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Sobre a presunção de inocência e sua necessária reformulação


Por Ricardo Panizza de Andrade
Ricardo Panizza de Andrade. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Em algum momento do processo civilizatório a sociedade passou a repudiar a possibilidade da imposição de pena sem que o acusado possa se defender.

A ideia de que todos devem ser presumidos inocentes até que se comprove a culpa pelo cometimento de um delito remonta pelo menos ao período medieval. Por influência de juristas canônicos, passou-se a repudiar a ideia de que alguém pudesse ser processado sem ao menos ter conhecimento da acusação, a partir da noção de que até mesmo Adão pôde apresentar sua versão sobre o consumo da árvore envenenada ao próprio Deus onisciente.

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Foi um caminho tortuoso até a primeira consagração expressa da presunção de inocência na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que resultou da Revolução Francesa, como também foi tortuoso o percurso a partir desse marco até sua consolidação nos documentos internacionais de proteção aos Direitos Humanos e se tornar comum, em maior ou menor grau, no regime jurídico de qualquer país minimamente democrático.

A Constituição Federal de 1988 foi a primeira a trazê-la de forma expressa no Brasil, mas o fez de forma comparativamente inusual. Ao fixar como termo final para afetação do status de inocência do indivíduo o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, seguiu o modelo adotado apenas pelas constituições italiana e portuguesa, além de alguns países de língua portuguesa como Cabo Verde, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Guiné Bissau.

Diversamente, os tratados internacionais de direitos humanos e as constituições das democracias mais vistosas do planeta normalmente vinculam a percepção de inocência sobre o acusado até a adequada comprovação da sua culpa - a partir daí passa a ostentar a condição de culpado e pode pagar a sua pena.

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A opção do constituinte brasileiro não passou intata desde a sua promulgação até aqui. O texto sempre foi objeto de intenso debate doutrinário e jurisprudencial. O próprio Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido oscilante ao longo dos anos, sempre por maioria estreita, ora para admitir a execução provisória, ora para permitir o cumprimento de pena apenas após o esgotamento de todos os recursos possíveis. De 1988 para cá é possível contar três inflexões do plenário da Corte, prevalecendo, contudo, desde 2019, com efeito vinculante, que ninguém pode ser considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença condenatória.

Sem prejuízo disso, o modelo constitucional ainda tem se mostrado mesmo pouco funcional na proteção do estado de inocência dos acusados. Estão dados por canais oficiais números cada vez maiores da população carcerária, representada por cerca de 40% de presos provisórios, sem condenação formada - desses, três em cada quatro possuem apenas o ensino fundamental completo. E o uso abusivo das prisões provisórias é um problema que sucessivas alterações legislativas não deram conta de resolver.

Trata-se, portanto, de um sistema disfuncional e pernicioso que ilude com a promessa de inocência até o esgotamento de todas as vias recursais quando, na verdade, essa garantia é aplicada de forma desigual e estimula, pela falta de expectativa do cumprimento da pena, uma cultura encarceradora que atinge mais agudamente parcela da população que mais precisa de proteção. Por outro lado, para poucos promove o esgarçamento dos meios recursais com elevado custo institucional para a credibilidade da justiça.

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O papel da presunção de inocência não deve ser o de eternizar o processo, mas sim de preservar os acusados desde o seu início, quando prisões podem ser decretadas com base em elementos mais tênues do que os necessários para uma condenação. Para isso, é preciso que o processo penal tenha começo, meio e, especialmente, perspectiva de um fim.

No lugar de propiciar uma quantidade infindável de recursos, um sistema coerente deveria apenas assegurar aos condenados a oportunidade de que sua causa seja reexaminada por outros juízes, de instância superior, rematando o processo com a garantia do duplo grau de jurisdição. Assim, os achados culpados poderão efetivamente cumprir suas penas, e os inocentes, por outro lado, poderão se desvencilhar sem demora da incômoda posição de acusado.

Tramitam no Congresso Nacional iniciativas para modificar a lei processual, bem como propostas para alteração da Constituição Federal. Apostar na mera modificação do Código de Processo Penal não resolverá definitivamente a questão porque sempre haverá o risco de que seja declarada inconstitucional, face ao texto expresso da Constituição que remanescerá, neste caso, intacto. É preciso investir nas propostas de emenda constitucional. Em tramitação mais adiantada está a PEC n° 199/2019, de relatoria do Deputado Federal Alex Manente, que já teve a sua admissibilidade reconhecida pela CCJ.

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É preciso recuperar este tema, quase esquecido no debate político. O formato atual do sistema processual penal apenas parece garantir mais o indivíduo, mas entrega apenas mais desigualdade e descrédito da justiça.

*Ricardo Panizza de Andrade, advogado, mestre em Direito Processual (2020) pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - Largo São Francisco. Sócio-proprietário na Panizza de Andrade Advocacia

Ricardo Panizza de Andrade. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Em algum momento do processo civilizatório a sociedade passou a repudiar a possibilidade da imposição de pena sem que o acusado possa se defender.

A ideia de que todos devem ser presumidos inocentes até que se comprove a culpa pelo cometimento de um delito remonta pelo menos ao período medieval. Por influência de juristas canônicos, passou-se a repudiar a ideia de que alguém pudesse ser processado sem ao menos ter conhecimento da acusação, a partir da noção de que até mesmo Adão pôde apresentar sua versão sobre o consumo da árvore envenenada ao próprio Deus onisciente.

Foi um caminho tortuoso até a primeira consagração expressa da presunção de inocência na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que resultou da Revolução Francesa, como também foi tortuoso o percurso a partir desse marco até sua consolidação nos documentos internacionais de proteção aos Direitos Humanos e se tornar comum, em maior ou menor grau, no regime jurídico de qualquer país minimamente democrático.

A Constituição Federal de 1988 foi a primeira a trazê-la de forma expressa no Brasil, mas o fez de forma comparativamente inusual. Ao fixar como termo final para afetação do status de inocência do indivíduo o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, seguiu o modelo adotado apenas pelas constituições italiana e portuguesa, além de alguns países de língua portuguesa como Cabo Verde, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Guiné Bissau.

Diversamente, os tratados internacionais de direitos humanos e as constituições das democracias mais vistosas do planeta normalmente vinculam a percepção de inocência sobre o acusado até a adequada comprovação da sua culpa - a partir daí passa a ostentar a condição de culpado e pode pagar a sua pena.

A opção do constituinte brasileiro não passou intata desde a sua promulgação até aqui. O texto sempre foi objeto de intenso debate doutrinário e jurisprudencial. O próprio Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido oscilante ao longo dos anos, sempre por maioria estreita, ora para admitir a execução provisória, ora para permitir o cumprimento de pena apenas após o esgotamento de todos os recursos possíveis. De 1988 para cá é possível contar três inflexões do plenário da Corte, prevalecendo, contudo, desde 2019, com efeito vinculante, que ninguém pode ser considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença condenatória.

Sem prejuízo disso, o modelo constitucional ainda tem se mostrado mesmo pouco funcional na proteção do estado de inocência dos acusados. Estão dados por canais oficiais números cada vez maiores da população carcerária, representada por cerca de 40% de presos provisórios, sem condenação formada - desses, três em cada quatro possuem apenas o ensino fundamental completo. E o uso abusivo das prisões provisórias é um problema que sucessivas alterações legislativas não deram conta de resolver.

Trata-se, portanto, de um sistema disfuncional e pernicioso que ilude com a promessa de inocência até o esgotamento de todas as vias recursais quando, na verdade, essa garantia é aplicada de forma desigual e estimula, pela falta de expectativa do cumprimento da pena, uma cultura encarceradora que atinge mais agudamente parcela da população que mais precisa de proteção. Por outro lado, para poucos promove o esgarçamento dos meios recursais com elevado custo institucional para a credibilidade da justiça.

O papel da presunção de inocência não deve ser o de eternizar o processo, mas sim de preservar os acusados desde o seu início, quando prisões podem ser decretadas com base em elementos mais tênues do que os necessários para uma condenação. Para isso, é preciso que o processo penal tenha começo, meio e, especialmente, perspectiva de um fim.

No lugar de propiciar uma quantidade infindável de recursos, um sistema coerente deveria apenas assegurar aos condenados a oportunidade de que sua causa seja reexaminada por outros juízes, de instância superior, rematando o processo com a garantia do duplo grau de jurisdição. Assim, os achados culpados poderão efetivamente cumprir suas penas, e os inocentes, por outro lado, poderão se desvencilhar sem demora da incômoda posição de acusado.

Tramitam no Congresso Nacional iniciativas para modificar a lei processual, bem como propostas para alteração da Constituição Federal. Apostar na mera modificação do Código de Processo Penal não resolverá definitivamente a questão porque sempre haverá o risco de que seja declarada inconstitucional, face ao texto expresso da Constituição que remanescerá, neste caso, intacto. É preciso investir nas propostas de emenda constitucional. Em tramitação mais adiantada está a PEC n° 199/2019, de relatoria do Deputado Federal Alex Manente, que já teve a sua admissibilidade reconhecida pela CCJ.

É preciso recuperar este tema, quase esquecido no debate político. O formato atual do sistema processual penal apenas parece garantir mais o indivíduo, mas entrega apenas mais desigualdade e descrédito da justiça.

*Ricardo Panizza de Andrade, advogado, mestre em Direito Processual (2020) pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - Largo São Francisco. Sócio-proprietário na Panizza de Andrade Advocacia

Ricardo Panizza de Andrade. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Em algum momento do processo civilizatório a sociedade passou a repudiar a possibilidade da imposição de pena sem que o acusado possa se defender.

A ideia de que todos devem ser presumidos inocentes até que se comprove a culpa pelo cometimento de um delito remonta pelo menos ao período medieval. Por influência de juristas canônicos, passou-se a repudiar a ideia de que alguém pudesse ser processado sem ao menos ter conhecimento da acusação, a partir da noção de que até mesmo Adão pôde apresentar sua versão sobre o consumo da árvore envenenada ao próprio Deus onisciente.

Foi um caminho tortuoso até a primeira consagração expressa da presunção de inocência na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que resultou da Revolução Francesa, como também foi tortuoso o percurso a partir desse marco até sua consolidação nos documentos internacionais de proteção aos Direitos Humanos e se tornar comum, em maior ou menor grau, no regime jurídico de qualquer país minimamente democrático.

A Constituição Federal de 1988 foi a primeira a trazê-la de forma expressa no Brasil, mas o fez de forma comparativamente inusual. Ao fixar como termo final para afetação do status de inocência do indivíduo o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, seguiu o modelo adotado apenas pelas constituições italiana e portuguesa, além de alguns países de língua portuguesa como Cabo Verde, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Guiné Bissau.

Diversamente, os tratados internacionais de direitos humanos e as constituições das democracias mais vistosas do planeta normalmente vinculam a percepção de inocência sobre o acusado até a adequada comprovação da sua culpa - a partir daí passa a ostentar a condição de culpado e pode pagar a sua pena.

A opção do constituinte brasileiro não passou intata desde a sua promulgação até aqui. O texto sempre foi objeto de intenso debate doutrinário e jurisprudencial. O próprio Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido oscilante ao longo dos anos, sempre por maioria estreita, ora para admitir a execução provisória, ora para permitir o cumprimento de pena apenas após o esgotamento de todos os recursos possíveis. De 1988 para cá é possível contar três inflexões do plenário da Corte, prevalecendo, contudo, desde 2019, com efeito vinculante, que ninguém pode ser considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença condenatória.

Sem prejuízo disso, o modelo constitucional ainda tem se mostrado mesmo pouco funcional na proteção do estado de inocência dos acusados. Estão dados por canais oficiais números cada vez maiores da população carcerária, representada por cerca de 40% de presos provisórios, sem condenação formada - desses, três em cada quatro possuem apenas o ensino fundamental completo. E o uso abusivo das prisões provisórias é um problema que sucessivas alterações legislativas não deram conta de resolver.

Trata-se, portanto, de um sistema disfuncional e pernicioso que ilude com a promessa de inocência até o esgotamento de todas as vias recursais quando, na verdade, essa garantia é aplicada de forma desigual e estimula, pela falta de expectativa do cumprimento da pena, uma cultura encarceradora que atinge mais agudamente parcela da população que mais precisa de proteção. Por outro lado, para poucos promove o esgarçamento dos meios recursais com elevado custo institucional para a credibilidade da justiça.

O papel da presunção de inocência não deve ser o de eternizar o processo, mas sim de preservar os acusados desde o seu início, quando prisões podem ser decretadas com base em elementos mais tênues do que os necessários para uma condenação. Para isso, é preciso que o processo penal tenha começo, meio e, especialmente, perspectiva de um fim.

No lugar de propiciar uma quantidade infindável de recursos, um sistema coerente deveria apenas assegurar aos condenados a oportunidade de que sua causa seja reexaminada por outros juízes, de instância superior, rematando o processo com a garantia do duplo grau de jurisdição. Assim, os achados culpados poderão efetivamente cumprir suas penas, e os inocentes, por outro lado, poderão se desvencilhar sem demora da incômoda posição de acusado.

Tramitam no Congresso Nacional iniciativas para modificar a lei processual, bem como propostas para alteração da Constituição Federal. Apostar na mera modificação do Código de Processo Penal não resolverá definitivamente a questão porque sempre haverá o risco de que seja declarada inconstitucional, face ao texto expresso da Constituição que remanescerá, neste caso, intacto. É preciso investir nas propostas de emenda constitucional. Em tramitação mais adiantada está a PEC n° 199/2019, de relatoria do Deputado Federal Alex Manente, que já teve a sua admissibilidade reconhecida pela CCJ.

É preciso recuperar este tema, quase esquecido no debate político. O formato atual do sistema processual penal apenas parece garantir mais o indivíduo, mas entrega apenas mais desigualdade e descrédito da justiça.

*Ricardo Panizza de Andrade, advogado, mestre em Direito Processual (2020) pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - Largo São Francisco. Sócio-proprietário na Panizza de Andrade Advocacia

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