Sob os olhos de lideranças indígenas, que acompanharam o julgamento no plenário, o Supremo Tribunal Federal (STF) adiou mais uma vez nesta quarta-feira, 7, a decisão sobre o marco temporal. O placar está em 2 a 1 para declarar a tese inconstitucional.
O julgamento é considerado um dos mais importantes do ano até o momento. Como mostrou o Estadão, a decisão pode inviabilizar a demarcação de 114 terras indígenas em 185 cidades.
A votação foi suspensa após um pedido de vista (mais tempo para análise) do ministro André Mendonça. Ele tem 90 dias para devolver o processo. “A temática é complexa, relevante. Não só pela questão fática, mas pela questão histórica, pela questão jurídica, pela questão dos valores que estão em jogo”, justificou Mendonça.
O julgamento havia sido retomado após um hiato de quase dois anos. Relator do caso, o ministro Edson Fachin, que já havia votado, em setembro de 2021, pediu celeridade. “Há povos aguardando uma deliberação há muito mais anos do que os anos que tem a nossa Constituição”, afirmou.
O processo foi pautado em um momento em que o debate sobre o tema avança no Congresso. A Câmara dos Deputados aprovou, na semana passada, um projeto de lei para restringir as demarcações a territórios ocupados antes de 1988 – data da promulgação da Constituição. A proposta seguiu para o Senado.
Ao colocar a ação na pauta, a presidente do STF, Rosa Weber, contrariou a bancada ruralista e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), simpático ao projeto de lei. Deputados e senadores ligados ao agronegócio esperavam dissuadir a Corte de retomar o julgamento.
A ministra não esconde que espera deixar seu voto no caso antes de se aposentar, em setembro. “Eu espero, e tenho certeza que vai acontecer, que eu tenha condições de votar, porque eu tenho uma limitação temporal para proferir o meu voto”, afirmou a presidente do STF nesta tarde.
O Estadão apurou que a pressão do Congresso não caiu bem entre uma ala do Tribunal, que identificou uma tentativa de encurralar os ministros. Como adiantou o blog, um pedido de vista era esperado, o que na prática garante tempo para acalmar os ânimos entre os Poderes.
Leia também
Se os ministros decidirem que a tese é inconstitucional, o projeto de lei será colocado em xeque. O PL trata de outros temas, que podem seguir tramitando, mas o trecho sobre o marco temporal precisará ser revisto, segundo especialistas ouvidos pelo Estadão.
“Qualquer decisão legislativa incompatível com a eventual decisão do Supremo, especialmente por ser um projeto de lei, tende a não prosseguir e a não ter legitimidade“, explica o advogado Gabriel Sampaio, que acompanha o julgamento no STF como representante da ONG Conectas Direitos Humanos.
Com a mudança de governo e o alinhamento da gestão Luiz Inácio Lula da Silva com a defesa dos direitos indígenas, o tempo passou a correr a favor dos povos originários. O petista prometeu acelerar demarcações.
O advogado Eloy Terena, ex-coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), é uma das principais vozes no Judiciário contra a tese do marco temporal. Ele é hoje secretário-executivo do Ministério dos Povos Indígenas, o que reforça a mudança de posicionamento em relação ao governo Jair Bolsonaro (PL). Na gestão do ex-presidente, a Advocacia-Geral da União (AGU) defendeu o marco temporal como uma garantia de “paz social”.
Representantes do movimento indígena viajaram a Brasília e montaram acampamento na Praça da Cidadania para protestar contra o marco temporal. Campanhas com artistas e ambientalistas também foram lançadas nas redes sociais, para tentar mobilizar a opinião pública.
“Se o marco temporal for aprovado, as próprias terras indígenas que já estão demarcadas poderão ser revistas dentro do Poder Judiciário”, alerta o advogado Maurício Terena. “(Edson) Fachin (ministro-relator) fez um voto histórico. Acreditamos que o julgamento será bem acirrado. Se a tese for aprovada, independentemente dos termos, será uma perda para os povos indígenas.”
Votos
O julgamento do marco temporal teve sucessivos adiamentos no STF. Até o momento, três ministros votaram: Fachin, relator do processo, Kassio Nunes Marques e Alexandre de Moraes.
Há duas teses jurídicas em disputa e um voto intermediário, de Moraes. De um lado, Fachin defende o direito dos povos indígenas sobre o território como originário e não depende de um marco temporal.
O ministro argumentou que o arcabouço legal de proteção dos direitos de posse indígena começou a ser construído antes de Constituição de 1988. A posse, na avaliação do relator, deve ser definida pela tradicionalidade e não por um marco arbitrário no tempo.
“No caso das terras indígenas, a função econômica da terra se liga, visceralmente, à conservação das condições de sobrevivência e do modo de vida indígena, mas não funciona como mercadoria para essas comunidades”, destacou em seu voto.
A judicialização das demarcações é um dos principais desafios para os indígenas. Os processos costumam se arrastar por anos na Justiça, o que permite que fazendeiros e garimpeiros continuem nas terras reivindicadas.
Nunes Marques, por sua vez, foi a favor do marco temporal, no que foi um dos seus primeiros votos ao chegar no STF. Ele argumentou que a solução concilia interesses públicos e dos indígenas e garante segurança jurídica na demarcação das terras.
“Por um lado, admite-se que os índios remanescentes em 1988 e suas gerações posteriores têm direito à posse de suas terras tradicionais, para que possam desenvolver livremente seu modo de vida. Por outro, procura-se anistiar oficialmente esbulhos ancestrais, ocorridos em épocas distantes, e já acomodados pelo tempo e pela própria dinâmica histórica”, defendeu.
O ministro Alexandre de Moraes foi o único a votar nesta quarta. Ele acompanhou Fachin, contra a tese do marco temporal, mas sugeriu ajustes pontuais na tese.
O objetivo, segundo Moraes, é ‘compatibilizar’ os direitos das comunidades indígenas e dos proprietários de terras. “O que acho que devemos buscar na solução dessa questão é a paz social no campo”, defendeu.
Ele propôs que a União seja obrigada a pagar uma indenização integral a proprietários expropriados, em dinheiro ou em títulos da dívida agrária, considerando a terra nua e eventuais benfeitorias.
“Permanece o total direito à demarcação e à posse das comunidades indígenas, mas o proprietário de boa-fé tem direito à indenização integral”, explicou. “O grande culpado é o poder público, que não regulamentou corretamente isso.”