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 Sobre improbidades, impropriedades e imoralidades


Por Alberto Zacharias Toron, Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, Danyelle Galvão, Floriano de Azevedo Marques Neto, Gustavo Badaró, Igor Sant?Anna Tamasauskas, Ilana Martins Luz, José Luis Oliveira Lima e L
Procuradoria-Geral da República. FOTO: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO  

Dizem que a força e a fraqueza do Ministério Público decorrem da sua independência funcional. Essa garantia constitucional atua como uma blindagem contra interferências que tisnem a consciência do órgão do parquet na interpretação da lei. Contudo, essa independência traz a pulverização de centros decisórios e empece a efetivação de outro princípio constitucional: a unidade do MP.

Sobre a instituição a Carta depositou graves atribuições como a iniciativa primordial da jurisdição criminal, a proteção de bens e direitos difusos, a tutela da moralidade administrativa. Ao Procurador Geral da República, com outras poucas instituições, foi assegurada a iniciativa do controle concentrado de constitucionalidade. Bastante poder, portanto.

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Eis o paradoxo do MP, entre a independência do órgão individual e a unidade da instituição. Fragmentado e unido, o parquet se conforma como um cardume que se reúne para enfrentar o predador, mas se pulveriza para escapar à captura. O balanço deste paradoxo, entre erros e acertos, chega a ser positivo para a sociedade brasileira. Mas com um alto custo.

As Câmaras de Coordenação e Revisão, no Ministério Público Federal e nos estaduais, são mecanismos fundamentais para reduzir as externalidades do paradoxo acima.  A ideia central, com fundamento no art. 62 da Lei Complementar n. 75/93, é a troca e a oferta de informações para que as "independências" encontrem alguma unidade na atuação. Algumas excelentes soluções foram engendradas pelas orientações e notas técnicas expedidas pelas Câmaras de Coordenação, como aquelas que cuidam de estruturar um programa de leniência anticorrupção do MPF.

Outras, contudo, parecem atuar para violar a independência funcional, ao impor uma visão limitante quanto à interpretação de determinado aspecto da legislação brasileira. A ideia de orientar, por meio de enunciados e pareceres de grande envergadura, oferece aos procuradores elementos para a formação de sua convicção quanto ao exercício de suas atribuições. Não se cogita, contudo, que uma orientação venha a se transformar em algo cogente, pela conexão entre o poder de expedi-las (LC 75/93, art. 62, I, II e III), com o poder-dever de acatamento (ou não) de promoções de arquivamento. Ou, ainda, que tal atribuição orientativa possua o condão de substituir o Procurador Geral da República na tarefa de aferir a iniciativa de questionar a constitucionalidade de determinada norma, em controle concentrado.

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Parece ser o caso da orientação e respectiva nota técnica, recentemente divulgadas pela 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF - 5ª CCR, que tratam de uma pretensa irretroatividade dos efeitos benéficos da Lei n. 14.230/21, a reforma da Lei de Improbidade Administrativa.

À invocação do princípio da vedação à proteção deficiente, houve-se por orientar todo o parquet federal para pleitear a não aplicação da reformatio in melius a casos ocorridos antes de sua vigência, mesmo que não objeto de ação judicial bastante. Ou seja, tomando por base uma compreensão derivada do princípio da proporcionalidade, essa orientação sugere o não cumprimento de uma garantia fundamental (a retroatividade benéfica ao acusado). A base do raciocínio é o entendimento, contra legem, que a reforma de Lei de Improbidade desconfigurou a legislação protetiva da moralidade administrativa.

Segundo consta da orientação, a Lei 14.230/21 modificou alguns tipos da Lei de Improbidade para incluir o dolo como requisito para configuração de um ato de improbidade e, ao fazê-lo, acabou por limitar a atuação do parquet na tutela do bem jurídico ao bom governo. Como não concordo com a lei, impõe-se o seu descumprimento sob o pálio da proporcionalidade.

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Grosso modo, conforme a orientação da 5ª CCR, a proteção da moralidade no exercício de funções públicas (art. 37, §4º) obstaria a aplicação de uma garantia fundamental do cidadão, sacramentada pelo art. 5º, XL da Carta e que sequer poderia ser objeto de emenda tendente a aboli-la (CF, art. 60, §4º, IV). Ou seja, haveria um bem maior, indeterminado e abstrato, a moralidade, que justificaria derrogar premissas do devido processo legal (este também de assento constitucional). A orientação e a respectiva nota técnica intentam criar uma interpretação baseada num tipo de "razão de Estado moral" para esvaziar garantia que sequer poderia ser objeto de emenda constitucional. Criou-se um entendimento, que se quer mandatório, a partir de um encontro inusitado entre o imperativo categórico de Kant e o decisionismo de Carl Schimdt. Um feito.

Mas o problema não para na construção tortuosa da prevalência de um valor abstrato sobre um comando constitucional concreto. A orientação tropeça em entender que exigir o dolo para condenar alguém por improbidade seria um enfraquecimento na proteção ao bem jurídico moralidade pública. Estudo do Conselho Nacional de Justiça, de 2015, aponta que, sob o regime anterior à reforma, apenas 4% das ações de improbidades ajuizadas no país resultaram em reparação integral do dano causado ao erário, 6% em reparação parcial e nada menos que 90% de nenhuma reparação. O que a reforma da LIA faz é recolocar a lei para cumprir seus objetivos constitucionais: coibir o locupletamento e a depauperação do patrimônio público, condutas que pressupõem o agir consciente. A menos que os procuradores entendam que é moral punir gestor público por discordância de posição ou de escolha política. Para fortalecer a moralidade, propala-se uma conduta que afronta a moral.

Afinal, esse é o panorama das consequências jurídicas. Mas parece não ser disso que se trata. O ajuizamento de uma ação com tal natureza é antecedida e sucedida de ampla divulgação, com finalidade de carrear ao acusado todos os ônus de imagem decorrentes da acusação. Impor um controle maior no ajuizamento da ação, mediante a explicitação do dolo, parece interferir mais diretamente nesse tipo de comportamento - que não é característico de toda uma carreira, embora esteja presente na atuação de alguns profissionais.

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Ao Judiciário competirá repelir a aplicação automática de uma orientação que afronta cláusula pétrea da Constituição. Enquanto isso, espera-se que o Conselho Nacional do Ministério Público acolha representação formulada pelo Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e faça esvaziar de efeitos uma orientação francamente inconstitucional.

*Alberto Zacharias Toron, doutor em Direito Penal; Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, advogado criminalista; Danyelle Galvão, doutora em Direito Processual; Floriano de Azevedo Marques Neto, Diretor da Faculdade de Direito da USP; Gustavo Badaró, Professor titular de Direito Processual Penal da USP; Igor Sant'Anna Tamasauskas, doutor em Direito do Estado; Ilana Martins Luz, doutora em Direito Penal; José Luis Oliveira Lima, advogado criminalista; Luis Fernando Massoneto, Professor Doutor da Faculdade de Direito da USP; Pierpaolo Cruz Bottini, Professor Livre Docente da Faculdade de Direito da USP; Ricardo Penteado, advogado especializado em Direito Político e Eleitoral; Sarah Merçon-Vargas, Doutora em Direito Processual; Sebastião Botto de Barros Tojal, Professor Doutor da Faculdade de Direito da USP; e Sérgio Rabello Tamm Renault, advogado especializado em Direito Público.

Procuradoria-Geral da República. FOTO: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO  

Dizem que a força e a fraqueza do Ministério Público decorrem da sua independência funcional. Essa garantia constitucional atua como uma blindagem contra interferências que tisnem a consciência do órgão do parquet na interpretação da lei. Contudo, essa independência traz a pulverização de centros decisórios e empece a efetivação de outro princípio constitucional: a unidade do MP.

Sobre a instituição a Carta depositou graves atribuições como a iniciativa primordial da jurisdição criminal, a proteção de bens e direitos difusos, a tutela da moralidade administrativa. Ao Procurador Geral da República, com outras poucas instituições, foi assegurada a iniciativa do controle concentrado de constitucionalidade. Bastante poder, portanto.

Eis o paradoxo do MP, entre a independência do órgão individual e a unidade da instituição. Fragmentado e unido, o parquet se conforma como um cardume que se reúne para enfrentar o predador, mas se pulveriza para escapar à captura. O balanço deste paradoxo, entre erros e acertos, chega a ser positivo para a sociedade brasileira. Mas com um alto custo.

As Câmaras de Coordenação e Revisão, no Ministério Público Federal e nos estaduais, são mecanismos fundamentais para reduzir as externalidades do paradoxo acima.  A ideia central, com fundamento no art. 62 da Lei Complementar n. 75/93, é a troca e a oferta de informações para que as "independências" encontrem alguma unidade na atuação. Algumas excelentes soluções foram engendradas pelas orientações e notas técnicas expedidas pelas Câmaras de Coordenação, como aquelas que cuidam de estruturar um programa de leniência anticorrupção do MPF.

Outras, contudo, parecem atuar para violar a independência funcional, ao impor uma visão limitante quanto à interpretação de determinado aspecto da legislação brasileira. A ideia de orientar, por meio de enunciados e pareceres de grande envergadura, oferece aos procuradores elementos para a formação de sua convicção quanto ao exercício de suas atribuições. Não se cogita, contudo, que uma orientação venha a se transformar em algo cogente, pela conexão entre o poder de expedi-las (LC 75/93, art. 62, I, II e III), com o poder-dever de acatamento (ou não) de promoções de arquivamento. Ou, ainda, que tal atribuição orientativa possua o condão de substituir o Procurador Geral da República na tarefa de aferir a iniciativa de questionar a constitucionalidade de determinada norma, em controle concentrado.

Parece ser o caso da orientação e respectiva nota técnica, recentemente divulgadas pela 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF - 5ª CCR, que tratam de uma pretensa irretroatividade dos efeitos benéficos da Lei n. 14.230/21, a reforma da Lei de Improbidade Administrativa.

À invocação do princípio da vedação à proteção deficiente, houve-se por orientar todo o parquet federal para pleitear a não aplicação da reformatio in melius a casos ocorridos antes de sua vigência, mesmo que não objeto de ação judicial bastante. Ou seja, tomando por base uma compreensão derivada do princípio da proporcionalidade, essa orientação sugere o não cumprimento de uma garantia fundamental (a retroatividade benéfica ao acusado). A base do raciocínio é o entendimento, contra legem, que a reforma de Lei de Improbidade desconfigurou a legislação protetiva da moralidade administrativa.

Segundo consta da orientação, a Lei 14.230/21 modificou alguns tipos da Lei de Improbidade para incluir o dolo como requisito para configuração de um ato de improbidade e, ao fazê-lo, acabou por limitar a atuação do parquet na tutela do bem jurídico ao bom governo. Como não concordo com a lei, impõe-se o seu descumprimento sob o pálio da proporcionalidade.

Grosso modo, conforme a orientação da 5ª CCR, a proteção da moralidade no exercício de funções públicas (art. 37, §4º) obstaria a aplicação de uma garantia fundamental do cidadão, sacramentada pelo art. 5º, XL da Carta e que sequer poderia ser objeto de emenda tendente a aboli-la (CF, art. 60, §4º, IV). Ou seja, haveria um bem maior, indeterminado e abstrato, a moralidade, que justificaria derrogar premissas do devido processo legal (este também de assento constitucional). A orientação e a respectiva nota técnica intentam criar uma interpretação baseada num tipo de "razão de Estado moral" para esvaziar garantia que sequer poderia ser objeto de emenda constitucional. Criou-se um entendimento, que se quer mandatório, a partir de um encontro inusitado entre o imperativo categórico de Kant e o decisionismo de Carl Schimdt. Um feito.

Mas o problema não para na construção tortuosa da prevalência de um valor abstrato sobre um comando constitucional concreto. A orientação tropeça em entender que exigir o dolo para condenar alguém por improbidade seria um enfraquecimento na proteção ao bem jurídico moralidade pública. Estudo do Conselho Nacional de Justiça, de 2015, aponta que, sob o regime anterior à reforma, apenas 4% das ações de improbidades ajuizadas no país resultaram em reparação integral do dano causado ao erário, 6% em reparação parcial e nada menos que 90% de nenhuma reparação. O que a reforma da LIA faz é recolocar a lei para cumprir seus objetivos constitucionais: coibir o locupletamento e a depauperação do patrimônio público, condutas que pressupõem o agir consciente. A menos que os procuradores entendam que é moral punir gestor público por discordância de posição ou de escolha política. Para fortalecer a moralidade, propala-se uma conduta que afronta a moral.

Afinal, esse é o panorama das consequências jurídicas. Mas parece não ser disso que se trata. O ajuizamento de uma ação com tal natureza é antecedida e sucedida de ampla divulgação, com finalidade de carrear ao acusado todos os ônus de imagem decorrentes da acusação. Impor um controle maior no ajuizamento da ação, mediante a explicitação do dolo, parece interferir mais diretamente nesse tipo de comportamento - que não é característico de toda uma carreira, embora esteja presente na atuação de alguns profissionais.

Ao Judiciário competirá repelir a aplicação automática de uma orientação que afronta cláusula pétrea da Constituição. Enquanto isso, espera-se que o Conselho Nacional do Ministério Público acolha representação formulada pelo Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e faça esvaziar de efeitos uma orientação francamente inconstitucional.

*Alberto Zacharias Toron, doutor em Direito Penal; Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, advogado criminalista; Danyelle Galvão, doutora em Direito Processual; Floriano de Azevedo Marques Neto, Diretor da Faculdade de Direito da USP; Gustavo Badaró, Professor titular de Direito Processual Penal da USP; Igor Sant'Anna Tamasauskas, doutor em Direito do Estado; Ilana Martins Luz, doutora em Direito Penal; José Luis Oliveira Lima, advogado criminalista; Luis Fernando Massoneto, Professor Doutor da Faculdade de Direito da USP; Pierpaolo Cruz Bottini, Professor Livre Docente da Faculdade de Direito da USP; Ricardo Penteado, advogado especializado em Direito Político e Eleitoral; Sarah Merçon-Vargas, Doutora em Direito Processual; Sebastião Botto de Barros Tojal, Professor Doutor da Faculdade de Direito da USP; e Sérgio Rabello Tamm Renault, advogado especializado em Direito Público.

Procuradoria-Geral da República. FOTO: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO  

Dizem que a força e a fraqueza do Ministério Público decorrem da sua independência funcional. Essa garantia constitucional atua como uma blindagem contra interferências que tisnem a consciência do órgão do parquet na interpretação da lei. Contudo, essa independência traz a pulverização de centros decisórios e empece a efetivação de outro princípio constitucional: a unidade do MP.

Sobre a instituição a Carta depositou graves atribuições como a iniciativa primordial da jurisdição criminal, a proteção de bens e direitos difusos, a tutela da moralidade administrativa. Ao Procurador Geral da República, com outras poucas instituições, foi assegurada a iniciativa do controle concentrado de constitucionalidade. Bastante poder, portanto.

Eis o paradoxo do MP, entre a independência do órgão individual e a unidade da instituição. Fragmentado e unido, o parquet se conforma como um cardume que se reúne para enfrentar o predador, mas se pulveriza para escapar à captura. O balanço deste paradoxo, entre erros e acertos, chega a ser positivo para a sociedade brasileira. Mas com um alto custo.

As Câmaras de Coordenação e Revisão, no Ministério Público Federal e nos estaduais, são mecanismos fundamentais para reduzir as externalidades do paradoxo acima.  A ideia central, com fundamento no art. 62 da Lei Complementar n. 75/93, é a troca e a oferta de informações para que as "independências" encontrem alguma unidade na atuação. Algumas excelentes soluções foram engendradas pelas orientações e notas técnicas expedidas pelas Câmaras de Coordenação, como aquelas que cuidam de estruturar um programa de leniência anticorrupção do MPF.

Outras, contudo, parecem atuar para violar a independência funcional, ao impor uma visão limitante quanto à interpretação de determinado aspecto da legislação brasileira. A ideia de orientar, por meio de enunciados e pareceres de grande envergadura, oferece aos procuradores elementos para a formação de sua convicção quanto ao exercício de suas atribuições. Não se cogita, contudo, que uma orientação venha a se transformar em algo cogente, pela conexão entre o poder de expedi-las (LC 75/93, art. 62, I, II e III), com o poder-dever de acatamento (ou não) de promoções de arquivamento. Ou, ainda, que tal atribuição orientativa possua o condão de substituir o Procurador Geral da República na tarefa de aferir a iniciativa de questionar a constitucionalidade de determinada norma, em controle concentrado.

Parece ser o caso da orientação e respectiva nota técnica, recentemente divulgadas pela 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF - 5ª CCR, que tratam de uma pretensa irretroatividade dos efeitos benéficos da Lei n. 14.230/21, a reforma da Lei de Improbidade Administrativa.

À invocação do princípio da vedação à proteção deficiente, houve-se por orientar todo o parquet federal para pleitear a não aplicação da reformatio in melius a casos ocorridos antes de sua vigência, mesmo que não objeto de ação judicial bastante. Ou seja, tomando por base uma compreensão derivada do princípio da proporcionalidade, essa orientação sugere o não cumprimento de uma garantia fundamental (a retroatividade benéfica ao acusado). A base do raciocínio é o entendimento, contra legem, que a reforma de Lei de Improbidade desconfigurou a legislação protetiva da moralidade administrativa.

Segundo consta da orientação, a Lei 14.230/21 modificou alguns tipos da Lei de Improbidade para incluir o dolo como requisito para configuração de um ato de improbidade e, ao fazê-lo, acabou por limitar a atuação do parquet na tutela do bem jurídico ao bom governo. Como não concordo com a lei, impõe-se o seu descumprimento sob o pálio da proporcionalidade.

Grosso modo, conforme a orientação da 5ª CCR, a proteção da moralidade no exercício de funções públicas (art. 37, §4º) obstaria a aplicação de uma garantia fundamental do cidadão, sacramentada pelo art. 5º, XL da Carta e que sequer poderia ser objeto de emenda tendente a aboli-la (CF, art. 60, §4º, IV). Ou seja, haveria um bem maior, indeterminado e abstrato, a moralidade, que justificaria derrogar premissas do devido processo legal (este também de assento constitucional). A orientação e a respectiva nota técnica intentam criar uma interpretação baseada num tipo de "razão de Estado moral" para esvaziar garantia que sequer poderia ser objeto de emenda constitucional. Criou-se um entendimento, que se quer mandatório, a partir de um encontro inusitado entre o imperativo categórico de Kant e o decisionismo de Carl Schimdt. Um feito.

Mas o problema não para na construção tortuosa da prevalência de um valor abstrato sobre um comando constitucional concreto. A orientação tropeça em entender que exigir o dolo para condenar alguém por improbidade seria um enfraquecimento na proteção ao bem jurídico moralidade pública. Estudo do Conselho Nacional de Justiça, de 2015, aponta que, sob o regime anterior à reforma, apenas 4% das ações de improbidades ajuizadas no país resultaram em reparação integral do dano causado ao erário, 6% em reparação parcial e nada menos que 90% de nenhuma reparação. O que a reforma da LIA faz é recolocar a lei para cumprir seus objetivos constitucionais: coibir o locupletamento e a depauperação do patrimônio público, condutas que pressupõem o agir consciente. A menos que os procuradores entendam que é moral punir gestor público por discordância de posição ou de escolha política. Para fortalecer a moralidade, propala-se uma conduta que afronta a moral.

Afinal, esse é o panorama das consequências jurídicas. Mas parece não ser disso que se trata. O ajuizamento de uma ação com tal natureza é antecedida e sucedida de ampla divulgação, com finalidade de carrear ao acusado todos os ônus de imagem decorrentes da acusação. Impor um controle maior no ajuizamento da ação, mediante a explicitação do dolo, parece interferir mais diretamente nesse tipo de comportamento - que não é característico de toda uma carreira, embora esteja presente na atuação de alguns profissionais.

Ao Judiciário competirá repelir a aplicação automática de uma orientação que afronta cláusula pétrea da Constituição. Enquanto isso, espera-se que o Conselho Nacional do Ministério Público acolha representação formulada pelo Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e faça esvaziar de efeitos uma orientação francamente inconstitucional.

*Alberto Zacharias Toron, doutor em Direito Penal; Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, advogado criminalista; Danyelle Galvão, doutora em Direito Processual; Floriano de Azevedo Marques Neto, Diretor da Faculdade de Direito da USP; Gustavo Badaró, Professor titular de Direito Processual Penal da USP; Igor Sant'Anna Tamasauskas, doutor em Direito do Estado; Ilana Martins Luz, doutora em Direito Penal; José Luis Oliveira Lima, advogado criminalista; Luis Fernando Massoneto, Professor Doutor da Faculdade de Direito da USP; Pierpaolo Cruz Bottini, Professor Livre Docente da Faculdade de Direito da USP; Ricardo Penteado, advogado especializado em Direito Político e Eleitoral; Sarah Merçon-Vargas, Doutora em Direito Processual; Sebastião Botto de Barros Tojal, Professor Doutor da Faculdade de Direito da USP; e Sérgio Rabello Tamm Renault, advogado especializado em Direito Público.

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