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Opinião|Sentença do poliamor e a ordem jurídica


Por Regina Beatriz Tavares da Silva* e Emily Costa Diniz*

Recentemente repercutiu na mídia sentença que atribuiu a uma relação de três pessoas a natureza de união estável. O “trisal’ surgiu da agregação de uma mulher de 32 anos ao casal formado por um homem de 45 anos e uma mulher de 51 anos. Foi também pleiteado por eles a concessão de licença/salário maternidade para a “mãe não-gestante”.

Regina Beatriz Tavares da Silva e de Emily Costa Diniz Foto: Divulgação

A sentença, proferida na 2ª Vara de Família e Sucessões da Comarca de Novo Hamburgo do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, cita a canção “Tempos modernos”, de Lulu Santos, o que denota o “romantismo” do pronunciamento judicial (Processo nº 5015552-95.2023.8.21.0019).

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Mas, sentimentalismo não suplanta a ordem jurídica, sob pena de implementar-se uma babel na sociedade, em que o subjetivismo imperaria em decisões judiciais. Um magistrado não pode decidir de acordo com seu ponto de vista meramente pessoal, está subordinado ao sistema jurídico.

A sentença viola a Constituição Federal (CF), as Teses de Repercussão Geral do Supremo Tribunal Federal (STF) e a decisão colegiada do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Não é toda relação afetiva que é abrigada pelo Direito de Família (MORAU, 2023). Até porque, se assim fosse, até mesmo um namoro traria consigo o fardo de uma obrigação jurídica (CORREIA, 2018).

Todos têm o direito de viver e relacionar-se da forma como desejarem, mas daí não decorre um automático dever do Estado de tutelar a relação como entidade familiar. Na Constituição Federal (art. 226, § 3º) a união estável, como entidade familiar, é formada somente por duas pessoas e não três, quatro ou cinco.

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Em 2020 e 2021, o STF reconheceu a monogamia como princípio constitucional basilar da união estável por meio de duas Teses de Repercussão Geral nos Temas 526 (RE 883168) e 529 (RE 1045273), com efeito vinculante, ou seja, de observância obrigatória nas decisões judiciais. Em ambos os processos a ADFAS atuou como amicus curiae e se debatia a prevalência da monogamia ou a abertura à poligamia no Brasil. Venceu a monogamia, por vários e robustos fundamentos, como sintetiza a Tese firmada no Tema 529: A PREEXISTÊNCIA DE CASAMENTO OU DE UNIÃO ESTÁVEL IMPEDE O RECONHECIMENTO DE NOVO VÍNCULO REFERENTE AO MESMO PERÍODO, INCLUSIVE PARA FINS PREVIDENCIÁRIOS, EM VIRTUDE DA CONSAGRAÇÃO DO DEVER DE FIDELIDADE E DA MONOGAMIA PELO ORDENAMENTO JURÍDICO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO.

A despeito da alegada despatrimonialização do Direito de Família por meio do afeto, sabe-se que tanto nas “relações paralelas” como nos trisais existem interesses econômicos e financeiros, inclusive perante terceiros. Quanto aos trisais, além de licenças maternidade perante o empregador, com impactos no INSS, outros, como planos de saúde, clubes desportivos ou outras associações, seriam atingidos, já que um pagaria e muitos poderiam se beneficiar.

Portanto, não se trata somente de questão afetiva, mas, sim, de relação com inúmeras consequências materiais, conforme ressaltado pelo STF, gerando insegurança jurídica inclusive para os diretamente envolvidos. Como realizar a partilha de bens se um dos membros do trisal se separa dos demais partícipes? Divisão tripartite? Seria justa esta forma de partilha? E os direitos sucessórios, como seriam atribuídos? Poderiam ser agregadas mais pessoas na relação, já que impera a poligamia? Inúmeras outras indagações ficariam sem resposta.

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Aliás, há quem diga que o poliamor do trisal não seria poligamia, o que é de pasmar. Vamos às definições de poligamia: “união conjugal com mais de um parceiro” (Cambridge Dictionary); na poliginia um homem com mais de uma mulher e na rara poliandria uma mulher com mais do que um homem.

Seja “consentida” pelos partícipes (poliamor dos trisais), seja “não consentida” por algum deles (adultério), tudo é poligamia. Nos trisais, todos os participantes têm ciência e concordam com a multiplicidade de parceiros, no adultério não há concordância do consorte traído, mas todas essas relações ferem o princípio constitucional da monogamia e não são consideradas como entidades familiares no ordenamento jurídico. Portanto, não procede a distinção que foi realizada na sentença em tela, como se fosse vedado em nosso ordenamento tão somente o concubinato. Poliamor é poligamia.

Há até mesmo equivocada menção na sentença à Tese firmada pelo STF no Tema 529, como se a vedação recaísse apenas na concomitância do casamento com a união estável. Basta fazer sua leitura para concluir que a decisão erga omnes do STF firma a monogamia como princípio também da união estável, assim como o faz a Tese firmada no Tema 526. Nem poderia ser de modo diferente em razão da equiparação de efeitos entre união estável e casamento (STF, RE 646.721 e 878.694).

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A sentença cita o julgamento da ADPF 132 e da ADI 4277, de 2011, para procurar embasar o poliamor como união estável. Todavia, ignora que todos os votos no referido julgamento enfatizaram que o reconhecimento jurídico de relações entre pessoas do mesmo gênero ou sexo depende dos mesmos requisitos para a caracterização da união estável heterossexual, entre eles, a monogamia.

Não bastasse, a sentença em tela deliberadamente desrespeita a deliberação do CNJ no Pedido de Providências nº 00459-08.26.2.00.0000, que, em 2018, julgou procedente o pleito da ADFAS na vedação à lavratura de escrituras de poliamor como uniões estáveis: PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS. UNIÃO ESTÁVEL POLIAFETIVA. ENTIDADE FAMILIAR. RECONHECIMENTO. IMPOSSIBILIDADE. FAMÍLIA. CATEGORIA SOCIOCULTURAL. IMATURIDADE SOCIAL DA UNIÃO POLIAFETIVA COMO FAMÍLIA. DECLARAÇÃO DE VONTADE. INAPTIDÃO PARA CRIAR ENTE SOCIAL. MONOGAMIA. ELEMENTO ESTRUTURAL DA SOCIEDADE.

Com relação à multiparentalidade, a sentença concedeu ao trisal a possiblidade de registro futuro da criança gerada por uma das mulheres em nome dos três. Aí uma vez mais a violação ao normatizado pelo CNJ, já que, pelo Provimento 83/2019 (atualmente integrado no Provimento 149/2023), a possibilidade de registro de duas mães se dá com provas da existência de relação social – reconhecimento da sociedade da qualidade de mães – além da relação afetiva, norma que é destinada somente para menores com mais de 12 anos.

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E sobre as decisões judiciais encontradas a respeito da autorização de registro de duas mães na certidão de nascimento de uma criança, ou seja, de menor com menos de 12 anos, vê-se que é preciso também provar a socioafetividade, o que, obviamente, não se pode antever antes do nascimento de uma criança, como ocorreu na sentença em análise (TJSP, AC 1001350-16.2022.8.26.0008, AC 1055550-93.2019.8.26.0002, AC 1000460-41.2020.8.26.0269; TJMG, AC 1.0000.21.1059365/001).

Efetivamente não é o amor que o Direito protege: “O “amor” não pode ser o novo “deus” laico” (RODRIGUES JUNIOR, 2018). O afeto impacta o direito somente em relações em que exista o status de família, o que não é o caso das relações poligâmicas.

Portanto, qualquer sentença que se profira ou escritura pública que se lavre reconhecendo o poliamor como entidade familiar já nasce eivada de nulidade, por violação à Constituição Federal, às Teses vinculantes do STF e à decisão colegiada do CNJ.

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*Regina Beatriz Tavares da Silva, pós-Doutora em Direito da Bioética pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutora e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Fundadora e presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Advogada, fundadora e sócia de Regina Beatriz Tavares da Silva Sociedade de Advogados (RBTSSA)

*Emily Costa Diniz, graduanda em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e Associada da ADFAS

Recentemente repercutiu na mídia sentença que atribuiu a uma relação de três pessoas a natureza de união estável. O “trisal’ surgiu da agregação de uma mulher de 32 anos ao casal formado por um homem de 45 anos e uma mulher de 51 anos. Foi também pleiteado por eles a concessão de licença/salário maternidade para a “mãe não-gestante”.

Regina Beatriz Tavares da Silva e de Emily Costa Diniz Foto: Divulgação

A sentença, proferida na 2ª Vara de Família e Sucessões da Comarca de Novo Hamburgo do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, cita a canção “Tempos modernos”, de Lulu Santos, o que denota o “romantismo” do pronunciamento judicial (Processo nº 5015552-95.2023.8.21.0019).

Mas, sentimentalismo não suplanta a ordem jurídica, sob pena de implementar-se uma babel na sociedade, em que o subjetivismo imperaria em decisões judiciais. Um magistrado não pode decidir de acordo com seu ponto de vista meramente pessoal, está subordinado ao sistema jurídico.

A sentença viola a Constituição Federal (CF), as Teses de Repercussão Geral do Supremo Tribunal Federal (STF) e a decisão colegiada do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Não é toda relação afetiva que é abrigada pelo Direito de Família (MORAU, 2023). Até porque, se assim fosse, até mesmo um namoro traria consigo o fardo de uma obrigação jurídica (CORREIA, 2018).

Todos têm o direito de viver e relacionar-se da forma como desejarem, mas daí não decorre um automático dever do Estado de tutelar a relação como entidade familiar. Na Constituição Federal (art. 226, § 3º) a união estável, como entidade familiar, é formada somente por duas pessoas e não três, quatro ou cinco.

Em 2020 e 2021, o STF reconheceu a monogamia como princípio constitucional basilar da união estável por meio de duas Teses de Repercussão Geral nos Temas 526 (RE 883168) e 529 (RE 1045273), com efeito vinculante, ou seja, de observância obrigatória nas decisões judiciais. Em ambos os processos a ADFAS atuou como amicus curiae e se debatia a prevalência da monogamia ou a abertura à poligamia no Brasil. Venceu a monogamia, por vários e robustos fundamentos, como sintetiza a Tese firmada no Tema 529: A PREEXISTÊNCIA DE CASAMENTO OU DE UNIÃO ESTÁVEL IMPEDE O RECONHECIMENTO DE NOVO VÍNCULO REFERENTE AO MESMO PERÍODO, INCLUSIVE PARA FINS PREVIDENCIÁRIOS, EM VIRTUDE DA CONSAGRAÇÃO DO DEVER DE FIDELIDADE E DA MONOGAMIA PELO ORDENAMENTO JURÍDICO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO.

A despeito da alegada despatrimonialização do Direito de Família por meio do afeto, sabe-se que tanto nas “relações paralelas” como nos trisais existem interesses econômicos e financeiros, inclusive perante terceiros. Quanto aos trisais, além de licenças maternidade perante o empregador, com impactos no INSS, outros, como planos de saúde, clubes desportivos ou outras associações, seriam atingidos, já que um pagaria e muitos poderiam se beneficiar.

Portanto, não se trata somente de questão afetiva, mas, sim, de relação com inúmeras consequências materiais, conforme ressaltado pelo STF, gerando insegurança jurídica inclusive para os diretamente envolvidos. Como realizar a partilha de bens se um dos membros do trisal se separa dos demais partícipes? Divisão tripartite? Seria justa esta forma de partilha? E os direitos sucessórios, como seriam atribuídos? Poderiam ser agregadas mais pessoas na relação, já que impera a poligamia? Inúmeras outras indagações ficariam sem resposta.

Aliás, há quem diga que o poliamor do trisal não seria poligamia, o que é de pasmar. Vamos às definições de poligamia: “união conjugal com mais de um parceiro” (Cambridge Dictionary); na poliginia um homem com mais de uma mulher e na rara poliandria uma mulher com mais do que um homem.

Seja “consentida” pelos partícipes (poliamor dos trisais), seja “não consentida” por algum deles (adultério), tudo é poligamia. Nos trisais, todos os participantes têm ciência e concordam com a multiplicidade de parceiros, no adultério não há concordância do consorte traído, mas todas essas relações ferem o princípio constitucional da monogamia e não são consideradas como entidades familiares no ordenamento jurídico. Portanto, não procede a distinção que foi realizada na sentença em tela, como se fosse vedado em nosso ordenamento tão somente o concubinato. Poliamor é poligamia.

Há até mesmo equivocada menção na sentença à Tese firmada pelo STF no Tema 529, como se a vedação recaísse apenas na concomitância do casamento com a união estável. Basta fazer sua leitura para concluir que a decisão erga omnes do STF firma a monogamia como princípio também da união estável, assim como o faz a Tese firmada no Tema 526. Nem poderia ser de modo diferente em razão da equiparação de efeitos entre união estável e casamento (STF, RE 646.721 e 878.694).

A sentença cita o julgamento da ADPF 132 e da ADI 4277, de 2011, para procurar embasar o poliamor como união estável. Todavia, ignora que todos os votos no referido julgamento enfatizaram que o reconhecimento jurídico de relações entre pessoas do mesmo gênero ou sexo depende dos mesmos requisitos para a caracterização da união estável heterossexual, entre eles, a monogamia.

Não bastasse, a sentença em tela deliberadamente desrespeita a deliberação do CNJ no Pedido de Providências nº 00459-08.26.2.00.0000, que, em 2018, julgou procedente o pleito da ADFAS na vedação à lavratura de escrituras de poliamor como uniões estáveis: PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS. UNIÃO ESTÁVEL POLIAFETIVA. ENTIDADE FAMILIAR. RECONHECIMENTO. IMPOSSIBILIDADE. FAMÍLIA. CATEGORIA SOCIOCULTURAL. IMATURIDADE SOCIAL DA UNIÃO POLIAFETIVA COMO FAMÍLIA. DECLARAÇÃO DE VONTADE. INAPTIDÃO PARA CRIAR ENTE SOCIAL. MONOGAMIA. ELEMENTO ESTRUTURAL DA SOCIEDADE.

Com relação à multiparentalidade, a sentença concedeu ao trisal a possiblidade de registro futuro da criança gerada por uma das mulheres em nome dos três. Aí uma vez mais a violação ao normatizado pelo CNJ, já que, pelo Provimento 83/2019 (atualmente integrado no Provimento 149/2023), a possibilidade de registro de duas mães se dá com provas da existência de relação social – reconhecimento da sociedade da qualidade de mães – além da relação afetiva, norma que é destinada somente para menores com mais de 12 anos.

E sobre as decisões judiciais encontradas a respeito da autorização de registro de duas mães na certidão de nascimento de uma criança, ou seja, de menor com menos de 12 anos, vê-se que é preciso também provar a socioafetividade, o que, obviamente, não se pode antever antes do nascimento de uma criança, como ocorreu na sentença em análise (TJSP, AC 1001350-16.2022.8.26.0008, AC 1055550-93.2019.8.26.0002, AC 1000460-41.2020.8.26.0269; TJMG, AC 1.0000.21.1059365/001).

Efetivamente não é o amor que o Direito protege: “O “amor” não pode ser o novo “deus” laico” (RODRIGUES JUNIOR, 2018). O afeto impacta o direito somente em relações em que exista o status de família, o que não é o caso das relações poligâmicas.

Portanto, qualquer sentença que se profira ou escritura pública que se lavre reconhecendo o poliamor como entidade familiar já nasce eivada de nulidade, por violação à Constituição Federal, às Teses vinculantes do STF e à decisão colegiada do CNJ.

*Regina Beatriz Tavares da Silva, pós-Doutora em Direito da Bioética pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutora e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Fundadora e presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Advogada, fundadora e sócia de Regina Beatriz Tavares da Silva Sociedade de Advogados (RBTSSA)

*Emily Costa Diniz, graduanda em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e Associada da ADFAS

Recentemente repercutiu na mídia sentença que atribuiu a uma relação de três pessoas a natureza de união estável. O “trisal’ surgiu da agregação de uma mulher de 32 anos ao casal formado por um homem de 45 anos e uma mulher de 51 anos. Foi também pleiteado por eles a concessão de licença/salário maternidade para a “mãe não-gestante”.

Regina Beatriz Tavares da Silva e de Emily Costa Diniz Foto: Divulgação

A sentença, proferida na 2ª Vara de Família e Sucessões da Comarca de Novo Hamburgo do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, cita a canção “Tempos modernos”, de Lulu Santos, o que denota o “romantismo” do pronunciamento judicial (Processo nº 5015552-95.2023.8.21.0019).

Mas, sentimentalismo não suplanta a ordem jurídica, sob pena de implementar-se uma babel na sociedade, em que o subjetivismo imperaria em decisões judiciais. Um magistrado não pode decidir de acordo com seu ponto de vista meramente pessoal, está subordinado ao sistema jurídico.

A sentença viola a Constituição Federal (CF), as Teses de Repercussão Geral do Supremo Tribunal Federal (STF) e a decisão colegiada do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Não é toda relação afetiva que é abrigada pelo Direito de Família (MORAU, 2023). Até porque, se assim fosse, até mesmo um namoro traria consigo o fardo de uma obrigação jurídica (CORREIA, 2018).

Todos têm o direito de viver e relacionar-se da forma como desejarem, mas daí não decorre um automático dever do Estado de tutelar a relação como entidade familiar. Na Constituição Federal (art. 226, § 3º) a união estável, como entidade familiar, é formada somente por duas pessoas e não três, quatro ou cinco.

Em 2020 e 2021, o STF reconheceu a monogamia como princípio constitucional basilar da união estável por meio de duas Teses de Repercussão Geral nos Temas 526 (RE 883168) e 529 (RE 1045273), com efeito vinculante, ou seja, de observância obrigatória nas decisões judiciais. Em ambos os processos a ADFAS atuou como amicus curiae e se debatia a prevalência da monogamia ou a abertura à poligamia no Brasil. Venceu a monogamia, por vários e robustos fundamentos, como sintetiza a Tese firmada no Tema 529: A PREEXISTÊNCIA DE CASAMENTO OU DE UNIÃO ESTÁVEL IMPEDE O RECONHECIMENTO DE NOVO VÍNCULO REFERENTE AO MESMO PERÍODO, INCLUSIVE PARA FINS PREVIDENCIÁRIOS, EM VIRTUDE DA CONSAGRAÇÃO DO DEVER DE FIDELIDADE E DA MONOGAMIA PELO ORDENAMENTO JURÍDICO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO.

A despeito da alegada despatrimonialização do Direito de Família por meio do afeto, sabe-se que tanto nas “relações paralelas” como nos trisais existem interesses econômicos e financeiros, inclusive perante terceiros. Quanto aos trisais, além de licenças maternidade perante o empregador, com impactos no INSS, outros, como planos de saúde, clubes desportivos ou outras associações, seriam atingidos, já que um pagaria e muitos poderiam se beneficiar.

Portanto, não se trata somente de questão afetiva, mas, sim, de relação com inúmeras consequências materiais, conforme ressaltado pelo STF, gerando insegurança jurídica inclusive para os diretamente envolvidos. Como realizar a partilha de bens se um dos membros do trisal se separa dos demais partícipes? Divisão tripartite? Seria justa esta forma de partilha? E os direitos sucessórios, como seriam atribuídos? Poderiam ser agregadas mais pessoas na relação, já que impera a poligamia? Inúmeras outras indagações ficariam sem resposta.

Aliás, há quem diga que o poliamor do trisal não seria poligamia, o que é de pasmar. Vamos às definições de poligamia: “união conjugal com mais de um parceiro” (Cambridge Dictionary); na poliginia um homem com mais de uma mulher e na rara poliandria uma mulher com mais do que um homem.

Seja “consentida” pelos partícipes (poliamor dos trisais), seja “não consentida” por algum deles (adultério), tudo é poligamia. Nos trisais, todos os participantes têm ciência e concordam com a multiplicidade de parceiros, no adultério não há concordância do consorte traído, mas todas essas relações ferem o princípio constitucional da monogamia e não são consideradas como entidades familiares no ordenamento jurídico. Portanto, não procede a distinção que foi realizada na sentença em tela, como se fosse vedado em nosso ordenamento tão somente o concubinato. Poliamor é poligamia.

Há até mesmo equivocada menção na sentença à Tese firmada pelo STF no Tema 529, como se a vedação recaísse apenas na concomitância do casamento com a união estável. Basta fazer sua leitura para concluir que a decisão erga omnes do STF firma a monogamia como princípio também da união estável, assim como o faz a Tese firmada no Tema 526. Nem poderia ser de modo diferente em razão da equiparação de efeitos entre união estável e casamento (STF, RE 646.721 e 878.694).

A sentença cita o julgamento da ADPF 132 e da ADI 4277, de 2011, para procurar embasar o poliamor como união estável. Todavia, ignora que todos os votos no referido julgamento enfatizaram que o reconhecimento jurídico de relações entre pessoas do mesmo gênero ou sexo depende dos mesmos requisitos para a caracterização da união estável heterossexual, entre eles, a monogamia.

Não bastasse, a sentença em tela deliberadamente desrespeita a deliberação do CNJ no Pedido de Providências nº 00459-08.26.2.00.0000, que, em 2018, julgou procedente o pleito da ADFAS na vedação à lavratura de escrituras de poliamor como uniões estáveis: PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS. UNIÃO ESTÁVEL POLIAFETIVA. ENTIDADE FAMILIAR. RECONHECIMENTO. IMPOSSIBILIDADE. FAMÍLIA. CATEGORIA SOCIOCULTURAL. IMATURIDADE SOCIAL DA UNIÃO POLIAFETIVA COMO FAMÍLIA. DECLARAÇÃO DE VONTADE. INAPTIDÃO PARA CRIAR ENTE SOCIAL. MONOGAMIA. ELEMENTO ESTRUTURAL DA SOCIEDADE.

Com relação à multiparentalidade, a sentença concedeu ao trisal a possiblidade de registro futuro da criança gerada por uma das mulheres em nome dos três. Aí uma vez mais a violação ao normatizado pelo CNJ, já que, pelo Provimento 83/2019 (atualmente integrado no Provimento 149/2023), a possibilidade de registro de duas mães se dá com provas da existência de relação social – reconhecimento da sociedade da qualidade de mães – além da relação afetiva, norma que é destinada somente para menores com mais de 12 anos.

E sobre as decisões judiciais encontradas a respeito da autorização de registro de duas mães na certidão de nascimento de uma criança, ou seja, de menor com menos de 12 anos, vê-se que é preciso também provar a socioafetividade, o que, obviamente, não se pode antever antes do nascimento de uma criança, como ocorreu na sentença em análise (TJSP, AC 1001350-16.2022.8.26.0008, AC 1055550-93.2019.8.26.0002, AC 1000460-41.2020.8.26.0269; TJMG, AC 1.0000.21.1059365/001).

Efetivamente não é o amor que o Direito protege: “O “amor” não pode ser o novo “deus” laico” (RODRIGUES JUNIOR, 2018). O afeto impacta o direito somente em relações em que exista o status de família, o que não é o caso das relações poligâmicas.

Portanto, qualquer sentença que se profira ou escritura pública que se lavre reconhecendo o poliamor como entidade familiar já nasce eivada de nulidade, por violação à Constituição Federal, às Teses vinculantes do STF e à decisão colegiada do CNJ.

*Regina Beatriz Tavares da Silva, pós-Doutora em Direito da Bioética pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutora e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Fundadora e presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Advogada, fundadora e sócia de Regina Beatriz Tavares da Silva Sociedade de Advogados (RBTSSA)

*Emily Costa Diniz, graduanda em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e Associada da ADFAS

Opinião por Regina Beatriz Tavares da Silva*
Emily Costa Diniz*

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