Todos nós pensamos que a saúde é um dos mais preciosos bens da vida. Viver sem saúde não vale a pena, diriam praticamente todos. Não é o que pensa o filósofo André Comte-Sponville. Ele é autor bestseller, de livros como "O pequeno tratado das grandes virtudes" e "O espírito do ateísmo".
Sustenta que a preocupação com saúde é uma nova espécie de tirania. Ela faz com que sejam sacrificadas as vidas das gerações mais jovens, em prol da saúde de seus pais e avós.
Para ele, a saúde não é o valor supremo. Ocupa uma posição inferior a valores como amor, justiça e liberdade. Argumenta com o clássico lema da República francesa: "Não é saúde, igualdade e fraternidade". Todos conhecem a inspiração da Revolução ocorrida em França em 1789: 'Liberté, egalité et fraternité".
Ponderáveis as justificativas do filósofo de 69 anos, que não é propriamente um jovem. Entende valer mais uma pessoa doente e plena de amor, do que um desprezível ser, repleto de ódio e saúde.
Durante entrevista concedida a uma rádio francesa, chegou a afirmar que preferia ser contaminado pela Covid19 em uma democracia, do que não ser contaminado em uma ditadura. Mas esclareceu que dissera "ser contaminado" e não "morrer de Covid-19". Quando está em jogo a própria existência, tem-se de preferir viver sob o autoritarismo do que morrer numa democracia.
Sua crítica parte da observação de que na França a saúde dos mais velhos é uma prioridade absoluta, em detrimento do interesse dos mais jovens. Acredita que isso é um erro de perspectiva. O maior dos riscos é morrer jovem. Daí a costumeira frase dita para consolar os idosos: só não fica velho quem morre moço. É ruim a alternativa a ficar velho.
Riscos maiores, e até mais graves, são o desemprego, a exclusão, a violência, a falta de saneamento básico e - o mais perigoso de todos - o aquecimento global. Estes deveriam ser o foco dos governos e não a ânsia de priorizar a saúde dos mais velhos. Anormal o comportamento dos Estados, a comprometer a existência dos mais jovens, sua educação de qualidade, seus estudos por toda a vida, suas carreiras profissionais, sua cultura, seu lazer, seus amores e sua liberdade, para proteger a saúde de seus pais e seus avós.
Nesse ponto, Comte-Sponville é radical: "A saúde é menos um valor do que um bem, desejável é claro, mas que não pode passar por valor moral ou político. Não é a medicina que confere sentido à existência humana. O ser racional precisa se conscientizar de que a vida é um processo provisório, situado entre dois termos incontornáveis. Assim que se nasce, tem início a rota rumo ao fim. A finitude é o destino natural de todo ser vivo.
Não se deve temer a morte. Eram os epicuristas que diziam que a morte não existe enquanto se está vivo. Quando ela surge, não existe mais vida. Por esse motivo, a vida nunca se encontrará com a morte. Explicação inteligente, mas que não serviu para afastar o costumeiro pavor dos viventes, em relação a ceifadeira das almas.
Filosofar, já se asseverou, é aprender a morrer. Preparar-se para o inevitável. Algo que está muito presente na consciência dos brasileiros, que perderam quase 600 mil vidas humanas durante a pandemia que ainda está longe de desaparecer do horizonte desta nação.
Sponville aduz que a filosofia tem por objeto o todo, por instrumento a razão e por objetivo a sabedoria. Ela é que permite ao homem, nesta era das comunicações inflacionadas pela digitalização, filtrar o excesso de informações para delas extrair conhecimento. Converter o conhecimento em sabedoria é tarefa de cada um, auxiliado por esse herói chamado professor.
Na entrevista que o filósofo concedeu à jornalista Úrsula Passos, ele reafirma que a sabedoria consiste no máximo possível de felicidade, com o máximo de lucidez e que esses máximos variam em função dos indivíduos e das situações.
Embora reconheça que o liberalismo econômico oferece a melhor opção, pois é preferível ser pobre numa sociedade rica do que ser pobre numa sociedade pobre, não é possível concordar com a tese por ele defendida, em relação à saúde dos idosos. A sabedoria popular tem um dito jocoso, mas cruel, que é "prefiro ser rico com saúde, do que pobre e doente". Indício do que se passa na mentalidade da maioria.
Numa sociedade egoísta e consumista, que enaltece a juventude e menospreza a velhice, não é necessário acrescentar justificativas para concluir que os idosos constituem um peso excessivo para a sociedade produtiva. Aliás, aquilo que foi bem explicitado pela servidora Solange, quando, no início da pandemia, observou que a morte dos velhos daria um saudável alívio às contas da previdência social.
*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras - 2021-2022