.

Outro dado recente (out/22) dá conta da polarização crescente, estabelecida no seio da sociedade brasileira. A ONG Safernet, que recebe denúncias de crimes contra os direitos humanos praticados com uso da internet, mostra aumento de 67,5 % nos casos de racismo, intolerância religiosa e LGBTQIA+Fobia em relação ao ano anterior de 2021. Esse dado está seguramente vinculado ao calendário eleitoral. Ao lado dos crimes virtuais verificaram-se vários crimes de origem em diferenças ideológicas, no mundo real, de que é exemplo o homicídio de Marcelo de Arruda em Foz de Iguaçu, entre outros.

Relembre-se que, em julho, o presidente Jair Bolsonaro havia reunido embaixadores de diversos países para colocar em dúvida o sistema eleitoral brasileiro e as urnas eletrônicas, como havia feito outras vezes, sem qualquer prova de irregularidades, assunto que rendeu manchetes no Brasil e em jornais estrangeiros, provocando grande escândalo na comunidade internacional. O não reconhecimento do resultado das urnas, se desfavorável, era outra constante do discurso bolsonarista. Esta conduta provocou reações de todo o universo dos direitos humanos. A Comissão Arns emitiu nota pública afirmando que diante do "anúncio do golpe ao mundo, era hora de reagir". A sociedade civil se reuniu no Largo São Francisco, divulgando a "Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito". A Comissão Internacional dos Juristas divulgou comunicação formal em setembro afirmando que "a independência judicial e a independência do processo eleitoral estão efetivamente sitiadas no Brasil devido aos ataques do Presidente". Ataques velados e não tão velados continuaram a ser feitos pelo presidente à Suprema Corte, a seus ministros e à Justiça Eleitoral (notadamente por decisões em legítima defesa da democracia) e à imprensa em geral.

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Esse ambiente de polarização agravou-se pelo excesso de armas em circulação provocado pela avalanche de decretos emanados do governo federal e que causou aumento de 473% no número de registros de colecionador, atirador e caçador (CAC), segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, apenas em 2021.

As manifestações de apoiadores do presidente passaram a ganhar um tom cada vez mais ideologizado e violento, algumas até de caráter nazista, e outras baseando-se em pedidos pela intervenção militar e fechamento das instituições. Elas duram até hoje (como a greve dos caminhoneiros, o fechamento das estradas e os acampamentos às portas dos quartéis).

Já os direitos econômicos, sociais e culturais foram continuamente desrespeitados, não só pela corrupção amplamente divulgada em alguns ministérios, mas também pelo desprezo com que o governo Bolsonaro tratou os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Estudo divulgado pela Câmara Federal aponta que o Brasil não apresentou progresso satisfatório em nenhuma das 169 metas dos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030, estabelecida pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 2015. Das 169 metas, 54,4% estão em retrocesso, 16% estagnadas, 12,4% ameaçadas e 7,7% mostram progresso insuficiente (Fonte: Agência Câmara de Notícias). O número da fome assusta igualmente. Segundo o Relatório Luz, "o ano de 2020 se encerrou com mais de metade da população do País (113 milhões de pessoas) em situação de insegurança alimentar, sem saber se teriam o que comer no dia seguinte. 19 milhões de pessoas passaram fome.". Essa situação se manteve.

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Todo esse quadro de violações cometidas pelo governo Bolsonaro ou com base na ausência de políticas públicas bem como a reação da sociedade civil organizada será agora objeto de exame pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, no mecanismo chamado Revisão Periódica Universal (RPU), aguardando-se as recomendações que serão feitas e deverão ser implementadas pelo Brasil para se reajustar a patamares satisfatórios de cumprimento de direitos humanos.

Do novo governo em vias de assumir o poder, legitimado por expressiva votação, em eleições limpas e transparentes, aguarda-se que reveja os retrocessos aplicados aos direitos da cidadania, implemente políticas públicas que atendam aos mais necessitados, cumpra seus compromissos internacionais e trabalhe para reforçar a cultura de paz e de respeito aos direitos humanos. É disso que tanto precisamos.

*Belisário dos Santos Jr., sócio de Rubens Naves Santos Jr - Advogados, membro da Comissão Internacional de Juristas, e da Comissão Arns e Presidente da CDH do IASP

Belisário dos Santos Jr. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

"Apesar de avanços significativos, persiste a noção arraigada de que, para o brasileiro comum, não há direitos: há posições sociais que asseguram maiores ou menores chances de se obter a satisfação daquilo que a Constituição e as leis definem como direitos!"

Esse texto da socióloga Maria Victória de Mesquita Benevides é de 2009 ("Fé na Luta") e reconhecia que grande parte dos direitos - notadamente os econômicos, sociais e culturais - dependia da vontade política dos governantes e da pressão popular da sociedade civil organizada.

Saltamos para 2022 e, horrorizados, constatamos que, em muitas partes do Brasil, a luta principal é pela vida, pela sobrevivência, para não se morrer de fome, de violência policial ou de crime de ódio. Em maio de 2022, Genivaldo de Jesus Santos foi fechado no porta-malas de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal, onde agentes soltaram jatos de gás até ele morrer por asfixia, agonia que foi filmada para todo Brasil.

Ainda que o número de mortes em decorrência de ação policial tenha caído em 2021, essa redução ocorreu apenas em 16 estados da Federação. Mas elevadas taxas de mortalidade permanecem no restante do Brasil, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública para 2022, sendo que no estado do Amapá a polícia mata quase seis vezes a média nacional. O estado de Sergipe, onde morreu Genivaldo, é o segundo estado de maior letalidade no Brasil. Com base nos números da letalidade policial de 2020, 78,9% eram de pessoas negras. Assim, ninguém se espante que no sistema penitenciário, dois em cada três presos sejam negros. Isto para não falar das abordagens policiais, ou da noção de "suspeito", em relação a pessoas negras. Há uma opção preferencial do sistema de segurança pública pela população negra. Aqui já se esboça um quadro terrível do nosso racismo estrutural.

Em junho de 2022, na região amazônica do Vale do Javari, foram mortos o indigenista Bruno Pereira, servidor licenciado da Funai e o jornalista Don Philips, por disparos de arma de caça, sendo seus corpos escondidos por vários dias. A falta de demarcação de reservas indígenas, o esvaziamento da Funai, as constantes invasões das terras demarcadas, o garimpo, a pesca e a caça ilegais, o desmonte da política ambiental e dos órgãos de controle e combate a esses crimes pelo governo Bolsonaro têm parcela significativa da responsabilidade por esse fato e outros semelhantes.

Outro dado recente (out/22) dá conta da polarização crescente, estabelecida no seio da sociedade brasileira. A ONG Safernet, que recebe denúncias de crimes contra os direitos humanos praticados com uso da internet, mostra aumento de 67,5 % nos casos de racismo, intolerância religiosa e LGBTQIA+Fobia em relação ao ano anterior de 2021. Esse dado está seguramente vinculado ao calendário eleitoral. Ao lado dos crimes virtuais verificaram-se vários crimes de origem em diferenças ideológicas, no mundo real, de que é exemplo o homicídio de Marcelo de Arruda em Foz de Iguaçu, entre outros.

Relembre-se que, em julho, o presidente Jair Bolsonaro havia reunido embaixadores de diversos países para colocar em dúvida o sistema eleitoral brasileiro e as urnas eletrônicas, como havia feito outras vezes, sem qualquer prova de irregularidades, assunto que rendeu manchetes no Brasil e em jornais estrangeiros, provocando grande escândalo na comunidade internacional. O não reconhecimento do resultado das urnas, se desfavorável, era outra constante do discurso bolsonarista. Esta conduta provocou reações de todo o universo dos direitos humanos. A Comissão Arns emitiu nota pública afirmando que diante do "anúncio do golpe ao mundo, era hora de reagir". A sociedade civil se reuniu no Largo São Francisco, divulgando a "Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito". A Comissão Internacional dos Juristas divulgou comunicação formal em setembro afirmando que "a independência judicial e a independência do processo eleitoral estão efetivamente sitiadas no Brasil devido aos ataques do Presidente". Ataques velados e não tão velados continuaram a ser feitos pelo presidente à Suprema Corte, a seus ministros e à Justiça Eleitoral (notadamente por decisões em legítima defesa da democracia) e à imprensa em geral.

Esse ambiente de polarização agravou-se pelo excesso de armas em circulação provocado pela avalanche de decretos emanados do governo federal e que causou aumento de 473% no número de registros de colecionador, atirador e caçador (CAC), segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, apenas em 2021.

As manifestações de apoiadores do presidente passaram a ganhar um tom cada vez mais ideologizado e violento, algumas até de caráter nazista, e outras baseando-se em pedidos pela intervenção militar e fechamento das instituições. Elas duram até hoje (como a greve dos caminhoneiros, o fechamento das estradas e os acampamentos às portas dos quartéis).

Já os direitos econômicos, sociais e culturais foram continuamente desrespeitados, não só pela corrupção amplamente divulgada em alguns ministérios, mas também pelo desprezo com que o governo Bolsonaro tratou os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Estudo divulgado pela Câmara Federal aponta que o Brasil não apresentou progresso satisfatório em nenhuma das 169 metas dos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030, estabelecida pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 2015. Das 169 metas, 54,4% estão em retrocesso, 16% estagnadas, 12,4% ameaçadas e 7,7% mostram progresso insuficiente (Fonte: Agência Câmara de Notícias). O número da fome assusta igualmente. Segundo o Relatório Luz, "o ano de 2020 se encerrou com mais de metade da população do País (113 milhões de pessoas) em situação de insegurança alimentar, sem saber se teriam o que comer no dia seguinte. 19 milhões de pessoas passaram fome.". Essa situação se manteve.

Todo esse quadro de violações cometidas pelo governo Bolsonaro ou com base na ausência de políticas públicas bem como a reação da sociedade civil organizada será agora objeto de exame pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, no mecanismo chamado Revisão Periódica Universal (RPU), aguardando-se as recomendações que serão feitas e deverão ser implementadas pelo Brasil para se reajustar a patamares satisfatórios de cumprimento de direitos humanos.

Do novo governo em vias de assumir o poder, legitimado por expressiva votação, em eleições limpas e transparentes, aguarda-se que reveja os retrocessos aplicados aos direitos da cidadania, implemente políticas públicas que atendam aos mais necessitados, cumpra seus compromissos internacionais e trabalhe para reforçar a cultura de paz e de respeito aos direitos humanos. É disso que tanto precisamos.

*Belisário dos Santos Jr., sócio de Rubens Naves Santos Jr - Advogados, membro da Comissão Internacional de Juristas, e da Comissão Arns e Presidente da CDH do IASP

Belisário dos Santos Jr. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

"Apesar de avanços significativos, persiste a noção arraigada de que, para o brasileiro comum, não há direitos: há posições sociais que asseguram maiores ou menores chances de se obter a satisfação daquilo que a Constituição e as leis definem como direitos!"

Esse texto da socióloga Maria Victória de Mesquita Benevides é de 2009 ("Fé na Luta") e reconhecia que grande parte dos direitos - notadamente os econômicos, sociais e culturais - dependia da vontade política dos governantes e da pressão popular da sociedade civil organizada.

Saltamos para 2022 e, horrorizados, constatamos que, em muitas partes do Brasil, a luta principal é pela vida, pela sobrevivência, para não se morrer de fome, de violência policial ou de crime de ódio. Em maio de 2022, Genivaldo de Jesus Santos foi fechado no porta-malas de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal, onde agentes soltaram jatos de gás até ele morrer por asfixia, agonia que foi filmada para todo Brasil.

Ainda que o número de mortes em decorrência de ação policial tenha caído em 2021, essa redução ocorreu apenas em 16 estados da Federação. Mas elevadas taxas de mortalidade permanecem no restante do Brasil, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública para 2022, sendo que no estado do Amapá a polícia mata quase seis vezes a média nacional. O estado de Sergipe, onde morreu Genivaldo, é o segundo estado de maior letalidade no Brasil. Com base nos números da letalidade policial de 2020, 78,9% eram de pessoas negras. Assim, ninguém se espante que no sistema penitenciário, dois em cada três presos sejam negros. Isto para não falar das abordagens policiais, ou da noção de "suspeito", em relação a pessoas negras. Há uma opção preferencial do sistema de segurança pública pela população negra. Aqui já se esboça um quadro terrível do nosso racismo estrutural.

Em junho de 2022, na região amazônica do Vale do Javari, foram mortos o indigenista Bruno Pereira, servidor licenciado da Funai e o jornalista Don Philips, por disparos de arma de caça, sendo seus corpos escondidos por vários dias. A falta de demarcação de reservas indígenas, o esvaziamento da Funai, as constantes invasões das terras demarcadas, o garimpo, a pesca e a caça ilegais, o desmonte da política ambiental e dos órgãos de controle e combate a esses crimes pelo governo Bolsonaro têm parcela significativa da responsabilidade por esse fato e outros semelhantes.

Outro dado recente (out/22) dá conta da polarização crescente, estabelecida no seio da sociedade brasileira. A ONG Safernet, que recebe denúncias de crimes contra os direitos humanos praticados com uso da internet, mostra aumento de 67,5 % nos casos de racismo, intolerância religiosa e LGBTQIA+Fobia em relação ao ano anterior de 2021. Esse dado está seguramente vinculado ao calendário eleitoral. Ao lado dos crimes virtuais verificaram-se vários crimes de origem em diferenças ideológicas, no mundo real, de que é exemplo o homicídio de Marcelo de Arruda em Foz de Iguaçu, entre outros.

Relembre-se que, em julho, o presidente Jair Bolsonaro havia reunido embaixadores de diversos países para colocar em dúvida o sistema eleitoral brasileiro e as urnas eletrônicas, como havia feito outras vezes, sem qualquer prova de irregularidades, assunto que rendeu manchetes no Brasil e em jornais estrangeiros, provocando grande escândalo na comunidade internacional. O não reconhecimento do resultado das urnas, se desfavorável, era outra constante do discurso bolsonarista. Esta conduta provocou reações de todo o universo dos direitos humanos. A Comissão Arns emitiu nota pública afirmando que diante do "anúncio do golpe ao mundo, era hora de reagir". A sociedade civil se reuniu no Largo São Francisco, divulgando a "Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito". A Comissão Internacional dos Juristas divulgou comunicação formal em setembro afirmando que "a independência judicial e a independência do processo eleitoral estão efetivamente sitiadas no Brasil devido aos ataques do Presidente". Ataques velados e não tão velados continuaram a ser feitos pelo presidente à Suprema Corte, a seus ministros e à Justiça Eleitoral (notadamente por decisões em legítima defesa da democracia) e à imprensa em geral.

Esse ambiente de polarização agravou-se pelo excesso de armas em circulação provocado pela avalanche de decretos emanados do governo federal e que causou aumento de 473% no número de registros de colecionador, atirador e caçador (CAC), segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, apenas em 2021.

As manifestações de apoiadores do presidente passaram a ganhar um tom cada vez mais ideologizado e violento, algumas até de caráter nazista, e outras baseando-se em pedidos pela intervenção militar e fechamento das instituições. Elas duram até hoje (como a greve dos caminhoneiros, o fechamento das estradas e os acampamentos às portas dos quartéis).

Já os direitos econômicos, sociais e culturais foram continuamente desrespeitados, não só pela corrupção amplamente divulgada em alguns ministérios, mas também pelo desprezo com que o governo Bolsonaro tratou os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Estudo divulgado pela Câmara Federal aponta que o Brasil não apresentou progresso satisfatório em nenhuma das 169 metas dos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030, estabelecida pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 2015. Das 169 metas, 54,4% estão em retrocesso, 16% estagnadas, 12,4% ameaçadas e 7,7% mostram progresso insuficiente (Fonte: Agência Câmara de Notícias). O número da fome assusta igualmente. Segundo o Relatório Luz, "o ano de 2020 se encerrou com mais de metade da população do País (113 milhões de pessoas) em situação de insegurança alimentar, sem saber se teriam o que comer no dia seguinte. 19 milhões de pessoas passaram fome.". Essa situação se manteve.

Todo esse quadro de violações cometidas pelo governo Bolsonaro ou com base na ausência de políticas públicas bem como a reação da sociedade civil organizada será agora objeto de exame pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, no mecanismo chamado Revisão Periódica Universal (RPU), aguardando-se as recomendações que serão feitas e deverão ser implementadas pelo Brasil para se reajustar a patamares satisfatórios de cumprimento de direitos humanos.

Do novo governo em vias de assumir o poder, legitimado por expressiva votação, em eleições limpas e transparentes, aguarda-se que reveja os retrocessos aplicados aos direitos da cidadania, implemente políticas públicas que atendam aos mais necessitados, cumpra seus compromissos internacionais e trabalhe para reforçar a cultura de paz e de respeito aos direitos humanos. É disso que tanto precisamos.

*Belisário dos Santos Jr., sócio de Rubens Naves Santos Jr - Advogados, membro da Comissão Internacional de Juristas, e da Comissão Arns e Presidente da CDH do IASP

Belisário dos Santos Jr. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

"Apesar de avanços significativos, persiste a noção arraigada de que, para o brasileiro comum, não há direitos: há posições sociais que asseguram maiores ou menores chances de se obter a satisfação daquilo que a Constituição e as leis definem como direitos!"

Esse texto da socióloga Maria Victória de Mesquita Benevides é de 2009 ("Fé na Luta") e reconhecia que grande parte dos direitos - notadamente os econômicos, sociais e culturais - dependia da vontade política dos governantes e da pressão popular da sociedade civil organizada.

Saltamos para 2022 e, horrorizados, constatamos que, em muitas partes do Brasil, a luta principal é pela vida, pela sobrevivência, para não se morrer de fome, de violência policial ou de crime de ódio. Em maio de 2022, Genivaldo de Jesus Santos foi fechado no porta-malas de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal, onde agentes soltaram jatos de gás até ele morrer por asfixia, agonia que foi filmada para todo Brasil.

Ainda que o número de mortes em decorrência de ação policial tenha caído em 2021, essa redução ocorreu apenas em 16 estados da Federação. Mas elevadas taxas de mortalidade permanecem no restante do Brasil, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública para 2022, sendo que no estado do Amapá a polícia mata quase seis vezes a média nacional. O estado de Sergipe, onde morreu Genivaldo, é o segundo estado de maior letalidade no Brasil. Com base nos números da letalidade policial de 2020, 78,9% eram de pessoas negras. Assim, ninguém se espante que no sistema penitenciário, dois em cada três presos sejam negros. Isto para não falar das abordagens policiais, ou da noção de "suspeito", em relação a pessoas negras. Há uma opção preferencial do sistema de segurança pública pela população negra. Aqui já se esboça um quadro terrível do nosso racismo estrutural.

Em junho de 2022, na região amazônica do Vale do Javari, foram mortos o indigenista Bruno Pereira, servidor licenciado da Funai e o jornalista Don Philips, por disparos de arma de caça, sendo seus corpos escondidos por vários dias. A falta de demarcação de reservas indígenas, o esvaziamento da Funai, as constantes invasões das terras demarcadas, o garimpo, a pesca e a caça ilegais, o desmonte da política ambiental e dos órgãos de controle e combate a esses crimes pelo governo Bolsonaro têm parcela significativa da responsabilidade por esse fato e outros semelhantes.

Outro dado recente (out/22) dá conta da polarização crescente, estabelecida no seio da sociedade brasileira. A ONG Safernet, que recebe denúncias de crimes contra os direitos humanos praticados com uso da internet, mostra aumento de 67,5 % nos casos de racismo, intolerância religiosa e LGBTQIA+Fobia em relação ao ano anterior de 2021. Esse dado está seguramente vinculado ao calendário eleitoral. Ao lado dos crimes virtuais verificaram-se vários crimes de origem em diferenças ideológicas, no mundo real, de que é exemplo o homicídio de Marcelo de Arruda em Foz de Iguaçu, entre outros.

Relembre-se que, em julho, o presidente Jair Bolsonaro havia reunido embaixadores de diversos países para colocar em dúvida o sistema eleitoral brasileiro e as urnas eletrônicas, como havia feito outras vezes, sem qualquer prova de irregularidades, assunto que rendeu manchetes no Brasil e em jornais estrangeiros, provocando grande escândalo na comunidade internacional. O não reconhecimento do resultado das urnas, se desfavorável, era outra constante do discurso bolsonarista. Esta conduta provocou reações de todo o universo dos direitos humanos. A Comissão Arns emitiu nota pública afirmando que diante do "anúncio do golpe ao mundo, era hora de reagir". A sociedade civil se reuniu no Largo São Francisco, divulgando a "Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito". A Comissão Internacional dos Juristas divulgou comunicação formal em setembro afirmando que "a independência judicial e a independência do processo eleitoral estão efetivamente sitiadas no Brasil devido aos ataques do Presidente". Ataques velados e não tão velados continuaram a ser feitos pelo presidente à Suprema Corte, a seus ministros e à Justiça Eleitoral (notadamente por decisões em legítima defesa da democracia) e à imprensa em geral.

Esse ambiente de polarização agravou-se pelo excesso de armas em circulação provocado pela avalanche de decretos emanados do governo federal e que causou aumento de 473% no número de registros de colecionador, atirador e caçador (CAC), segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, apenas em 2021.

As manifestações de apoiadores do presidente passaram a ganhar um tom cada vez mais ideologizado e violento, algumas até de caráter nazista, e outras baseando-se em pedidos pela intervenção militar e fechamento das instituições. Elas duram até hoje (como a greve dos caminhoneiros, o fechamento das estradas e os acampamentos às portas dos quartéis).

Já os direitos econômicos, sociais e culturais foram continuamente desrespeitados, não só pela corrupção amplamente divulgada em alguns ministérios, mas também pelo desprezo com que o governo Bolsonaro tratou os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Estudo divulgado pela Câmara Federal aponta que o Brasil não apresentou progresso satisfatório em nenhuma das 169 metas dos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030, estabelecida pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 2015. Das 169 metas, 54,4% estão em retrocesso, 16% estagnadas, 12,4% ameaçadas e 7,7% mostram progresso insuficiente (Fonte: Agência Câmara de Notícias). O número da fome assusta igualmente. Segundo o Relatório Luz, "o ano de 2020 se encerrou com mais de metade da população do País (113 milhões de pessoas) em situação de insegurança alimentar, sem saber se teriam o que comer no dia seguinte. 19 milhões de pessoas passaram fome.". Essa situação se manteve.

Todo esse quadro de violações cometidas pelo governo Bolsonaro ou com base na ausência de políticas públicas bem como a reação da sociedade civil organizada será agora objeto de exame pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, no mecanismo chamado Revisão Periódica Universal (RPU), aguardando-se as recomendações que serão feitas e deverão ser implementadas pelo Brasil para se reajustar a patamares satisfatórios de cumprimento de direitos humanos.

Do novo governo em vias de assumir o poder, legitimado por expressiva votação, em eleições limpas e transparentes, aguarda-se que reveja os retrocessos aplicados aos direitos da cidadania, implemente políticas públicas que atendam aos mais necessitados, cumpra seus compromissos internacionais e trabalhe para reforçar a cultura de paz e de respeito aos direitos humanos. É disso que tanto precisamos.

*Belisário dos Santos Jr., sócio de Rubens Naves Santos Jr - Advogados, membro da Comissão Internacional de Juristas, e da Comissão Arns e Presidente da CDH do IASP

Belisário dos Santos Jr. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

"Apesar de avanços significativos, persiste a noção arraigada de que, para o brasileiro comum, não há direitos: há posições sociais que asseguram maiores ou menores chances de se obter a satisfação daquilo que a Constituição e as leis definem como direitos!"

Esse texto da socióloga Maria Victória de Mesquita Benevides é de 2009 ("Fé na Luta") e reconhecia que grande parte dos direitos - notadamente os econômicos, sociais e culturais - dependia da vontade política dos governantes e da pressão popular da sociedade civil organizada.

Saltamos para 2022 e, horrorizados, constatamos que, em muitas partes do Brasil, a luta principal é pela vida, pela sobrevivência, para não se morrer de fome, de violência policial ou de crime de ódio. Em maio de 2022, Genivaldo de Jesus Santos foi fechado no porta-malas de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal, onde agentes soltaram jatos de gás até ele morrer por asfixia, agonia que foi filmada para todo Brasil.

Ainda que o número de mortes em decorrência de ação policial tenha caído em 2021, essa redução ocorreu apenas em 16 estados da Federação. Mas elevadas taxas de mortalidade permanecem no restante do Brasil, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública para 2022, sendo que no estado do Amapá a polícia mata quase seis vezes a média nacional. O estado de Sergipe, onde morreu Genivaldo, é o segundo estado de maior letalidade no Brasil. Com base nos números da letalidade policial de 2020, 78,9% eram de pessoas negras. Assim, ninguém se espante que no sistema penitenciário, dois em cada três presos sejam negros. Isto para não falar das abordagens policiais, ou da noção de "suspeito", em relação a pessoas negras. Há uma opção preferencial do sistema de segurança pública pela população negra. Aqui já se esboça um quadro terrível do nosso racismo estrutural.

Em junho de 2022, na região amazônica do Vale do Javari, foram mortos o indigenista Bruno Pereira, servidor licenciado da Funai e o jornalista Don Philips, por disparos de arma de caça, sendo seus corpos escondidos por vários dias. A falta de demarcação de reservas indígenas, o esvaziamento da Funai, as constantes invasões das terras demarcadas, o garimpo, a pesca e a caça ilegais, o desmonte da política ambiental e dos órgãos de controle e combate a esses crimes pelo governo Bolsonaro têm parcela significativa da responsabilidade por esse fato e outros semelhantes.

Outro dado recente (out/22) dá conta da polarização crescente, estabelecida no seio da sociedade brasileira. A ONG Safernet, que recebe denúncias de crimes contra os direitos humanos praticados com uso da internet, mostra aumento de 67,5 % nos casos de racismo, intolerância religiosa e LGBTQIA+Fobia em relação ao ano anterior de 2021. Esse dado está seguramente vinculado ao calendário eleitoral. Ao lado dos crimes virtuais verificaram-se vários crimes de origem em diferenças ideológicas, no mundo real, de que é exemplo o homicídio de Marcelo de Arruda em Foz de Iguaçu, entre outros.

Relembre-se que, em julho, o presidente Jair Bolsonaro havia reunido embaixadores de diversos países para colocar em dúvida o sistema eleitoral brasileiro e as urnas eletrônicas, como havia feito outras vezes, sem qualquer prova de irregularidades, assunto que rendeu manchetes no Brasil e em jornais estrangeiros, provocando grande escândalo na comunidade internacional. O não reconhecimento do resultado das urnas, se desfavorável, era outra constante do discurso bolsonarista. Esta conduta provocou reações de todo o universo dos direitos humanos. A Comissão Arns emitiu nota pública afirmando que diante do "anúncio do golpe ao mundo, era hora de reagir". A sociedade civil se reuniu no Largo São Francisco, divulgando a "Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito". A Comissão Internacional dos Juristas divulgou comunicação formal em setembro afirmando que "a independência judicial e a independência do processo eleitoral estão efetivamente sitiadas no Brasil devido aos ataques do Presidente". Ataques velados e não tão velados continuaram a ser feitos pelo presidente à Suprema Corte, a seus ministros e à Justiça Eleitoral (notadamente por decisões em legítima defesa da democracia) e à imprensa em geral.

Esse ambiente de polarização agravou-se pelo excesso de armas em circulação provocado pela avalanche de decretos emanados do governo federal e que causou aumento de 473% no número de registros de colecionador, atirador e caçador (CAC), segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, apenas em 2021.

As manifestações de apoiadores do presidente passaram a ganhar um tom cada vez mais ideologizado e violento, algumas até de caráter nazista, e outras baseando-se em pedidos pela intervenção militar e fechamento das instituições. Elas duram até hoje (como a greve dos caminhoneiros, o fechamento das estradas e os acampamentos às portas dos quartéis).

Já os direitos econômicos, sociais e culturais foram continuamente desrespeitados, não só pela corrupção amplamente divulgada em alguns ministérios, mas também pelo desprezo com que o governo Bolsonaro tratou os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Estudo divulgado pela Câmara Federal aponta que o Brasil não apresentou progresso satisfatório em nenhuma das 169 metas dos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030, estabelecida pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 2015. Das 169 metas, 54,4% estão em retrocesso, 16% estagnadas, 12,4% ameaçadas e 7,7% mostram progresso insuficiente (Fonte: Agência Câmara de Notícias). O número da fome assusta igualmente. Segundo o Relatório Luz, "o ano de 2020 se encerrou com mais de metade da população do País (113 milhões de pessoas) em situação de insegurança alimentar, sem saber se teriam o que comer no dia seguinte. 19 milhões de pessoas passaram fome.". Essa situação se manteve.

Todo esse quadro de violações cometidas pelo governo Bolsonaro ou com base na ausência de políticas públicas bem como a reação da sociedade civil organizada será agora objeto de exame pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, no mecanismo chamado Revisão Periódica Universal (RPU), aguardando-se as recomendações que serão feitas e deverão ser implementadas pelo Brasil para se reajustar a patamares satisfatórios de cumprimento de direitos humanos.

Do novo governo em vias de assumir o poder, legitimado por expressiva votação, em eleições limpas e transparentes, aguarda-se que reveja os retrocessos aplicados aos direitos da cidadania, implemente políticas públicas que atendam aos mais necessitados, cumpra seus compromissos internacionais e trabalhe para reforçar a cultura de paz e de respeito aos direitos humanos. É disso que tanto precisamos.

*Belisário dos Santos Jr., sócio de Rubens Naves Santos Jr - Advogados, membro da Comissão Internacional de Juristas, e da Comissão Arns e Presidente da CDH do IASP

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