A investigação das joias, que coloca o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no centro de suspeitas de um esquema de desvios de presentes diplomáticos, acendeu o debate sobre a competência de o Supremo Tribunal Federal (STF) conduzir um caso envolvendo autoridade que perdeu a prerrogativa de foro. O Estadão apurou que o Supremo deve enfrentar novamente esse debate e pode mudar a posição atual em meio ao julgamento do caso envolvendo o ex-presidente.
Desde 1.º de janeiro, quando deixou o Palácio do Planalto, Bolsonaro não detém mais foro privilegiado. Com isso, os processos criminais contra ele deveriam em tese tramitar na primeira instância, a não ser que a ação envolva outras pessoas com prerrogativa de foro – o que não é de conhecimento público. O caso está no Supremo porque o ministro Alexandre de Moraes alega que há conexão com outras investigações que tramitam na Corte, entendimento que tem gerado polêmica.
Segundo dois ministros ouvidos pelo Estadão, para evitar as discussões a respeito da competência do STF, a tendência é rediscutir a atual jurisprudência com grandes chances de a Corte voltar o entendimento pelo qual se a ação for iniciada no Supremo ela deve seguir na Corte mesmo que a pessoa perca a prerrogativa de foro.
Ao contrário de países como Estados Unidos, onde nem o presidente tem tratamento excepcional na Justiça, o Brasil estende o foro a deputados, ministros, desembargadores e até prefeitos.
A partir de 2018, por uma proposta do ministro Luís Roberto Barroso, o Supremo entendeu que só ficariam na Corte as ações criminais que envolvessem crimes cometidos durante o mandato e relacionados ao cargo atual da autoridade. Como Bolsonaro não tem mais cargo, por esse entendimento, ele perde o foro. Essa compreensão foi justificada na época pelo acúmulo de ações criminais tramitando no Supremo. Eram 500 ações na época. Com isso, os casos baixaram para 50.
Agora, entretanto, o número de ações criminais voltou a subir e está em cerca de 1.500, das quais 1.300 estão com o ministro Alexandre de Moraes e são relacionadas ao golpe de 8 de janeiro. O discurso dos ministros para justificar a incoerência é que os políticos têm influência sobre a Justiça dos seus Estados e os casos acabam não sendo julgados. Se o entendimento mudar, as discussões sobre se Bolsonaro pode ou não ser julgado no Supremo se encerram.
Casa Bolsonaro deve ir para primeira instância?
“A regra (atual) é que Bolsonaro não deveria ser investigado, a priori, pelo STF, mas é cedo para fazer esse julgamento”, afirma o professor Álvaro Palma de Jorge, da Faculdade de Direito da FGV-Rio. “O ministro Alexandre de Moraes está em uma posição privilegiada em termos de informação. Se a gente olhar o histórico de investigações sobre Bolsonaro, vem aparecendo uma coisa atrás da outra, com algum encadeamento.”
“O fato de o ex-presidente da República ter deixado o cargo me faz acreditar que o caso deveria ser remetido para a primeira instância, respeitando-se, assim, o princípio do juiz natural. É incontestável que o STF tem exercido papel fundamental para a defesa da democracia e do Estado Democrático de Direito, mas é tempo de avaliar se essa concentração de poder ainda faz sentido, evitando-se mais questionamentos sobre a sua atuação”, avalia o advogado Dinovan Dumas, sócio do escritório MFBD Advogados.
Outra hipótese capaz de atrair a competência do Supremo para conduzir o caso das joias seria a conexão da investigação com outros inquéritos em curso na Corte. Foi essa a brecha usada por Moraes, relator do caso, para justificar a intervenção do tribunal.
“O STF firmou entendimento que investigações e ações penais devem ser encaminhadas para a justiça competente após o a perda de foro por prerrogativa de função. Apenas em situações excepcionais, como na conexão, é que se poderia falar em manutenção da competência do STF”, explica o advogado e professor de Direito Rodrigo Faucz Pereira e Silva.
Moraes afirma que a PF suspeita de uma organização criminosa com atuação em cinco eixos: 1) ataques virtuais a opositores; 2) ataques ao Poder Judiciário e ao processo eleitoral; 3) tentativa de golpe de estado; 4) boicote às vacinas e a medidas sanitárias na pandemia; 5) uso da estrutura do Estado para obtenção de vantagens. O envolvimento do mesmo grupo seria um dos elementos de conexão.
“O Supremo fala muito, na sua competência, do imbricamento de fatos. Quando há uma relação fundamental de provas, é a situação de conexão probatória”, diz Helena Lobo da Costa, professora de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Em artigo publicado no blog nesta segunda-feira, 21, o ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior defendeu a competência do STF para processar o caso. “A prova de um fato implica e interfere na prova de outro”, escreveu.
O criminalista Celso Vilardi, mestre em Direito Processual Penal, discorda. Para o advogado, a manutenção do caso no STF contraria o histórico de decisões do próprio tribunal.
“O STF vinha se posicionando de forma absolutamente restritiva em relação ao foro por prerrogativa de função, mesmo em casos com conexão evidente. Por exemplo, há casos de acusação de corrupção contra autoridade com foro e coautor sem foro que o Supremo chegou a mandar embora”, relembra.
Investigações sensíveis a Bolsonaro estão com Moraes
A alegada conexão do caso das joias remonta a outras investigações sensíveis a Bolsonaro que estão nas mãos de Alexandre de Moraes. A principal delas, citada expressamente na decisão que autorizou buscas sobre a venda das joias, é a investigação das milícias digitais.
O inquérito das milícias digitais nasceu derivado de outra frente de apuração que mira aliados e apoiadores bolsonaristas: o inquérito dos atos antidemocráticos. Na ocasião, o caso precisou ser arquivado por determinação da Procuradoria-Geral da República (PGR). Antes de encerrá-lo, porém, Moraes, na condição de relator, autorizou o intercâmbio de provas e mandou rastrear o que chamou de “organização criminosa”. Bolsonaro é um dos investigados no caso.
O procurador de Justiça César Dario Mariano, do Ministério Público de São Paulo, não vê conexão entre o inquérito das milícias digitais e o caso das joias. “Até agora não há ninguém foi processado pela tal das milícias digitais e a gente nem sabe se haverá. Esse inquérito não pode ficar aberto infinitamente atraindo outras investigações”, afirma.
Para o procurador, o Supremo Tribunal Federal é “absolutamente incompetente” para processar a investigação as joias. Ele alerta que, se um eventual julgamento for mantido no STF, os denunciados serão prejudicados, porque terão direito a recurso. “Isso viola o duplo grau de jurisdição. A pessoa não pode recorrer, não tem a quem recorrer”, explica.
Em 2019, quando o STF se tornou alvo de pesados ataques, após decidir que casos de corrupção ligados a crimes eleitorais deveriam ser processados na Justiça Eleitoral, o tribunal fixou que estava apto a se defender. A Corte validou, em votação quase unânime no plenário, uma interpretação ampliada do regimento interno para confirmar a própria atribuição na investigação de ofensas e ameaças aos ministros e instituições democráticas. O caso ficou conhecido como inquérito das fake news e também mira bolsonaristas.
“Eu não vejo uma ampliação de competência do STF relacionada ao governo Bolsonaro. Eu acho que é mais relacionada a um contexto de perigo do Estado Democrático de Direito, que se materializa no 8 de janeiro”, segue Helena.
O professor Álvaro Palma de Jorge vai na mesma linha: “A questão do alargamento das competências do Supremo é um fenômeno maior, que não está restrito ao tema Bolsonaro”, defende. “O processo de afirmação do Supremo como um poder que interpreta a Constituição, uma Constituição ampla, importa, se olhamos de 1988 para cá, numa ampliação do seu papel político-constitucional. Ninguém tem dúvidas de que ele foi ampliado. Mas acho errado tirar a conclusão de que foi por uma excepcionalidade do período Bolsonaro. O período foi conturbado, mas as instituições foram se articulando e jogando dentro do que tinham competência para fazê-lo.”
Esquema das joias começou a ser investigado em São Paulo
O caso das joias começou a ser investigado em São Paulo, sob a supervisão da Justiça Federal, depois que o Estadão revelou a apreensão de um conjunto avaliado inicialmente em R$ 16,5 milhões com uma comitiva do Ministério de Minas e Energia no aeroporto de Guarulhos.
Em paralelo, a Polícia Federal em Brasília deu início a uma investigação mais ampla, sobre a venda de presentes diplomáticos - como as próprias joias e esculturas -, que deveriam ter sido restituídos pelo governo Jair Bolsonaro ao patrimônio da União. Com o avanço do novo inquérito, o Ministério Público Federal (MPF) em São Paulo pediu a união das duas frentes de investigação no STF.
Os especialistas consultados pelo Estadão avaliam que, no caso de uma eventual revisão da competência do STF e do declínio do caso das joias para a primeira instância, não há espaço para anular a investigação até o estágio em que ela houver avançado. Um dos princípios para resguardar o inquérito é a chamada “teoria do juízo aparente”, que prevê como, na fase provisória da apuração, a competência não é clara e pode ser alterada com o andamento do caso.
“A fase de investigação é naturalmente dinâmica: vão surgindo elementos novos que podem levar a uma alteração de competência. Não tem e não dá pra ter uma sequência legal”, explica a professora Helena Lobo da Costa. “A nulidade dessa fase não contamina a ação penal.”